Sofia Coppola é uma cineasta bastante autoral. Como tal, desde o seu longa-metragem de estréia [“As Virgens Suicidas” (1999)], ela deixou assaz demarcadas as suas obsessões temáticas: os conflitos geracionais, o fascínio ambíguo pelas celebridades midiáticas [ambíguas em essência] e o flerte imersivo com as culturas ‘pop’ e/ou ‘indie’.
Em “Encontros e Desencontros” (2003), sua obra-prima até então, ela demonstrou uma maturidade sobressalente em relação a estes assuntos, de maneira que os longas-metragens seguintes, em suas sutis metamorfoses estilísticas, apenas ratificam o que já havia sido anunciado no primeiro filme: em “Maria Antonieta” (2006), por exemplo, os anacronismos vinculados à inserção proposital de artefatos e cantos contemporâneos numa narrativa romântica situada no século XVIII funcionavam como emulações indiciais dos temas anteriormente destacados; e, em “Um Lugar Qualquer” (2010), filme de temática um tanto mais sóbria, tais temas ressurgem no modo donairoso com que um ator afamado se relaciona com a filha adolescente que praticamente desconhecia.
Em “Bling Ring: A Gangue de Hollywood” (2013), os traços autorais da diretora são misturados de forma astuta e veloz graças ao brilhantismo da montagem de Sarah Flack (colaboradora habitual da cineasta desde o seu segundo filme), que inteligentemente dirime o perigo de a obra tornar-se enredisticamente limitada por sua obediência reconstitutiva aos fatos reais que engendraram a trama, descritos originalmente numa reportagem da jornalista Nancy Jo Sales, em que se baseia o roteiro. Este, escrito pela própria Sofia Coppola, não se limita a contar esta absurda história verídica, mas opera uma interessantíssima reversão narrativa, em que, ao mesmo tempo em que critica os estereótipos modistas que impulsionaram os rompantes criminosos dos protagonistas, lida com os chamarizes cinematográficos e cibernéticos de maneira assumidamente dúbia, a ponto de algumas celebridades aparecerem no filme interpretando a si mesmas, como Kirsten Dunst, parceira freqüente da diretora, e Paris Hilton, intensa e inclementemente citada nos diálogos.
Dedicado ao fotógrafo Harris Savides, falecido em 06 de outubro de 2012 por complicações de um câncer cerebral, este filme ostenta o seu brilhantismo potencial desde os exuberantes créditos de abertura, em que os acordes altissonantes e acelerados de uma canção [“Crown on the Ground”, de Sleigh Bells] sobrepõem-se a imagens de jóias e roupas de grifes famosas, devidamente aludidas e merecedoras de agradecimentos colaborativos nos créditos finais, muito mais brandos, ao som da oportuna “Super Rich Kids”, de Frank Ocean (com participação de Earl Sweatshirt).
A direção de fotografia compartilhada entre o próprio Harris Savides e Christopher Blauvelt proporciona momentos tão fantásticos quanto inesperados, como as extraordinárias seqüências no interior de boates, em que os protagonistas são freqüentemente mostrados fotografando a si mesmos, em ângulos cingidos, através de seus telefones celulares, e o potente instante, filmado em ‘contra-plongeé’, a partir da câmera embutida de um computador, em que o afetado Marc Hall (Israel Broussard) rebola, usa maquiagem feminina e consome drogas inaláveis ao som de “Drop it Low”, de Ester Dean e Chris Brown. Na trilha sonora, inclusive, merece destaque o modo genial com que a diretora mescla as sonoridades apaziguadoras da banda francesa Phoenix [“Bankrupt!”] e do músico Brian Reitzell [que compôs “The Bling Ring Suite”] com as irrupções frenéticas de Kanye West [“Power” e “All of the Lights”], M.I.A. [em “Bad Girls” e “Sunshine”], Reema Major [“Gucci Bag”] e Azealia Banks [“212”], entre tantos outros artistas.
Não obstante ser dotado da perspectiva subjetivo-confessional que concatena e incita as demais personagens, Israel Broussard oferece uma interpretação tão travada quanto os comportamentos sociais do homossexual enrustido que vivifica, mas isso não impede que seja reverenciada a homogeneidade do excelente elenco, que inclui Leslie Mann, ótima como sempre, no papel da mãe fútil de uma das ladras, insistentemente mostrada em arremedos de rituais religiosos inspirados por ‘best sellers’ de auto-ajuda. Porém, quem mais se destaca no filme são Katie Chang, no papel da dissimulada Rebecca, Claire Julien, que personifica a deslumbrante Chloe, e Emma Watson, irreprochável como a carente e deslumbrada Nicki Moore, que reaparece depois de serem anunciadas as sentenças prisionais dos personagens, sendo entrevistada pelo âncora de um programa sobre a vida íntima das celebridades, comentando que estivera na mesma cena que Lindsay Lohan, atriz juvenil continuamente presa por estar dirigindo embriagada. Quando Nicki olha para a tela da TV e divulga orgulhosamente o seu ‘blog’, percebemos o quanto o roteiro foi sagaz na demonstração da incapacidade da geração à qual ela pertence em assumir as responsabilidades por seus delitos: a fama instantânea desencadeada pela cleptomania de luxo que ela põe em prática a converte num pasticho de celebridade, o que é previamente antecipado no enredo a partir da afinidade dos personagens com jargões e letras de canções que valorizam as atitudes de ‘bitches’ [vadias] e ‘gangstas’ [malandros] e no inusitado questionamento que Marc faz a Rebecca: “se nós deixarmos de ser amigos, tu vais roubar a minha casa?”. “Bling Ring: A Gangue de Hollywood” é, sobretudo, um poderoso testemunho de época!
Numa comparação com os demais filmes da diretora, esta obra mais recente revela-se deficitária em mais de um aspecto – em especial, na confecção de seu roteiro, muito mais “óbvio” que os anteriores – mas, ainda assim, a insistência discursiva sobre as características peculiares (e tão influenciáveis quanto influenciadoras) dos jovens hodiernos, para além de suas condições de classe ou configurações gentílicas, evidencia o quanto a diretora é percuciente em seu olhar autoral, a ponto de permitir que o filme pareça se confundir com o que está sendo criticado, já que o espectador é mergulhado em situações de intensa percussividade somática, introjetando o frenesi dos personagens em sua praticamente ininterrupta rotina de festas, culto à própria imagem e consumo abundante de álcool, música dançante e cocaína.
Se, na quinta vez em que a gangue juvenil invade a residência de Paris Hilton, o chiste já não é tão interessante (ou surpreendente), a preparação noticiosa para o contexto em que esse tipo de invasão é possível salta aos olhos, visto que muitas das mercadorias (supérfluas) furtadas são facilmente substituíveis ou ignoradas pelos milionários lesados.
A lógica do valor de uso é completamente esvaziada, sendo hipertrofiado um simulacro de valor de troca que perpetua, dentro e fora das telas, as crises falsamente desejosas – e encadeadas de maneira psicótica – que acometem os personagens, atingem alguns dos espectadores e, infelizmente, não ficarão restritas a este filme, que já é a versão ficcional de uma patética situação real. Insistindo no que já foi dito, estivemos diante de um verdadeiro filme-testemunho, que, apesar de fadado a envelhecer muito rápido, diagnostica de maneira pluridimensional as fraquezas e destrezas da faixa etária que, não por acaso, é o público-alvo dominante dos produtos hollywoodianos atuais...
Wesley Pereira de Castro.
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
domingo, 20 de outubro de 2013
SERRA PELADA (Brasil, 2013). Direção: Heitor Dhalia.
O interrogatório em ‘close-up’ a que o personagem Juliano (Juliano Cazarré) é submetido no plano que antecede o crédito de abertura deste filme promete interessantíssimas reviravoltas no roteiro escrito pelo próprio diretor, em colaboração com Vera Egito: quando perguntado acerca de sua filiação, Juliano declara que é filho de pai desconhecido; insiste para o interrogador que a sua profissão é a de garimpeiro; e, quando lhe questionam se ele já assassinou alguém ou se está envolvido com tráfico de drogas, ele silencia, somente voltando a se expressar verbalmente quando defende energicamente a honra de um amigo hospitalizado, acusado de também estar envolvido em esquemas criminosos. Surge, então, o título do filme, entremeado por recortes telejornalísticos sobre a febre do ouro na região de Serra Pelada, situada no município paraense atualmente batizado como Curionópolis. Daí por diante, o vigoroso potencial sociológico, dramático e eminentemente cinematográfico que poderia emergir a partir desta premissa inicial é, infelizmente, acometido por uma vacuidade atroz...
Narrado pelo personagem Joaquim – chamado apenas de Professor ao longo do filme – da mesma forma jargonada e onisciente que caracteriza “Cidade de Deus” (2002, de Fernando Meirelles & Kátia Lund) e “Tropa de Elite” (2007, de José Padilha), “Serra Pelada” (2013) tem na composição deste protagonista um de seus defeitos mais evidentes, no sentido de que, para além dos esforços actanciais de Júlio Andrade, sua vivência é completamente inorgânica num cotejo com os demais elementos contextuais do filme: não apenas sua amizade de infância com o turrão Juliano é inverossímil como as suas reações desenxabidas tornam praticamente nula a sua presença em cena, sendo desprovidas de veemência emotiva as agruras em que ele se envolve, como ser traído por causa de dinheiro pelo melhor amigo e ter corpo e alma vilipendiados por uma jornada de trabalho inglória.
O que justifica a incoerente perspectiva deste personagem, já que tudo o que acontece recebe o seu crivo analítico, é precisamente a competência dos atores que o circundam, destacando-se a breve e desperdiçada aparição de Matheus Nachtergaele como o ambicioso Carvalho, o sutil cerceamento do vilanaz Lindo Rico (numa surpreendente e espetacular atuação de Wagner Moura), e a consistência compositiva do personagem Juliano, cujo intérprete homônimo dota-o da rudeza imediatista associada ao apelido Grandão desde a supracitada seqüência do interrogatório, que, quando reinserida linearmente na narrativa, não possui o mesmo ímpeto. O motivo: a cadência de eventos enredisticamente atrelados aos efeitos psicologicamente destrutivos da “febre do ouro” é frouxa, o que desencadeia um desfecho absolutamente anticlimático, em que, depois de enviar ao atabalhoado Joaquim um cheque e uma fotografia do momento feliz em que “bamburraram” (ou seja, encontraram uma larga quantidade de ouro, segundo a gíria local), Juliano invade a sede das atividades de Lindo Rico com a intenção de assassiná-lo vingativamente. No auge do que seria mais uma pretensa seqüência de ação, o filme acaba!
A conformação gangsterista das atividades criminais que balizam o roteiro de “Serra Pelada” distancia-no até mesmo do impactante viés telejornalístico apresentado no início e faz com que ele se assemelhe – guardadas as devidas proporções imitativas – a filmes policiais hollywoodianos, como as sagas mafiosas conduzidas por Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese, sendo evidente o quanto Heitor Dhalia tentou estresir alguns dos cacoetes desses diretores, ignorando os próprios traços estilísticos que concatenam obras tão variegadas quanto o genial curta-metragem “Conceição” (2000), o equivocado “Nina” (2004), o pitoresco “O Cheiro do Ralo” (2006) e o ótimo “À Deriva” (2009).
Se, em suas realizações anteriores, Heitor Dhalia destacava-se por parecer (e, eventualmente, conseguir ser) um diretor modernoso, em “Serra Pelada”, as exigências produtivas tornaram-se imperativas e a obra oferece-se de maneira incompleta, amorfa e esvaziada em mais de um aspecto, principalmente no que diz respeito à intragável combinação entre a montagem de Márcio Hashimoto Soares [também responsável pela disritmia do execrável “Faroeste Caboclo” (2013, de René Sampaio)] e a direção fotográfica de Lito Mendes da Rocha, que deixam o filme negativamente evanescente: raramente consegue se perceber algo em foco durante a projeção, tamanha a constância de cortes bruscos e da câmera em perene movimento epiléptico, sendo difícil averiguar os demais elementos cênicos sob tal tremelique, o que afeta sobremaneira a interpretação de Sophie Charlotte como a prostituta Tereza, deveras caricatural em suas pretendidas nuanças emocionais. A cena em que ela tenta fugir dos perseguidores enviados por Juliano, ao som de “Eu Te Amo, Meu Amor”, de Frankito Lopes (um dos artistas que compõem a ótima seleção de canções que assessora a partitura eficiente de Antonio Pinto), é horrível em sua vacuidade efetiva: ouvimos a canção, percebemos que há pessoas correndo na tela e entendemos o contexto sarcástico da circunstância – em comunhão direta com o cinismo enumerativo da narração de Joaquim – mas, visualmente, a seqüência é pífia, um subaproveitamento dos diversos talentos envolvidos.
Para que não se diga que o filme é de todo ruim, algumas imagens fugidias de Juliano sobre um terreno arenoso plano e avermelhado e as reconstituições de fotografias antigas de Serra Pelada em pleno apogeu aurífero, misturadas a trechos de registros documentais da época, demonstram que, se não fosse por causa da montagem aceleradíssima e inconveniente, o trabalho do fotógrafo Lito Mendes da Rocha não seria tão destituído de validade estilística. O mesmo pode ser dito sobre a inculcação tramática das atividades de garimpeiros homossexuais, reduzidos a uma inimizade quase espectral com Juliano, principalmente na figura do agressivo Marcelo (Liu Arisson). As observações pontuais sobre a aceitação tangencial dos comportamentos pederásticos pelos trabalhadores desprovidos de álcool e mulheres, pelo menos até que as notícias de contaminação pela AIDS se espalhem enquanto mais um indício de periculosidade paranóica, é um detalhe bastante relevante e que poderia render uma portentosa subtrama, caso o roteiro fosse dotado de sustentáculos sociológicos consistentes, mas, infelizmente, as intervenções dos personagens homossexuais no filme reduzem-se a pendengas tão gratuitamente provocadas quanto rapidamente resolvidas (ou interrompidas).
O que sobra de realmente válido em “Serra Pelada”, em sua demonstração superficial de como milhares de homens, seduzidos pelos delírios de riqueza, “cavaram uma pirâmide ao contrário, mudando literalmente um morro de lugar”, é o vigor do elenco, formado por atores mui competentes que foram sufocados por condições técnicas que extraíram a humanidade de suas vivificações, fazendo com que o filme seja lancinantemente contaminado pela estrutura geograficamente corrosiva de sua trama. Ao final, as diluições de caráter que são mencionadas enfaticamente na narração de Joaquim impregnam o próprio filme, que é inconcluso, desalinhado, dramaturgicamente inane e contributivamente parco na filmografia dotada de personalidade de Heitor Dhalia. Por mais que seja intentada uma correlação situacional entre o que acontecia no garimpo e eventos históricos mais gerais da História do Brasil, como as lutas estudantis pelas eleições diretas, o roteiro ignora situações-chave, como, por exemplo, as intromissões diretas do governo militar sobre a exploração dos recursos minerais da região Norte da nação.
As imagens televisivas que aparecem vez por outra são desprovidas de criticidade, tanto quanto o são as tentativas insistentes dos filmes produzidos sobre a égide da Globo Filmes em demonstrar que a emissora televisiva correspondente observou de forma emergente as intensas transformações sociais brasileiras da década de 1980. Por estes e outros motivos, “Serra Pelada” é uma verdadeira ode ao desperdício!
Wesley Pereira de Castro.
Narrado pelo personagem Joaquim – chamado apenas de Professor ao longo do filme – da mesma forma jargonada e onisciente que caracteriza “Cidade de Deus” (2002, de Fernando Meirelles & Kátia Lund) e “Tropa de Elite” (2007, de José Padilha), “Serra Pelada” (2013) tem na composição deste protagonista um de seus defeitos mais evidentes, no sentido de que, para além dos esforços actanciais de Júlio Andrade, sua vivência é completamente inorgânica num cotejo com os demais elementos contextuais do filme: não apenas sua amizade de infância com o turrão Juliano é inverossímil como as suas reações desenxabidas tornam praticamente nula a sua presença em cena, sendo desprovidas de veemência emotiva as agruras em que ele se envolve, como ser traído por causa de dinheiro pelo melhor amigo e ter corpo e alma vilipendiados por uma jornada de trabalho inglória.
O que justifica a incoerente perspectiva deste personagem, já que tudo o que acontece recebe o seu crivo analítico, é precisamente a competência dos atores que o circundam, destacando-se a breve e desperdiçada aparição de Matheus Nachtergaele como o ambicioso Carvalho, o sutil cerceamento do vilanaz Lindo Rico (numa surpreendente e espetacular atuação de Wagner Moura), e a consistência compositiva do personagem Juliano, cujo intérprete homônimo dota-o da rudeza imediatista associada ao apelido Grandão desde a supracitada seqüência do interrogatório, que, quando reinserida linearmente na narrativa, não possui o mesmo ímpeto. O motivo: a cadência de eventos enredisticamente atrelados aos efeitos psicologicamente destrutivos da “febre do ouro” é frouxa, o que desencadeia um desfecho absolutamente anticlimático, em que, depois de enviar ao atabalhoado Joaquim um cheque e uma fotografia do momento feliz em que “bamburraram” (ou seja, encontraram uma larga quantidade de ouro, segundo a gíria local), Juliano invade a sede das atividades de Lindo Rico com a intenção de assassiná-lo vingativamente. No auge do que seria mais uma pretensa seqüência de ação, o filme acaba!
A conformação gangsterista das atividades criminais que balizam o roteiro de “Serra Pelada” distancia-no até mesmo do impactante viés telejornalístico apresentado no início e faz com que ele se assemelhe – guardadas as devidas proporções imitativas – a filmes policiais hollywoodianos, como as sagas mafiosas conduzidas por Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese, sendo evidente o quanto Heitor Dhalia tentou estresir alguns dos cacoetes desses diretores, ignorando os próprios traços estilísticos que concatenam obras tão variegadas quanto o genial curta-metragem “Conceição” (2000), o equivocado “Nina” (2004), o pitoresco “O Cheiro do Ralo” (2006) e o ótimo “À Deriva” (2009).
Se, em suas realizações anteriores, Heitor Dhalia destacava-se por parecer (e, eventualmente, conseguir ser) um diretor modernoso, em “Serra Pelada”, as exigências produtivas tornaram-se imperativas e a obra oferece-se de maneira incompleta, amorfa e esvaziada em mais de um aspecto, principalmente no que diz respeito à intragável combinação entre a montagem de Márcio Hashimoto Soares [também responsável pela disritmia do execrável “Faroeste Caboclo” (2013, de René Sampaio)] e a direção fotográfica de Lito Mendes da Rocha, que deixam o filme negativamente evanescente: raramente consegue se perceber algo em foco durante a projeção, tamanha a constância de cortes bruscos e da câmera em perene movimento epiléptico, sendo difícil averiguar os demais elementos cênicos sob tal tremelique, o que afeta sobremaneira a interpretação de Sophie Charlotte como a prostituta Tereza, deveras caricatural em suas pretendidas nuanças emocionais. A cena em que ela tenta fugir dos perseguidores enviados por Juliano, ao som de “Eu Te Amo, Meu Amor”, de Frankito Lopes (um dos artistas que compõem a ótima seleção de canções que assessora a partitura eficiente de Antonio Pinto), é horrível em sua vacuidade efetiva: ouvimos a canção, percebemos que há pessoas correndo na tela e entendemos o contexto sarcástico da circunstância – em comunhão direta com o cinismo enumerativo da narração de Joaquim – mas, visualmente, a seqüência é pífia, um subaproveitamento dos diversos talentos envolvidos.
Para que não se diga que o filme é de todo ruim, algumas imagens fugidias de Juliano sobre um terreno arenoso plano e avermelhado e as reconstituições de fotografias antigas de Serra Pelada em pleno apogeu aurífero, misturadas a trechos de registros documentais da época, demonstram que, se não fosse por causa da montagem aceleradíssima e inconveniente, o trabalho do fotógrafo Lito Mendes da Rocha não seria tão destituído de validade estilística. O mesmo pode ser dito sobre a inculcação tramática das atividades de garimpeiros homossexuais, reduzidos a uma inimizade quase espectral com Juliano, principalmente na figura do agressivo Marcelo (Liu Arisson). As observações pontuais sobre a aceitação tangencial dos comportamentos pederásticos pelos trabalhadores desprovidos de álcool e mulheres, pelo menos até que as notícias de contaminação pela AIDS se espalhem enquanto mais um indício de periculosidade paranóica, é um detalhe bastante relevante e que poderia render uma portentosa subtrama, caso o roteiro fosse dotado de sustentáculos sociológicos consistentes, mas, infelizmente, as intervenções dos personagens homossexuais no filme reduzem-se a pendengas tão gratuitamente provocadas quanto rapidamente resolvidas (ou interrompidas).
O que sobra de realmente válido em “Serra Pelada”, em sua demonstração superficial de como milhares de homens, seduzidos pelos delírios de riqueza, “cavaram uma pirâmide ao contrário, mudando literalmente um morro de lugar”, é o vigor do elenco, formado por atores mui competentes que foram sufocados por condições técnicas que extraíram a humanidade de suas vivificações, fazendo com que o filme seja lancinantemente contaminado pela estrutura geograficamente corrosiva de sua trama. Ao final, as diluições de caráter que são mencionadas enfaticamente na narração de Joaquim impregnam o próprio filme, que é inconcluso, desalinhado, dramaturgicamente inane e contributivamente parco na filmografia dotada de personalidade de Heitor Dhalia. Por mais que seja intentada uma correlação situacional entre o que acontecia no garimpo e eventos históricos mais gerais da História do Brasil, como as lutas estudantis pelas eleições diretas, o roteiro ignora situações-chave, como, por exemplo, as intromissões diretas do governo militar sobre a exploração dos recursos minerais da região Norte da nação.
As imagens televisivas que aparecem vez por outra são desprovidas de criticidade, tanto quanto o são as tentativas insistentes dos filmes produzidos sobre a égide da Globo Filmes em demonstrar que a emissora televisiva correspondente observou de forma emergente as intensas transformações sociais brasileiras da década de 1980. Por estes e outros motivos, “Serra Pelada” é uma verdadeira ode ao desperdício!
Wesley Pereira de Castro.
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
O ABISMO PRATEADO (Brasil, 2011). Direção: Karim Aïnouz.
Apesar de a protagonista ser Alessandra Negrini e de a sua personagem alvoroçadamente angustiada estar presente em quase todas as cenas, o fato de este filme iniciar e terminar sob a perspectiva dos homens com que ela se envolve não é nada casual. Alegadamente inspirado na canção “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque, cujo maior mérito é ser conduzida a partir de um eu-lírico feminino gradativamente autoconfiante, o roteiro de “O Abismo Prateado”, escrito por Beatriz Bracher em colaboração com o próprio diretor, ignora tudo aquilo que é relevante na letra da canção, desde o cínico desejo de felicidade declarado pelo amante que abandona a mulher até a tardia conquista de auto-estima desta última a partir da percepção de que fora amada “bem mais e melhor” por outros homens. O que resta é uma translação malfeita do trecho compreendido nestes versos: “quando você me deixou, meu bem/ (...)/ quis morrer de ciúme, quase enlouqueci/ mas, depois, como era de costume, obedeci”.
Difícil entender como o mesmo artista responsável pela obra-prima “Madame Satã” (2002) e pelo encantador “O Céu de Suely” (2006) – sem contar o excepcional “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, co-dirigido por Marcelo Gomes) – se deixou envolver num projeto tão superficial e entulhado de preconceitos de classe, que, se possui algum mérito infinitesimal, este está justamente em sua assunção involuntária como sintoma composicional: o filme é muito elucidativo em sua representação do cotidiano desenxabido da classe média carioca, em que comprar uma passagem de avião de um dia para o outro e hospedar-se solitariamente num motel de luxo são atitudes corriqueiras. Ou seja, se “O Abismo Prateado” acerta em alguma coisa é justamente quando ele mais erra na consecução das pretensões directivas, bastante evidentes, especialmente no que diz respeito ao desenho de som.
Dotado de um estilo consagrado, entre diversas virtudes, pela excelente utilização da trilha sonora, neste filme Karim Aïnouz perpetua associações constrangedoras com músicas xaroposas, principalmente na ridícula seqüência em que “You Make Me Feel Brand New”, da banda Simply Red, supostamente executada de forma diegética na cena em que a protagonista se senta no táxi de uma motorista (Carla Ribas) também atormentada por problemas amorosos, permanece sendo ouvida (de forma igualmente distanciada) quando ela desce do veículo. A pretensa ironia dramática relacionada à defasagem entre o tom positivamente declarativo da canção e o comportamento lamurioso da personagem soçobra consideravelmente dada a perniciosidade deste prolongamento não-diegético, que também acomete os momentos posteriores àquele em que a protagonista Violeta dança ao som de “Maniac”, de Michael Sembello, numa boate, ou quando ela ouve, por acaso, “Quando um Grande Amor se Faz”, na versão de Cleiton e Camargo, numa sorveteria praiana.
A entrada em cena da pequena Maria Isabel (Gabi Pereira), cuja simpatia é vergonhosamente forçada no instante em que ela dança ao som de “Só Love”, de Claudinho & Buchecha, só deixa ainda mais evidente o quanto o diretor foi tremendamente infeliz na seleção musical, não no que diz respeito à qualidade das canções – até porque ressignificar canções consideradas bregas ou excessivamente ‘pop’ é um dos elementos mais aplaudíveis de seus filmes anteriores [vide o seu ótimo segmento na produção coletiva “Desassossego (Filme das Maravilhas)” (2010)] – mas no modo desengonçado com que as mesmas aparecem. As exceções estão a cargo da partitura original de Tejo Damasceno, Rica Amabis e Dustan Gallas, em especial na cena da academia de ginástica, cujos acordes eletrônicos ouvidos num determinado ambiente hipertrofiam o mal-estar emotivo sentido por Violeta depois que escuta a mensagem de abandono de seu marido Djalma (Otto Jr.), somente mais tarde ouvida pelo espectador.
Voltando à questão das perspectivas masculinas que iniciam e terminam o filme – e que, por dedução, transformam o langor de Violeta num interstício secundário – vale lembrar que as primeiras imagens do filme mostram Djalma nadando à noite numa praia e, em seguida, caminhando de sunga pelas ruas circunvizinhas ao seu apartamento, ostentando uma expressão de enfado que antecipa a declaração de sufocamento e de desamor que ele grava na caixa postal do telefone celular de Violeta. O problema é que a cópula entusiasmada que se segue e o diálogo simpático que é travado entre ele e seu filho adolescente (João Vítor da Silva), através da porta vítrea de um banheiro, tornam inverossímil a ruptura súbita da relação amorosa (e familiar) duradoura que fora compartilhada entre estes personagens. Do mesmo modo, a rapidez com que o humilde Nassir (Thiago Martins, numa interpretação realmente valorativa) se envolve com a protagonista é dotada de semelhante imponderação, sendo deveras afoito o plano subjetivo no interior da van conduzida por ele, ao som de uma péssima versão de “Olhos nos Olhos” cantada pela graciosa Barbara Eugênia, quando sabemos que ele continua a pensar na mulher que acompanhou até o aeroporto, ao lado da filha pequena.
Aliás, as situações protagonizadas por Maria Isabel são insuportáveis, tamanho o descaramento forçoso na exalação do conjecturado carisma da menina, que desaparece em meio a detalhes desleixados como a exclamação “porcaria de vida!” no momento em que ela defeca ou o desdém frente a um sorvete de morango quando sabemos que a garota vive numa situação economicamente mui dificultosa com o pai, a ponto de precisar dormir no veículo que ele adquirira recentemente. As brincadeiras infantis no interior do aeroporto são o píncaro da desconexão classista, francamente vergonhosas quando comparadas à leveza das cenas do dia-a-dia nordestino mostradas no já citado “O Céu de Suely”.
No afã por encontrar um paralelo conteudístico com os variegados equívocos deste filme, talvez se possa encontrá-lo na telessérie “Alice” (2008), roteirizada e eventualmente dirigida por Karim Aïnouz, novamente em parceria com Marcelo Gomes, para o canal fechado HBO. Os enredos focados no arrivismo empresarial da protagonista desta série televisiva – que também deu origem a um díptico de telefilmes, sendo um deles [“Alice: O Primeiro Dia do Resto da Minha Vida” (2010)] dirigido pelo cineasta – têm a ver com a entrega precipitada de Violeta à depressão deambulatória que se segue ao repúdio marital inesperado de que foi vítima.
Se, por um lado, a cena em que ela não consegue se concentrar numa de suas atividades como dentista por causa da ansiedade emotiva é inconvincente, bem como a queda de bicicleta que ela sofre e que será mencionada ao longo do restante da projeção por conta das feridas epidérmicas decorrentes da mesma, por outro, o instante em que Violeta senta-se calmamente no matagal próximo ao local onde se instalou a filial de uma barulhenta agência de construção imobiliária é brevemente elogiável, tanto quanto as aparições de expressivos transeuntes em cenas de amostragem urbana. Afora isso, “O Abismo Prateado” é uma desagradável perversão do enredo de uma das mais belas canções românticas do Brasil, transformado na extensão vendável de um manual de auto-ajuda psicológica para mulheres aquisitivamente bem-sucedidas que não sabem lidar com imprevistos emocionais. Um lamentável retrocesso na filmografia de um dos mais interessantes cineastas brasileiros surgidos nos últimos anos!
Wesley Pereira de Castro.
Difícil entender como o mesmo artista responsável pela obra-prima “Madame Satã” (2002) e pelo encantador “O Céu de Suely” (2006) – sem contar o excepcional “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, co-dirigido por Marcelo Gomes) – se deixou envolver num projeto tão superficial e entulhado de preconceitos de classe, que, se possui algum mérito infinitesimal, este está justamente em sua assunção involuntária como sintoma composicional: o filme é muito elucidativo em sua representação do cotidiano desenxabido da classe média carioca, em que comprar uma passagem de avião de um dia para o outro e hospedar-se solitariamente num motel de luxo são atitudes corriqueiras. Ou seja, se “O Abismo Prateado” acerta em alguma coisa é justamente quando ele mais erra na consecução das pretensões directivas, bastante evidentes, especialmente no que diz respeito ao desenho de som.
Dotado de um estilo consagrado, entre diversas virtudes, pela excelente utilização da trilha sonora, neste filme Karim Aïnouz perpetua associações constrangedoras com músicas xaroposas, principalmente na ridícula seqüência em que “You Make Me Feel Brand New”, da banda Simply Red, supostamente executada de forma diegética na cena em que a protagonista se senta no táxi de uma motorista (Carla Ribas) também atormentada por problemas amorosos, permanece sendo ouvida (de forma igualmente distanciada) quando ela desce do veículo. A pretensa ironia dramática relacionada à defasagem entre o tom positivamente declarativo da canção e o comportamento lamurioso da personagem soçobra consideravelmente dada a perniciosidade deste prolongamento não-diegético, que também acomete os momentos posteriores àquele em que a protagonista Violeta dança ao som de “Maniac”, de Michael Sembello, numa boate, ou quando ela ouve, por acaso, “Quando um Grande Amor se Faz”, na versão de Cleiton e Camargo, numa sorveteria praiana.
A entrada em cena da pequena Maria Isabel (Gabi Pereira), cuja simpatia é vergonhosamente forçada no instante em que ela dança ao som de “Só Love”, de Claudinho & Buchecha, só deixa ainda mais evidente o quanto o diretor foi tremendamente infeliz na seleção musical, não no que diz respeito à qualidade das canções – até porque ressignificar canções consideradas bregas ou excessivamente ‘pop’ é um dos elementos mais aplaudíveis de seus filmes anteriores [vide o seu ótimo segmento na produção coletiva “Desassossego (Filme das Maravilhas)” (2010)] – mas no modo desengonçado com que as mesmas aparecem. As exceções estão a cargo da partitura original de Tejo Damasceno, Rica Amabis e Dustan Gallas, em especial na cena da academia de ginástica, cujos acordes eletrônicos ouvidos num determinado ambiente hipertrofiam o mal-estar emotivo sentido por Violeta depois que escuta a mensagem de abandono de seu marido Djalma (Otto Jr.), somente mais tarde ouvida pelo espectador.
Voltando à questão das perspectivas masculinas que iniciam e terminam o filme – e que, por dedução, transformam o langor de Violeta num interstício secundário – vale lembrar que as primeiras imagens do filme mostram Djalma nadando à noite numa praia e, em seguida, caminhando de sunga pelas ruas circunvizinhas ao seu apartamento, ostentando uma expressão de enfado que antecipa a declaração de sufocamento e de desamor que ele grava na caixa postal do telefone celular de Violeta. O problema é que a cópula entusiasmada que se segue e o diálogo simpático que é travado entre ele e seu filho adolescente (João Vítor da Silva), através da porta vítrea de um banheiro, tornam inverossímil a ruptura súbita da relação amorosa (e familiar) duradoura que fora compartilhada entre estes personagens. Do mesmo modo, a rapidez com que o humilde Nassir (Thiago Martins, numa interpretação realmente valorativa) se envolve com a protagonista é dotada de semelhante imponderação, sendo deveras afoito o plano subjetivo no interior da van conduzida por ele, ao som de uma péssima versão de “Olhos nos Olhos” cantada pela graciosa Barbara Eugênia, quando sabemos que ele continua a pensar na mulher que acompanhou até o aeroporto, ao lado da filha pequena.
Aliás, as situações protagonizadas por Maria Isabel são insuportáveis, tamanho o descaramento forçoso na exalação do conjecturado carisma da menina, que desaparece em meio a detalhes desleixados como a exclamação “porcaria de vida!” no momento em que ela defeca ou o desdém frente a um sorvete de morango quando sabemos que a garota vive numa situação economicamente mui dificultosa com o pai, a ponto de precisar dormir no veículo que ele adquirira recentemente. As brincadeiras infantis no interior do aeroporto são o píncaro da desconexão classista, francamente vergonhosas quando comparadas à leveza das cenas do dia-a-dia nordestino mostradas no já citado “O Céu de Suely”.
No afã por encontrar um paralelo conteudístico com os variegados equívocos deste filme, talvez se possa encontrá-lo na telessérie “Alice” (2008), roteirizada e eventualmente dirigida por Karim Aïnouz, novamente em parceria com Marcelo Gomes, para o canal fechado HBO. Os enredos focados no arrivismo empresarial da protagonista desta série televisiva – que também deu origem a um díptico de telefilmes, sendo um deles [“Alice: O Primeiro Dia do Resto da Minha Vida” (2010)] dirigido pelo cineasta – têm a ver com a entrega precipitada de Violeta à depressão deambulatória que se segue ao repúdio marital inesperado de que foi vítima.
Se, por um lado, a cena em que ela não consegue se concentrar numa de suas atividades como dentista por causa da ansiedade emotiva é inconvincente, bem como a queda de bicicleta que ela sofre e que será mencionada ao longo do restante da projeção por conta das feridas epidérmicas decorrentes da mesma, por outro, o instante em que Violeta senta-se calmamente no matagal próximo ao local onde se instalou a filial de uma barulhenta agência de construção imobiliária é brevemente elogiável, tanto quanto as aparições de expressivos transeuntes em cenas de amostragem urbana. Afora isso, “O Abismo Prateado” é uma desagradável perversão do enredo de uma das mais belas canções românticas do Brasil, transformado na extensão vendável de um manual de auto-ajuda psicológica para mulheres aquisitivamente bem-sucedidas que não sabem lidar com imprevistos emocionais. Um lamentável retrocesso na filmografia de um dos mais interessantes cineastas brasileiros surgidos nos últimos anos!
Wesley Pereira de Castro.
terça-feira, 15 de outubro de 2013
GRAVIDADE ('Gravity') EUA/Reino Unido, 2013. Direção: Alfonso Cuarón.
Num momento providencial deste filme, descobrimos que a morte acidental de sua filha num jardim-de-infância foi o fato traumático que permitiu que a Dra. Ryan Stone, personagem de Sandra Bullock, se tornasse tão abnegada em relação ao seu trabalho como médica assistente da NASA. Nos créditos finais, o diretor Alfonso Cuarón dedica o filme à sua própria mãe. Apesar de aparentemente distanciadas, estas duas percepções são essenciais para compreender a função desempenhada por “Gravidade” (2013) na filmografia do cineasta, celebrado por sua habilidade técnica – em especial, no que diz respeito ao uso elaborado de planos-seqüências – mas também dotado de autoralidade, principalmente no que diz respeito à importância que a noção de maternidade desempenha em seus longas-metragens.
Se, por um lado, o tema da orfandade é central em obras como “A Princesinha” (1995) e “Grandes Esperanças” (1998), além de ecoar significativamente em “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (2004), por outro, ele é transfigurado em “E Sua Mãe Também” (2001), cujo magistral roteiro ressignifica o tema da rebeldia juvenil que, numa olhadela bastante superficial, associaria este filme a outras produções protagonizadas por adolescentes ávidos por fazerem sexo. A ligação direta entre “Filhos da Esperança” (2006) e o filme mais recente, ambos atrelados ao gênero ficção científica, mas sob vieses completamente distintos, deixa ainda mais evidente o quanto a temática anteriormente abordada é provida de interesse analítico, não obstante obnubilada pelos malabarismos directivos e pela versatilidade consistente dos enredos.
A constância quase obsessiva de signos maternais/reprodutivos (a Dra. Ryan flutuando como se fosse um feto após ter se despido, pedaços de aeronave que adentram a atmosfera terrestre como se fossem espermatozóides fecundando um óvulo, nosso planeta antonomasiado como “mãe Terra”, etc.) leva-nos a constatar que, por detrás das limitações cíclicas da cadeia de perigos espaciais que ameaçam a vida da Dra. Stone, o que é privilegiado é a associação entre a sua gana por sobrevivência e a redefinição de seu instinto maternal, sendo a imagem final – um ‘contra-plongée’ da personagem, pisando firme na lama do local em que aterrissou – uma precipitada reelaboração darwiniana da primazia evolutiva da mulher sobre os demais espécimes animais, suspeitosamente contaminada pelo triunfalismo estadunidense que invade o enredo.
Por mais que as convenções do gênero tornem verossímil o sobejo de ameaças cósmicas que perseguem Ryan, a insistência no enfoque da bandeira norte-americana de seu uniforme de astronauta é dotada de um sentido muito maior que a mera casualidade gentílica, o que se torna absolutamente patente quando é noticiado que o satélite de um país outrora comunista foi autobombardeado por um míssil e na exposição das dificuldades experimentadas pela protagonista quando tenta manobrar veículos espaciais respectivamente controlados pela Rússia e pela China, cujas diferenciações alfabético-tipográficas aparecem como problema nodal, a ponto de ela brincar que ‘no sabe hablar chino’ quando se depara com um teclado de computador confeccionado a partir de ideogramas chineses. Todo este conjunto de empecilhos culturais (estrangeiros) para a sobrevivência da Dra. Stone em pleno espaço externo do planeta Terra é dotado de uma oportuna constituição nacionalista, que prejudica sobremaneira os pretendidos êxitos roteirísticos do diretor e de seu filho Jonás Cuarón. Em outras palavras, malgrado ser otimamente dirigido, eficientemente montado (pelo próprio diretor, em colaboração com Mark Sanger) e brilhantemente fotografado, o roteiro de “Gravidade” parece tão atirado a esmo quanto a personagem principal, em mais de um momento do filme.
Além de ter trabalhado em quase todos os filmes do diretor Alfonso Cuarón, o fotógrafo Emmanuel Lubezki também é conhecido por sua colaboração nos filmes recentes do diretor Terrence Malick, o que justifica o magnificente pendor naturalista na derradeira seqüência, quando uma belíssima tomada submarina permite que percebamos um anuro nadando ao lado de Ryan, quando ela tenta subir à superfície para respirar. Ao conseguir emergir, mosquitos circundam-na, antes que ela descanse na água por alguns minutos, antes de levantar-se tão imponentemente quanto uma heroína dos antigos filmes B de ficção cientifica, especialmente “O Ataque da Mulher de 15 Metros” (1958, de Nathan Juran). Não seria inadequado vincular o modo impávido com que a protagonista, decidida a sobreviver, adentra a paisagem natural desconhecida ao modo justificadamente invasivo com que as incumbências de colonização norte-americana são organizadas na contemporaneidade, através do soslaio simbólico preponderante da dominação cultural. Nessa perspectiva, o extraordinário recurso da filmagem em 3D é paradigmático, visto que a suscitação de reações somáticas por parte dos espectadores em relação aos objetos rapidamente deslocados na tela possibilita uma nova abordagem do caráter técnico das máquinas ópticas que, de acordo com o teórico Jean-Louis Baudry, é relacionado à prática científica (no caso, ao aprimoramento tecnológico das formas cinematográficas) “para mascarar não apenas o seu emprego nas produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são suscetíveis de provocar. Sua base científica lhes assegura uma espécie de neutralidade e evita que se tornem objeto de um questionamento”.
Não é por acaso, portanto, que, graças ao uso genial de longos planos, às vezes realizando voltas de 360º, a visão do espectador confunda-se com a de Ryan Stone à deriva no espaço, tamanho o excesso proposital de ângulos que se confundem com o ponto de vista da protagonista no interior de seu capacete tecnologicamente muito desenvolvido. A periculosidade inerente a quase tudo o que circunda a Dra. Stone leva-nos a introjetar o seu ímpeto sobrevivencial, que se sobrepõe rapidamente ao anterior alquebramento deambulatório decorrente da perda de sua filha, quando ela confessa, entristecida, que costumava dirigir seu automóvel a esmo, quando saía do trabalho num hospital, pois não sentia ânimo de retornar para um lar solitário. No quartel final do filme, Ryan deixa claro que quer “voltar para casa” e, por causa disso, é dotada de uma determinação física até então entorpecida. A forma do filme está rigorosamente submetida ao seu conteúdo ideológico, portanto!
Tudo o que foi mencionado até este ponto faz com que a avaliação qualitativa deste filme seja balizada por aspectos que transcendem a pretensa evolução das técnicas cinematográficas (já que evolução parece um termo-chave do filme, cuja imputação nauseante sobre o acompanhamento espectatorial assume-se como uma espécie de metáfora compartilhada dos enjôos físicos de uma gravidez), mas que, ao mesmo tempo, fixam-se criticamente a tais aspectos, no sentido de que os estratagemas de contaminação ideológica destacados por Jean-Louis Baudry são demasiado evidentes.
Em outras palavras: por mais impressionante que seja esta obra quando analisamos os seus elementos técnicos de forma desmembrada (a direção é excelente, as atuações de Sandra Bullock e George Clooney são muito boas, a fotografia é acachapante), numa percepção mais geral, “Gravidade” soa mecânico em seu entulhamento de riscos físicos e em sua progressão repetitiva de situações que situam a vida da Dra. Stone no limiar invariável da superação. Conforme antecipado, tanto o roteiro é dramaticamente esvaziado em sua sujeição disrítmica às explosões, acidentes, incêndios e quedas (in)esperadas quanto a trilha sonora de Steven Price é aplicada de forma disfuncional em situações que seriam muito mais efetivamente assustadoras se conduzidas em silêncio (vide o instante genial em que a Dra. Stone crê que seu companheiro de equipe fora resgatado no módulo espacial chinês em que se encontrava).
Para além de seus alucinantes (no bom e no mau sentido) momentos de concatenação imagético-sonora, “Gravidade” é um filme que empilha diversos arremedos de clímaxes sensórios com o intuito de apregoar um discurso: a fim de caminhar novamente sobre a Terra que antes lhe intimidava por causa da generalização de um trauma familiar (hipertrofiado no espaço sideral quando a fotografia da família de um astronauta falecido flutua sobre o seu rosto destruído por uma colisão objetal), a Dra. Ryan Stone precisa atender ao conselho que seu amigo insistentemente bem-humorado lhe concede quando está prestes a zanzar pelo espaço. Diz-lhe ele: “tu precisas aprender a deixar ir”... A minuciosa correlação entre o que é percebido pelo espectador e aquilo que é visto pela protagonista, através da imitação de seu olhar, serve como canal de transmissão ideal deste conselho, que atrela-se a uma conjuntura de validação ufanista comum em Hollywood mas dissonante em relação à obra cuaroniana.
Aqui, maternidade e patriotismo se confundem de forma perniciosa, em que a habilidade elogiável no uso da perspectiva tridimensional serve para que o filme esteja dotado de uma “espécie de aparelho psíquico substitutivo, respondendo ao modelo definido pela ideologia dominante”, para citar novamente o vaticínio de Jean-Louis Baudry em seu famoso artigo de 1970, “Cinema: Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base”, que nos ajuda bastante a compreender as intenções sub-reptícias do aprimoramento técnico deste filme.
Se, nos longas-metragens prévios do diretor, o que acontecia no entorno (sociopolítico) dos personagens estabelecia as transformações comportamentais que eles demonstravam ao longo de ótimos roteiros, em “Gravidade”, a motivação sobrevivencial da protagonista psicologicamente abalada é a mera explosão centrífuga de uma propensão ao domínio ambiental (e geográfico) que se encontrava adormecido na protagonista e que é imprescindível – segundo os desígnios condutivos do entrecho – que também esteja prestes a ser despertado nas reações do público. A ode embevecida à maternidade levada a cabo por este filme não é contingente, estando a propensão tematicamente autoral de Alfonso Cuarón infelizmente cooptada no processo de legitimação colonizatória estadunidense.
Wesley Pereira de Castro.
Se, por um lado, o tema da orfandade é central em obras como “A Princesinha” (1995) e “Grandes Esperanças” (1998), além de ecoar significativamente em “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (2004), por outro, ele é transfigurado em “E Sua Mãe Também” (2001), cujo magistral roteiro ressignifica o tema da rebeldia juvenil que, numa olhadela bastante superficial, associaria este filme a outras produções protagonizadas por adolescentes ávidos por fazerem sexo. A ligação direta entre “Filhos da Esperança” (2006) e o filme mais recente, ambos atrelados ao gênero ficção científica, mas sob vieses completamente distintos, deixa ainda mais evidente o quanto a temática anteriormente abordada é provida de interesse analítico, não obstante obnubilada pelos malabarismos directivos e pela versatilidade consistente dos enredos.
A constância quase obsessiva de signos maternais/reprodutivos (a Dra. Ryan flutuando como se fosse um feto após ter se despido, pedaços de aeronave que adentram a atmosfera terrestre como se fossem espermatozóides fecundando um óvulo, nosso planeta antonomasiado como “mãe Terra”, etc.) leva-nos a constatar que, por detrás das limitações cíclicas da cadeia de perigos espaciais que ameaçam a vida da Dra. Stone, o que é privilegiado é a associação entre a sua gana por sobrevivência e a redefinição de seu instinto maternal, sendo a imagem final – um ‘contra-plongée’ da personagem, pisando firme na lama do local em que aterrissou – uma precipitada reelaboração darwiniana da primazia evolutiva da mulher sobre os demais espécimes animais, suspeitosamente contaminada pelo triunfalismo estadunidense que invade o enredo.
Por mais que as convenções do gênero tornem verossímil o sobejo de ameaças cósmicas que perseguem Ryan, a insistência no enfoque da bandeira norte-americana de seu uniforme de astronauta é dotada de um sentido muito maior que a mera casualidade gentílica, o que se torna absolutamente patente quando é noticiado que o satélite de um país outrora comunista foi autobombardeado por um míssil e na exposição das dificuldades experimentadas pela protagonista quando tenta manobrar veículos espaciais respectivamente controlados pela Rússia e pela China, cujas diferenciações alfabético-tipográficas aparecem como problema nodal, a ponto de ela brincar que ‘no sabe hablar chino’ quando se depara com um teclado de computador confeccionado a partir de ideogramas chineses. Todo este conjunto de empecilhos culturais (estrangeiros) para a sobrevivência da Dra. Stone em pleno espaço externo do planeta Terra é dotado de uma oportuna constituição nacionalista, que prejudica sobremaneira os pretendidos êxitos roteirísticos do diretor e de seu filho Jonás Cuarón. Em outras palavras, malgrado ser otimamente dirigido, eficientemente montado (pelo próprio diretor, em colaboração com Mark Sanger) e brilhantemente fotografado, o roteiro de “Gravidade” parece tão atirado a esmo quanto a personagem principal, em mais de um momento do filme.
Além de ter trabalhado em quase todos os filmes do diretor Alfonso Cuarón, o fotógrafo Emmanuel Lubezki também é conhecido por sua colaboração nos filmes recentes do diretor Terrence Malick, o que justifica o magnificente pendor naturalista na derradeira seqüência, quando uma belíssima tomada submarina permite que percebamos um anuro nadando ao lado de Ryan, quando ela tenta subir à superfície para respirar. Ao conseguir emergir, mosquitos circundam-na, antes que ela descanse na água por alguns minutos, antes de levantar-se tão imponentemente quanto uma heroína dos antigos filmes B de ficção cientifica, especialmente “O Ataque da Mulher de 15 Metros” (1958, de Nathan Juran). Não seria inadequado vincular o modo impávido com que a protagonista, decidida a sobreviver, adentra a paisagem natural desconhecida ao modo justificadamente invasivo com que as incumbências de colonização norte-americana são organizadas na contemporaneidade, através do soslaio simbólico preponderante da dominação cultural. Nessa perspectiva, o extraordinário recurso da filmagem em 3D é paradigmático, visto que a suscitação de reações somáticas por parte dos espectadores em relação aos objetos rapidamente deslocados na tela possibilita uma nova abordagem do caráter técnico das máquinas ópticas que, de acordo com o teórico Jean-Louis Baudry, é relacionado à prática científica (no caso, ao aprimoramento tecnológico das formas cinematográficas) “para mascarar não apenas o seu emprego nas produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são suscetíveis de provocar. Sua base científica lhes assegura uma espécie de neutralidade e evita que se tornem objeto de um questionamento”.
Não é por acaso, portanto, que, graças ao uso genial de longos planos, às vezes realizando voltas de 360º, a visão do espectador confunda-se com a de Ryan Stone à deriva no espaço, tamanho o excesso proposital de ângulos que se confundem com o ponto de vista da protagonista no interior de seu capacete tecnologicamente muito desenvolvido. A periculosidade inerente a quase tudo o que circunda a Dra. Stone leva-nos a introjetar o seu ímpeto sobrevivencial, que se sobrepõe rapidamente ao anterior alquebramento deambulatório decorrente da perda de sua filha, quando ela confessa, entristecida, que costumava dirigir seu automóvel a esmo, quando saía do trabalho num hospital, pois não sentia ânimo de retornar para um lar solitário. No quartel final do filme, Ryan deixa claro que quer “voltar para casa” e, por causa disso, é dotada de uma determinação física até então entorpecida. A forma do filme está rigorosamente submetida ao seu conteúdo ideológico, portanto!
Tudo o que foi mencionado até este ponto faz com que a avaliação qualitativa deste filme seja balizada por aspectos que transcendem a pretensa evolução das técnicas cinematográficas (já que evolução parece um termo-chave do filme, cuja imputação nauseante sobre o acompanhamento espectatorial assume-se como uma espécie de metáfora compartilhada dos enjôos físicos de uma gravidez), mas que, ao mesmo tempo, fixam-se criticamente a tais aspectos, no sentido de que os estratagemas de contaminação ideológica destacados por Jean-Louis Baudry são demasiado evidentes.
Em outras palavras: por mais impressionante que seja esta obra quando analisamos os seus elementos técnicos de forma desmembrada (a direção é excelente, as atuações de Sandra Bullock e George Clooney são muito boas, a fotografia é acachapante), numa percepção mais geral, “Gravidade” soa mecânico em seu entulhamento de riscos físicos e em sua progressão repetitiva de situações que situam a vida da Dra. Stone no limiar invariável da superação. Conforme antecipado, tanto o roteiro é dramaticamente esvaziado em sua sujeição disrítmica às explosões, acidentes, incêndios e quedas (in)esperadas quanto a trilha sonora de Steven Price é aplicada de forma disfuncional em situações que seriam muito mais efetivamente assustadoras se conduzidas em silêncio (vide o instante genial em que a Dra. Stone crê que seu companheiro de equipe fora resgatado no módulo espacial chinês em que se encontrava).
Para além de seus alucinantes (no bom e no mau sentido) momentos de concatenação imagético-sonora, “Gravidade” é um filme que empilha diversos arremedos de clímaxes sensórios com o intuito de apregoar um discurso: a fim de caminhar novamente sobre a Terra que antes lhe intimidava por causa da generalização de um trauma familiar (hipertrofiado no espaço sideral quando a fotografia da família de um astronauta falecido flutua sobre o seu rosto destruído por uma colisão objetal), a Dra. Ryan Stone precisa atender ao conselho que seu amigo insistentemente bem-humorado lhe concede quando está prestes a zanzar pelo espaço. Diz-lhe ele: “tu precisas aprender a deixar ir”... A minuciosa correlação entre o que é percebido pelo espectador e aquilo que é visto pela protagonista, através da imitação de seu olhar, serve como canal de transmissão ideal deste conselho, que atrela-se a uma conjuntura de validação ufanista comum em Hollywood mas dissonante em relação à obra cuaroniana.
Aqui, maternidade e patriotismo se confundem de forma perniciosa, em que a habilidade elogiável no uso da perspectiva tridimensional serve para que o filme esteja dotado de uma “espécie de aparelho psíquico substitutivo, respondendo ao modelo definido pela ideologia dominante”, para citar novamente o vaticínio de Jean-Louis Baudry em seu famoso artigo de 1970, “Cinema: Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base”, que nos ajuda bastante a compreender as intenções sub-reptícias do aprimoramento técnico deste filme.
Se, nos longas-metragens prévios do diretor, o que acontecia no entorno (sociopolítico) dos personagens estabelecia as transformações comportamentais que eles demonstravam ao longo de ótimos roteiros, em “Gravidade”, a motivação sobrevivencial da protagonista psicologicamente abalada é a mera explosão centrífuga de uma propensão ao domínio ambiental (e geográfico) que se encontrava adormecido na protagonista e que é imprescindível – segundo os desígnios condutivos do entrecho – que também esteja prestes a ser despertado nas reações do público. A ode embevecida à maternidade levada a cabo por este filme não é contingente, estando a propensão tematicamente autoral de Alfonso Cuarón infelizmente cooptada no processo de legitimação colonizatória estadunidense.
Wesley Pereira de Castro.
Assinar:
Postagens (Atom)