
Por mais truísta que este termo pareça, conflito é um substantivo muito útil para se começar a entender o porquê de “O Palhaço” ser um filme tão falho e defeituoso, mas, ainda assim e justamente por isso, extremamente arrebatador: este é um filme não apenas marcado pelos conflitos geracionais, produtivos e ideológicos, mas também pelas crises intencionais, voluntárias ou não. Assim, de supetão, há de se convir que Selton Mello é um artista pretensioso. Por mais talentoso que ele seja unanimemente considerado, os seus trabalhos anteriores, tanto como ator como enquanto diretor, demonstram um sobejo de presunção efetiva que, não por acaso, consegue ser dirimido pela ótima demonstração de suas múltiplas vocações artísticas.
Em “O Palhaço”, entretanto, esta presunção essencial é subsumida a uma dificuldade congênita na definição de qual acepção do adjetivo “popular” é mais vislumbrada pelo diretor: ele deseja realizar um filme que dialoga prontamente com as massas ou, ao invés disso, concentra-se em emular respeitosamente o tipo de atividade cultural realizada diretamente por aqueles que também consomem o que produzem? Em pleno século XXI globalizado, é ainda possível realizar um filme que tente demonstrar que estas duas polaridades assertivas não carecem ser marcadas pela pugna? Justamente por não ter conseguido responder a estas perguntas, “O Palhaço” é sumamente encantador. Afinal de contas, ele é um filme que, antes de qualquer coisa, aprende com seus erros e os difunde enquanto apanágios. Muitíssimo bom, para começo de conversa.
Apesar de, aparentemente, o papel interpretado pelo próprio Selton Mello corresponder ao personagem-título, ele é o elemento actancial menos interessante do filme como um todo. Mais uma vez, entretanto, este suposto defeito de execução não configura um demérito para o filme, mas sim um positivo adendo ao elogio anterior de sua exposição benfazeja de conflitos essenciais: se, por um lado, a composição do personagem Benjamim é um tanto rasteira por ser precipitada, por outro, é justamente esta incipiência compositiva que agiliza a identificação com o espectador no que tange ao discurso-chave proferido por Jackson Antunes; “nesta vida, se faz aquilo que se sabe fazer”. Ao final do filme, se concordará que Benjamim é, marcadamente, um palhaço.
E ele não é o único a constatar isso, o que traz à tona outra das grandes virtudes do filme: a devoção igualitária a personagens menores, como os simpáticos membros da trupe do circo Esperança (vivificados apaixonadamente por Teuda Bara, Thogun, Cadu Fávero, Tony Tonelada, entre outros), a encantatória menininha vivida por Larissa Manoela (que desempenha um papel fundamentalíssimo numa das últimas seqüências do filme) e a magnífica personificação de Paulo José, que despe o palhaço Valdemar/Puro Sangue da infalibilidade comum a este tipo de composição e, ao invés disso, humaniza-o e mostra-o tão realista quanto possível num filme com esta proposta cômico-dramática. Difícil conservar-se indiferente aos destinos dos personagens que desfilam suas risadas e necessidades na tela, portanto.
Para que os conflitos adicionais e benéficos do filme pudessem ser ainda mais pungentes, a impecável trilha sonora de Plínio Profeta foi de suma acertabilidade, de maneira que os acordes graves e comicamente pomposos de seus instrumentos diversificados assemelham-se deveras a uma sonoridade cigana em muito condizente com o inevitável nomadismo da trama. Ou seja, as músicas originais do filme não apenas são mágicos complementos aos espetáculos e motes tramáticos dos personagens circenses como também se demonstram qualitativa e percussivamente superiores.
No plano do convencimento emocional decorrente desta trilha sonora, foram sabiamente evitadas as armadilhas xaroposas normalmente comuns neste tipo de entrecho, da mesma forma que a ótima montagem de Marília Moraes e do próprio Selton Mello também foi muitíssimo inteligente ao não servir-se de inconvenientes câmeras lentas. As cenas que decorrem dentro e fora do picadeiro são respeitadas em seu tempo cronológico, no máximo assemelhadas ao estilo elíptico de diretores como Aki Kaurismäki e Jim Jarmusch, nos quais o diretor Selton Mello deve ter se inspirado. E, sendo aqui necessário exaltar os acertos pessoais do diretor brasileiro, o gracioso plano-seqüência que antecede os créditos finais arrebata-nos sobremaneira pela sinceridade com que conduz a uma homenagem sincera a São Filomeno, padroeiro dos artistas mambembes que o filme retrata com tamanha paixão.
No afã por um parágrafo conclusivo que disfarce a simpatia afetiva que este filme desencadeia e se concentre em seus bem-sucedidos atributos técnicos, convém vangloriar a iluminada direção de fotografia de Adrian Teijido e o roteiro composto por ‘gags’ biográficas complementares de Marcelo Vindicato e, mais uma vez, Selton Mello. E, neste roteiro, é mister destacar que mais um conflito essencial se instaura na diegese: o conflito inclemente entre as deturpações monetárias e os anseios artísticos, conflito este que se manifesta nos chistes de que o personagem do mecânico vivido Tonico Pereira se vale para receber o dinheiro dos clientes cujo caminhão estava quebrado, nos pretextos do delegado Justo (Moacyr Franco, excelente e divertidíssimo) para obter um pagamento espúrio pelos extraordinários inconvenientes profissionais a que é submetido quando aprisiona os artistas após uma briga de bar e nos motivos que levam Valdemar a expulsar a ladra e exuberante Lola (Giselle Motta) de sua trupe, para ficar em apenas três exemplos evidentes no interior da própria narrativa.
As diversas homenagens que o diretor presta a continuadores legítimos da arte circense e à sua família, o uso pertinaz de canções bregas nas vozes Lindomar Castilho e Nelson Ned e a antológica participação de Fabiana Karla na cena em que revela, num contexto adjetivamente destoante, que Benjamin é, de fato, engraçado, são apenas algumas das virtudes acachapantes deste filme surpreendentemente hipnótico, que, pode ser defeituoso como for, mas inebria por não esconder as suas fraquezas inevitavelmente humanas. E quando tais características assumidamente defeituosas provêm de um artista tachado justamente de presunçoso, é mais do que urgente admitir que ele conseguiu resolver ao menos o conflito fundamental entre intenção e receptividade fílmica: “O Palhaço” emociona e incita à sobrevivência formas artísticas que pareciam fadadas à suplantação pelo capitalismo. Por isso mesmo, este é um filme engraçado e comovente como uma matinê de outrora!
Wesley Pereira de Castro.