Quem teve o privilégio de comparar o ‘trailer’ deste filme com alguns trabalhos anteriores de Selton Mello como diretor – mais precisamente, o longa-metragem “Feliz Natal” (2008) e o videoclipe que ele realizou para a canção “Flerte Fatal”, da banda paulistana Ira! – percebe, de antemão, que a buscada noção de autoria na carreira deste jovem cineasta assume-se como algo essencialmente conflituoso.
Por mais truísta que este termo pareça, conflito é um substantivo muito útil para se começar a entender o porquê de “O Palhaço” ser um filme tão falho e defeituoso, mas, ainda assim e justamente por isso, extremamente arrebatador: este é um filme não apenas marcado pelos conflitos geracionais, produtivos e ideológicos, mas também pelas crises intencionais, voluntárias ou não. Assim, de supetão, há de se convir que Selton Mello é um artista pretensioso. Por mais talentoso que ele seja unanimemente considerado, os seus trabalhos anteriores, tanto como ator como enquanto diretor, demonstram um sobejo de presunção efetiva que, não por acaso, consegue ser dirimido pela ótima demonstração de suas múltiplas vocações artísticas.
Em “O Palhaço”, entretanto, esta presunção essencial é subsumida a uma dificuldade congênita na definição de qual acepção do adjetivo “popular” é mais vislumbrada pelo diretor: ele deseja realizar um filme que dialoga prontamente com as massas ou, ao invés disso, concentra-se em emular respeitosamente o tipo de atividade cultural realizada diretamente por aqueles que também consomem o que produzem? Em pleno século XXI globalizado, é ainda possível realizar um filme que tente demonstrar que estas duas polaridades assertivas não carecem ser marcadas pela pugna? Justamente por não ter conseguido responder a estas perguntas, “O Palhaço” é sumamente encantador. Afinal de contas, ele é um filme que, antes de qualquer coisa, aprende com seus erros e os difunde enquanto apanágios. Muitíssimo bom, para começo de conversa.
Apesar de, aparentemente, o papel interpretado pelo próprio Selton Mello corresponder ao personagem-título, ele é o elemento actancial menos interessante do filme como um todo. Mais uma vez, entretanto, este suposto defeito de execução não configura um demérito para o filme, mas sim um positivo adendo ao elogio anterior de sua exposição benfazeja de conflitos essenciais: se, por um lado, a composição do personagem Benjamim é um tanto rasteira por ser precipitada, por outro, é justamente esta incipiência compositiva que agiliza a identificação com o espectador no que tange ao discurso-chave proferido por Jackson Antunes; “nesta vida, se faz aquilo que se sabe fazer”. Ao final do filme, se concordará que Benjamim é, marcadamente, um palhaço.
E ele não é o único a constatar isso, o que traz à tona outra das grandes virtudes do filme: a devoção igualitária a personagens menores, como os simpáticos membros da trupe do circo Esperança (vivificados apaixonadamente por Teuda Bara, Thogun, Cadu Fávero, Tony Tonelada, entre outros), a encantatória menininha vivida por Larissa Manoela (que desempenha um papel fundamentalíssimo numa das últimas seqüências do filme) e a magnífica personificação de Paulo José, que despe o palhaço Valdemar/Puro Sangue da infalibilidade comum a este tipo de composição e, ao invés disso, humaniza-o e mostra-o tão realista quanto possível num filme com esta proposta cômico-dramática. Difícil conservar-se indiferente aos destinos dos personagens que desfilam suas risadas e necessidades na tela, portanto.
Para que os conflitos adicionais e benéficos do filme pudessem ser ainda mais pungentes, a impecável trilha sonora de Plínio Profeta foi de suma acertabilidade, de maneira que os acordes graves e comicamente pomposos de seus instrumentos diversificados assemelham-se deveras a uma sonoridade cigana em muito condizente com o inevitável nomadismo da trama. Ou seja, as músicas originais do filme não apenas são mágicos complementos aos espetáculos e motes tramáticos dos personagens circenses como também se demonstram qualitativa e percussivamente superiores.
No plano do convencimento emocional decorrente desta trilha sonora, foram sabiamente evitadas as armadilhas xaroposas normalmente comuns neste tipo de entrecho, da mesma forma que a ótima montagem de Marília Moraes e do próprio Selton Mello também foi muitíssimo inteligente ao não servir-se de inconvenientes câmeras lentas. As cenas que decorrem dentro e fora do picadeiro são respeitadas em seu tempo cronológico, no máximo assemelhadas ao estilo elíptico de diretores como Aki Kaurismäki e Jim Jarmusch, nos quais o diretor Selton Mello deve ter se inspirado. E, sendo aqui necessário exaltar os acertos pessoais do diretor brasileiro, o gracioso plano-seqüência que antecede os créditos finais arrebata-nos sobremaneira pela sinceridade com que conduz a uma homenagem sincera a São Filomeno, padroeiro dos artistas mambembes que o filme retrata com tamanha paixão.
No afã por um parágrafo conclusivo que disfarce a simpatia afetiva que este filme desencadeia e se concentre em seus bem-sucedidos atributos técnicos, convém vangloriar a iluminada direção de fotografia de Adrian Teijido e o roteiro composto por ‘gags’ biográficas complementares de Marcelo Vindicato e, mais uma vez, Selton Mello. E, neste roteiro, é mister destacar que mais um conflito essencial se instaura na diegese: o conflito inclemente entre as deturpações monetárias e os anseios artísticos, conflito este que se manifesta nos chistes de que o personagem do mecânico vivido Tonico Pereira se vale para receber o dinheiro dos clientes cujo caminhão estava quebrado, nos pretextos do delegado Justo (Moacyr Franco, excelente e divertidíssimo) para obter um pagamento espúrio pelos extraordinários inconvenientes profissionais a que é submetido quando aprisiona os artistas após uma briga de bar e nos motivos que levam Valdemar a expulsar a ladra e exuberante Lola (Giselle Motta) de sua trupe, para ficar em apenas três exemplos evidentes no interior da própria narrativa.
As diversas homenagens que o diretor presta a continuadores legítimos da arte circense e à sua família, o uso pertinaz de canções bregas nas vozes Lindomar Castilho e Nelson Ned e a antológica participação de Fabiana Karla na cena em que revela, num contexto adjetivamente destoante, que Benjamin é, de fato, engraçado, são apenas algumas das virtudes acachapantes deste filme surpreendentemente hipnótico, que, pode ser defeituoso como for, mas inebria por não esconder as suas fraquezas inevitavelmente humanas. E quando tais características assumidamente defeituosas provêm de um artista tachado justamente de presunçoso, é mais do que urgente admitir que ele conseguiu resolver ao menos o conflito fundamental entre intenção e receptividade fílmica: “O Palhaço” emociona e incita à sobrevivência formas artísticas que pareciam fadadas à suplantação pelo capitalismo. Por isso mesmo, este é um filme engraçado e comovente como uma matinê de outrora!
Wesley Pereira de Castro.
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
domingo, 6 de novembro de 2011
A PELE QUE HABITO ('La Piel que Habito') Espanha, 2011. Direção: Pedro Almodóvar
Um tanto decepcionados com a fluidez palimpséstica de “Volver” (2006) e com os desvios formativo-masturbacionais de “Abraços Partidos” (2009), os fãs longevos de Pedro Almodóvar ainda ansiavam por alguma obra que, de algum modo, fizesse as pazes com a explosividade carnal de seus filmes da década de 1980. Regressar gratuitamente ao estilo revoltoso e pansexual da primeira fase de sua carreira, entretanto, seria um anacronismo estilístico que não se coadunaria ao extremado rigor com o qual este genial cineasta tece a coesão [supra]temática entre cada um de seus filmes.
Neste sentido, é particularmente espantoso o modo como “A Pele que Habito” atende aos clamores dos fãs hipodermicamente insatisfeitos com seus filmes recentes a partir de uma correlação pontual com o impacto que “A Flor do Meu Segredo” instaurou quando foi lançado em 1995: marcando o início da colaboração oficial com o músico Alberto Iglesias – que, desde então, tornou-se partícipe obrigatório de todos os filmes do diretor – esta produção assustou os fãs do cineasta, sendo até mesmo prontamente rejeitado por alguns, visto que estes não perceberam imediatamente o quanto esta obra emocionalmente centrípeta tinha em comum com os arroubos de incontinência erotógena demonstrados em “Ata-me” (1990), “De Salto Alto” (1991) e “Kika” (1993), lançados anteriormente. Analisando-se distanciadamente “A Flor do meu Segredo”, entretanto, pode-se perceber claramente o quanto este filme foi determinante para a atual configuração da obra almodovariana, muitíssimo mais erudita e aparentemente contida em sua sexualidade exasperada. E é a partir deste pressuposto comparativo – mas não somente dele – que as inúmeras qualidades de “A Pele que Habito” começam a despontar...
Tendo seu elenco encabeçado por Antonio Banderas e Marisa Paredes, atores outrora habituais nas películas almodovarianas, “A Pele que Habito” pode muito bem ser resumido como “um filme protagonizado pelos personagens oitentistas do diretor, depois que estes envelheceram após os incrementos maturativos da década de 1990”. Ou seja, os impulsos sexuais desenfreados que não raro redundavam em estupros, típicos da primeira metade da obra de Pedro Almodóvar, são agora travestidos por um discurso renovado (e sutilmente protestante) sobre as configurações diplomáticas da contemporaneidade, em que as exigências e recomendações éticas de uma dada profissão levam menos em consideração as determinações morais (incluindo os âmbitos pecaminoso e criminal das ponderações humanas) do que as suas garantias de financiamento capitalista ou suporte estatal. A temerosa suspensão destas garantias é bem demonstrada pelas recorrentes (e contagiosas) ameaças de suspensão da licença de cirurgião do protagonista, caso este insistisse em prosseguir isoladamente com os experimentos transgenéricos que infringem um código hipócrita de conduta, que não se importa em ignorar a óbvia falsidade de documentos de identidade quando estes se atrelam a uma demonstração espúria da vontade/necessidade de um paciente aquisitivamente rico de realizar uma operação plástica.
Através deste filme, Pedro Almodóvar serve-se mais uma vez de seu caríssimo tema da permissividade amorosa (eventualmente tachada de loucura) para manifestar-se opositivo a uma corrente biopolítica que se serve de engodos para-democráticos para justificar intervenções violentas nas configurações fisiológicas dos indivíduos. E, aqui, abre-se a necessidade de um parágrafo pessoalmente hiper-interpretativo.
Personagens e atores transexuais são comuns no ‘corpus’ almodovariano. Entretanto, ao contrário do que propagandeiam os oportunistas divulgadores de uma sexualidade financiada pelo capitalismo ou pelo Estado, estes quedam angustiados por dores e prazeres que vão muito além de suas graduais metamorfoses físicas, tendo contrapartidas discursivas tão polarizadas quando podem ser o lesbianismo traumático-defensivo que insurge sub-repticiamente em “A Lei do Desejo” (1987) e a defesa do pagamento monetário pela autenticidade manifesta em “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999).
Nos filmes de Pedro Almodóvar, conforme já dito, a supremacia da permissibilidade de qualquer forma de amor é o que dota de coerência interna e externa cada uma das suas obras, caracterizadas por marcas registradas como o predomínio de formas circulares, o sobejo de tonalidades rubras, as idas e vindas no tempo da narrativa e erupções cancionais que surgem na diegese, mas que logo a transcendem, assumindo-se como extensões multiinformativas da mesma, como se pode constatar nas diversas aparições da expressiva cantora Concha Buika. Em “A Pele que Habito”, portanto, para além do título que antecipa vindouras e polêmicas discussões acerca da apologia (ou condenação) da transexualidade efetiva e interventivamente biológica – novamente trazida à tona através do batismo de um dos temas instrumentais do filme como “La Identidade Inaccesible” – há um gritante manifesto em prol da magnificência do papel materno, plenamente reconhecível para quem acompanha a obra do diretor em suas diversas variações estilísticas e indefectivelmente encarnado na figura da empregada Marília (Marisa Paredes, mais uma vez, em estado de graça interpretativa), que, num sobressalto de genialidade vulgar, admite que possui loucura em suas entranhas, a fim de explicar os comportamentos psicóticos de seus dois filhos, um francamente perseguido pela lei [Zeca (Roberto Álamo), traficante de drogas na infância e ladrão de joalheiras na idade adulta] e outro coroado pelo poder e pelo dinheiro (Robert Ledgard, o cirurgião vivido com charme e elegância por Antonio Banderas).
Nesse sentido, há de se aplaudir de pé a impressionante cena final, emocionalmente elíptica em seu estágio máximo, quando Vicente, transformado definitivamente em Vera Cruz (Jan Cornet, na versão masculina; e Elena Anaya, na versão feminina) confessa a sua mãe (Susi Sánchez) quem, de fato, ele/ela é. O resto é um clímax ‘fora-de-campo’ impregnado por sobressaltos pulsionais e afetivos como somente este diretor espanhol é capaz de urdir!
Supondo que toda esta exaltação emotiva não seja suficiente para emoldurar esta suma experiência cinematográfica, convém adicionar mais algumas observações elogiosas a partir de sua composição técnico-formal: as emulações do perturbador e belo trabalho da artista Louise Bourgeois, elogiada nominalmente por Pedro Almodóvar nos créditos finais; as evaginações enredísticas que demonstram o insuspeito domínio hipertextual de Pedro Almodóvar sobre o roteiro que escreveu a partir de um romance de Thierry Jonquet; a montagem geométrica habitual de José Salcedo; a direção fotográfica deslumbrante de José Luís Alcaine; e as canções complementares da já citada Concha Buika, de Chris Garneau e do músico dinamarquês Anders Trentemøller. Porém, a surpreendente introdução de elementos eletrônicos na trilha sonora compota basicamente por instrumentos de corda de Alberto Iglesias leva o espectador a refletir sobre o quanto mensagens, discursos e reflexos formais minuciosamente engendrados mesclam-se neste filme acachapante, que, conforme antecipado, deslumbra qualquer pessoa que, nalgum momento de sua vida espectatorial, demonstrou-se apaixonado por qualquer elemento da cinematografia almodovariana.
Afinal de contas, muito mais do que simplesmente contar uma estória ou assumir uma postura moral sobre um mundo de falsas aceitações sexualistas, o diretor deste filme prova, aqui, que envelhecer e servir-se intimamente das formas expressivas essencialmente contemporâneas não são deméritos ativistas, mas, pelo contrário, progressões autorais de um ‘corpus’ em que a permissividade sempre foi regra, inclusive no que tange ao fundamento constitutivo e (ir)racional da liberdade em seu estímulos desobedientes.
Wesley Pereira de Castro.
Neste sentido, é particularmente espantoso o modo como “A Pele que Habito” atende aos clamores dos fãs hipodermicamente insatisfeitos com seus filmes recentes a partir de uma correlação pontual com o impacto que “A Flor do Meu Segredo” instaurou quando foi lançado em 1995: marcando o início da colaboração oficial com o músico Alberto Iglesias – que, desde então, tornou-se partícipe obrigatório de todos os filmes do diretor – esta produção assustou os fãs do cineasta, sendo até mesmo prontamente rejeitado por alguns, visto que estes não perceberam imediatamente o quanto esta obra emocionalmente centrípeta tinha em comum com os arroubos de incontinência erotógena demonstrados em “Ata-me” (1990), “De Salto Alto” (1991) e “Kika” (1993), lançados anteriormente. Analisando-se distanciadamente “A Flor do meu Segredo”, entretanto, pode-se perceber claramente o quanto este filme foi determinante para a atual configuração da obra almodovariana, muitíssimo mais erudita e aparentemente contida em sua sexualidade exasperada. E é a partir deste pressuposto comparativo – mas não somente dele – que as inúmeras qualidades de “A Pele que Habito” começam a despontar...
Tendo seu elenco encabeçado por Antonio Banderas e Marisa Paredes, atores outrora habituais nas películas almodovarianas, “A Pele que Habito” pode muito bem ser resumido como “um filme protagonizado pelos personagens oitentistas do diretor, depois que estes envelheceram após os incrementos maturativos da década de 1990”. Ou seja, os impulsos sexuais desenfreados que não raro redundavam em estupros, típicos da primeira metade da obra de Pedro Almodóvar, são agora travestidos por um discurso renovado (e sutilmente protestante) sobre as configurações diplomáticas da contemporaneidade, em que as exigências e recomendações éticas de uma dada profissão levam menos em consideração as determinações morais (incluindo os âmbitos pecaminoso e criminal das ponderações humanas) do que as suas garantias de financiamento capitalista ou suporte estatal. A temerosa suspensão destas garantias é bem demonstrada pelas recorrentes (e contagiosas) ameaças de suspensão da licença de cirurgião do protagonista, caso este insistisse em prosseguir isoladamente com os experimentos transgenéricos que infringem um código hipócrita de conduta, que não se importa em ignorar a óbvia falsidade de documentos de identidade quando estes se atrelam a uma demonstração espúria da vontade/necessidade de um paciente aquisitivamente rico de realizar uma operação plástica.
Através deste filme, Pedro Almodóvar serve-se mais uma vez de seu caríssimo tema da permissividade amorosa (eventualmente tachada de loucura) para manifestar-se opositivo a uma corrente biopolítica que se serve de engodos para-democráticos para justificar intervenções violentas nas configurações fisiológicas dos indivíduos. E, aqui, abre-se a necessidade de um parágrafo pessoalmente hiper-interpretativo.
Personagens e atores transexuais são comuns no ‘corpus’ almodovariano. Entretanto, ao contrário do que propagandeiam os oportunistas divulgadores de uma sexualidade financiada pelo capitalismo ou pelo Estado, estes quedam angustiados por dores e prazeres que vão muito além de suas graduais metamorfoses físicas, tendo contrapartidas discursivas tão polarizadas quando podem ser o lesbianismo traumático-defensivo que insurge sub-repticiamente em “A Lei do Desejo” (1987) e a defesa do pagamento monetário pela autenticidade manifesta em “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999).
Nos filmes de Pedro Almodóvar, conforme já dito, a supremacia da permissibilidade de qualquer forma de amor é o que dota de coerência interna e externa cada uma das suas obras, caracterizadas por marcas registradas como o predomínio de formas circulares, o sobejo de tonalidades rubras, as idas e vindas no tempo da narrativa e erupções cancionais que surgem na diegese, mas que logo a transcendem, assumindo-se como extensões multiinformativas da mesma, como se pode constatar nas diversas aparições da expressiva cantora Concha Buika. Em “A Pele que Habito”, portanto, para além do título que antecipa vindouras e polêmicas discussões acerca da apologia (ou condenação) da transexualidade efetiva e interventivamente biológica – novamente trazida à tona através do batismo de um dos temas instrumentais do filme como “La Identidade Inaccesible” – há um gritante manifesto em prol da magnificência do papel materno, plenamente reconhecível para quem acompanha a obra do diretor em suas diversas variações estilísticas e indefectivelmente encarnado na figura da empregada Marília (Marisa Paredes, mais uma vez, em estado de graça interpretativa), que, num sobressalto de genialidade vulgar, admite que possui loucura em suas entranhas, a fim de explicar os comportamentos psicóticos de seus dois filhos, um francamente perseguido pela lei [Zeca (Roberto Álamo), traficante de drogas na infância e ladrão de joalheiras na idade adulta] e outro coroado pelo poder e pelo dinheiro (Robert Ledgard, o cirurgião vivido com charme e elegância por Antonio Banderas).
Nesse sentido, há de se aplaudir de pé a impressionante cena final, emocionalmente elíptica em seu estágio máximo, quando Vicente, transformado definitivamente em Vera Cruz (Jan Cornet, na versão masculina; e Elena Anaya, na versão feminina) confessa a sua mãe (Susi Sánchez) quem, de fato, ele/ela é. O resto é um clímax ‘fora-de-campo’ impregnado por sobressaltos pulsionais e afetivos como somente este diretor espanhol é capaz de urdir!
Supondo que toda esta exaltação emotiva não seja suficiente para emoldurar esta suma experiência cinematográfica, convém adicionar mais algumas observações elogiosas a partir de sua composição técnico-formal: as emulações do perturbador e belo trabalho da artista Louise Bourgeois, elogiada nominalmente por Pedro Almodóvar nos créditos finais; as evaginações enredísticas que demonstram o insuspeito domínio hipertextual de Pedro Almodóvar sobre o roteiro que escreveu a partir de um romance de Thierry Jonquet; a montagem geométrica habitual de José Salcedo; a direção fotográfica deslumbrante de José Luís Alcaine; e as canções complementares da já citada Concha Buika, de Chris Garneau e do músico dinamarquês Anders Trentemøller. Porém, a surpreendente introdução de elementos eletrônicos na trilha sonora compota basicamente por instrumentos de corda de Alberto Iglesias leva o espectador a refletir sobre o quanto mensagens, discursos e reflexos formais minuciosamente engendrados mesclam-se neste filme acachapante, que, conforme antecipado, deslumbra qualquer pessoa que, nalgum momento de sua vida espectatorial, demonstrou-se apaixonado por qualquer elemento da cinematografia almodovariana.
Afinal de contas, muito mais do que simplesmente contar uma estória ou assumir uma postura moral sobre um mundo de falsas aceitações sexualistas, o diretor deste filme prova, aqui, que envelhecer e servir-se intimamente das formas expressivas essencialmente contemporâneas não são deméritos ativistas, mas, pelo contrário, progressões autorais de um ‘corpus’ em que a permissividade sempre foi regra, inclusive no que tange ao fundamento constitutivo e (ir)racional da liberdade em seu estímulos desobedientes.
Wesley Pereira de Castro.
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