segunda-feira, 11 de novembro de 2024
AINDA ESTOU AQUI (2024, de Walter Salles)
sábado, 2 de novembro de 2024
CORINGA: DELÍRIO A DOIS (2024, de Todd Phillips)
O segmento de abertura deste filme - um breve desenho animado, concebido pelo francês Sylvain Chomet, intitulado "Eu e Minha Sombra" - é bastante efetivo ao distanciar este segundo capítulo do anterior: além de resumir a trama, em viés simbólico, ele traz à tona a questão da disassociação de personalidade, fundamental para se curtir o musical ora apresentado, em viés depressivo e sumamente melancólico. Ao invés do pretenso denuncismo social do prévio enredo com o atormentado protagonista, temos agora um potente estudo de personagem, que atingirá em cheio quem já experimentou a solidão que ele tenta desesperadamente sufocar...
Para que "Coringa: Delírio a Dois" (2024) seja efetivo em seu contato com o público, convém desvencilhá-lo radicalmente do personagem dos quadrinhos: Arthur Fleck (magnificamente interpretado por Joaquin Phoenix, mais uma vez) não é o Coringa arqui-inimigo do Batman, mas um dentre vários Coringas possíveis, a depender das expectativas de quem está frustrado com as condições hodiernas das instituições sociais. E, neste sentido, a patricinha filha de médico e pós-graduada em Psicologia que se apaixona por Arthur - apenas quando maquiado - também não é a infame Arlequina, mas uma delirante imitadora, mais uma fetichista na conjuntura espetaculosa dos julgamentos criminais.
Em sua exposição inclemente de um manicômio que maltrata impiedosamente os seus internos, o diretor Todd Phillips introduz Arthur Fleck como aprisionado num inferno que só lhe permite algum respiro quando ele adere à insanidade: seja quando ela surge de maneira inevitável, enquanto conseqüência dos maus tratos que experimentou ao longo de toda a vida, e que encontra na Música, e na paixão, algum bálsamo; seja quando ela é manipulada, a fim de obter o apoio de parte indignada da opinião pública, que é chantagista, e só ficará ao lado de Arthur Fleck se ele obedecer à tipificação que eles projetam. Por isso, ainda na fase inicial de sua paixonite, o protagonista percebe que o afeto de sua amada não é tão recíproco ou inabalável quanto ela faz imaginar...
É a deixa para que elogiemos a ambigüidade compositiva de Lady Gaga, como a alucinada Lee Quinzel, deveras funcional naquilo que a fez ser escalada enquanto coadjuvante: a sua impressionante potência vocal e a fascinante esquisitice de sua beleza. Os números musicais em que ela contracena são deveras efetivos na crítica ao 'showbiz', do qual é ela uma criação acachapante. Por isso, quanto mais a narrativa avança, mais Arthur Fleck canta sozinho, culminando no doloroso instante em que, nos créditos finais, ouvimos ele entoar os versos merencórios de "True Love Will Find You in the End", de Daniel Johnston, depois de ser esfaqueado por um interno (Connor Storrie), chateado porque o mito anárquico erigido no primeiro filme revelou-se um ser humano fraco - porque essencialmente humano -, destroçado por uma paixão que acaba bruscamente. Tem como ser mais sintomático que isso, no que tange à adesão de alguns votantes à extrema-direita?
Inevitavelmente irregular, em suas duas horas e dezoito minutos de duração, "Coringa: Delírio a Dois" conjuga as convenções de um musical neurastênico com o típico filme de tribunal, havendo a aguardada cena em que Arthur Fleck dispensa a advogada (vivida por Catherine Keener) que, por algum motivo, o defendia de maneira abnegada. O dramático interrogatório do personagem Gary Puddles (Leigh Gill) é um dos pontos altos do julgamento - tanto quanto a entrevista com o cínico apresentador de TV vivido por Stevie Coogan -, mas são as cenas de (des)amor que tornam este filme marcante: o instante em que Arthur pede que Lee conduza o ato sexual, já que ele é praticamente virgem; quando ela confessa-se grávida; quando ele deixa-lhe uma mensagem na secretária eletrônica (cantarolando "If You Go Away", versão em inglês para a antológica "Ne Me Quitte Pas", de Jacque Brel); e o diálogo próximo ao final, quando ela o dispensa, na escadaria que ela fingiu ter atravessado na juventude, a fim de conquistar seu objeto idealizado de desejo (o Coringa, não Arthur). Temos, aqui, um filme sumamente incompreendido e, como tal, vitimado pelo mesmo tormento que aflige o seu protagonista!
Wesley Pereira de Castro.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
MEGALÓPOLIS (2024, de Francis Ford Coppola)
Neste filme grandiloqüente - mas tramaticamente regido a partir da simplicidade da fábula que ele assume ser, desde o crédito titular -, encontramos aspectos que já foram abordados em obras anteriores do diretor. Seja a reflexão sobre as conseqüências trágicas do poder, em contrapartida aos afetos familiares, marcante em "O Poderoso Chefão" (1972); seja o romantismo que não tem receio de ser 'kitsch', característico de "O Fundo do Coração" (1981); seja a opulência redentora de "Drácula de Bram Stoker" (1992). Ao final, a moral da estória é deveras elementar: o amor transforma e salva. Ainda que o sobejo de credulidade na transmissão deste recado soe um tanto duvidoso.
Explicamos: se não se duvida que o protagonista Cesar Catilina (Adam Driver), um "homem do futuro, mas aprisionado no passado", tenha efetivamente se apaixonado por Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), a pretensa inocência atrelada a esta personagem é prejudicada pela desenxabidez da atriz que a interpreta, de modo que os seus olhares lânguidos são abafados pelos exageros de tudo o que acontece ao redor. Outro aspecto problemático é o comodismo com que se resolvem algumas situações, a fim de garantir um "final feliz", como a morte anticlimática de Wow Platinum (Aubrey Plaza), de maneira incompatível com a sua esperteza de 'femme fatale', e a confissão de Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito) acerca da participação no laudo adulterado que responsabilizou Cesar pela morte de sua primeira esposa, sanando num breve diálogo uma rivalidade longeva. Junta-se a isso o desaparecimento súbito de personagens relevantes como o narrador Romaine (Laurence Fishburne) e o "consertador" Nush Berman (Dustin Hoffman).
Quem quiser elencar defeitos neste filme, terá muito a enumerar, mas também desperdiçará a oportunidade de se esbaldar numa "superprodução independente" que eleva ao paroxismo os seus intentos: a montagem é alucinógena, a direção de arte é acachapante, as atuações são exageradas e as homenagens a diretores como Federico Fellini e Jean-Luc Godard são evidentes. Mas Francis Ford Coppola cozinha o seu sarapatel de maneira extremamente autoral, contando com o apoio de atores que entregaram-se por completo ao frenesi exigido nalgumas situações. Neste sentido, a seqüência do casamento entre Crassus (Jon Voight) e Wow Platinum é magistral, confirmando a esfuziante conjunção entre Dinheiro, Jornalismo e 'Sex Appeal'. E ainda que seus personagens não apareçam tanto em cena - ao menos, não tanto quanto o enredo solicita -, Jon Voight e Shia LaBeouf estão extraordinários, o que surpreende por uma questão extrafílmica: o primeiro destes atores é um apoiador contumaz do candidato à presidência Donald Trump, quando o roteiro do filme possui explícito apelo ideológico em contrário. Não apenas antitrumpista, mas antifascista em geral!
Em seu acerto de contas político e audiovisual, quiçá um testamento, Francis Ford Coppola aproveita para dedicar esta obra tão íntima à sua recém-falecida esposa, Eleanor Coppola [1936-2024], reverenciada nos créditos finais, junto à menção do ano de produção em algarismos romanos: MMXXIV. As metáforas sobre os vícios romanos, deveras similares à configuração hodierna dos EUA, são exploradas de maneira inteligente, e os contrastes entre elementos antigos e contemporâneos é genial, como quando Vesta Sweetwater (Grace VanderWaal) entra em cena para leiloar a sua candura, supostamente adolescente, e um videoclipe 'pop' explode na tela. As emulações subjetivas do olhar alucinado de Cesar são fascinantes, contaminando toda a extensão da projeção, visto que esta confusão sensória surge como efeito colateral do elemento Megalon, que possui propriedades de controle do espaço e, principalmente, do tempo. Não é a obra-prima que acredita ser, mas é um filme que faz jus às maiores expectativas: um fuzuê de imagens, sons e delírios, que pode causar indigestão em alguns, mas deixa outros lambendo os beiços, ao término das duas horas e dezoito minutos de duração, para aproveitar a menção culinária do início. Dá para perceber a qual dos grupos o autor destas linhas pertence, não é?
Wesley Pereira de Castro.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
O QUARTO AO LADO (2024, de Pedro Almodóvar)
Como acontece nas melhores tramas almodovarianas, os filmes a que suas personagens assistem desempenham importantes funções metanarrativas. E, neste caso, são três, em seguida: a comédia "Sete Oportunidades" (1925, de Buster Keaton), no qual o protagonista é perseguido por diversas pretendentes matrimoniais; o melodrama "Carta de uma Desconhecida" (1948, de Max Ophüls), em que uma falha de comunicação impede o reencontro entre uma moribunda e o seu grande amor, que é hedonista; e o clássico "Os Vivos e os Mortos" (1987, de John Huston), baseado num conto de James Joyce [1882-1941], cujas frases derradeiras são recitadas pela personagem de Tilda Swinton, em mais de uma oportunidade, e que ecoam no desfecho do filme, de cariz sirkiano. As referências são tantas e tão requintadas que o próprio estilo de Pedro Almodóvar parece domesticado e envelhecido. O que é intencional, neste segundo caso, tal qual vem ocorrendo desde o semi-autobiográfico "Dor e Glória" (2019)...
O tom de lamento crítico, evidente nos adjetivos suprautilizados, é uma percepção que advém da confluência de algo adotado pelo diretor, em seus médias-metragens anteriores, falados em inglês ["A Voz Humana" (2020) e "Estranha Forma de Vida" (2023 - resenhado aqui): ao abdicar de seu idioma pátrio, ele aceita um aburguesamento extremado, como se fosse um estadunidense típico, a ponto de render-se a 'flashbacks' indignos de sua sensualidade, caricatos na maneira como abordam a gravidez na adolescência e os traumas decorrentes da participação na guerra do Vietnã. Por conta disso, "O Quarto ao Lado" (2024) demora a engrenar, a despeito dos talentos das ótimas atrizes envolvidas no projeto.
Na verdade, se Tilda Swinton, em sua segunda colaboração com o diretor, está maravilhosa em cada aparição da adoentada Martha, a afetação comportamental de Julianne Moore, como Ingrid, incomoda pela linha tênue na construção de sua personagem, que oscila entre a erudição e a futilidade. A seqüência em que ela fica ofegante ao praticar leves exercícios de locomoção, numa academia de ginástica, que o diga. Para contrastar, Damian, personagem de John Turturro, com quem ambas as amigas já tiveram um relacionamento amoroso, surge como uma voz racional, ainda que conscienciosamente culpada, ao diagnosticar a comunhão entre neoliberalismo e extrema-direita enquanto origem dos maiores problemas sociais hodiernos. Deve-se aderir a um inevitável pessimismo?
O humor e o erotismo tentam se insurgir, nalguns momentos, mas sempre sob o viés da nostalgia: quando Damian comenta que, na juventude, "um dia sem sexo era um dia desperdiçado"; quando Martha diz que a guerra a deixou promíscua ou quando Ingrid afirma que "é preciso talento para lidar com o lixo". Os diálogos são bons, mas os exageros reativos de Ingrid à decisão suicida de sua amiga fazem com que nos questionemos acerca do que o diretor e roteirista achou de tão interessante em "O Que Você Está Enfrentando", da escritora estadunidense Sigrid Nunez, a fim de adaptá-lo. O segmento rememorativo sobre os padres espanhóis que transam em meio à guerra deixa entrever que, neste filme, estamos lidando com um auto-pasticho, em que um ponto de partida com algumas similaridades discursivas em relação ao que vimos no no excelente "Fale com Ela" (2002) descamba para um elogio classista que assume a transição do vermelho, tão abundante em suas obras de juventude, para o verde predominante nos ambientes chiques da alta burguesia nova-iorquina. Se ele quis homenagear a faceta dramática de Woody Allen, não conseguiu dotar de suficiente personalidade autoral este experimento imitativo: a trilha musical onipresente de Alberto Iglesias, bela e característica, chega a irritar, por exemplo!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 27 de outubro de 2024
Mostra SP 2024: NÃO NOS MOVERÃO (2024, de Pierre Saint-Martin Castellanos)
Socorro (Luísa Huertas) é uma advogada idosa, que segue traumatizada pelo evento supracitado. Cinqüenta anos se passaram, desde que seu irmão foi assassinado, mas, no dia do aniversário dele, ela desmaia e, ao receber documentos de um colega de profissão, que identifica o soldado que torturou seu querido parente, ela decide adotar a lógica questionável do "olho por olho", alegando que, em seu país, "a justiça é um privilégio apenas de quem possui muito dinheiro e poder". Para este intuito, ela conta com o apoio de um bandido reabilitado, Sidarta (José Alberto Patiño), a quem ela salvou de ser preso repetidas vezes. Por conta disso, ele é bastante devotado a ela, mas esforçar-se-á para dissuadi-la de suas intenções revanchistas. Não conseguindo, a auxiliará, mesmo a contragosto.
Filmado em preto-e-branco, este filme - que é o longa-metragem de estréia de seu diretor - possui uma direção de arte ostensivamente anacrônica no apartamento de Socorro, que utiliza máquinas de escrever, cartas enviadas pelo correio e telefones fixos, demonstrando o seu aprisionamento traumático em relação ao passado. Paralelamente à decisão da protagonista em vingar-se do algoz de seu irmão caçula, ela lida com uma rixa prolongada com Esperanza e encontra empatia em sua sua nora argentina Lucía (Agustina Quinci), que não apenas descobre que está grávida como também constata que seu relacionamento com Jorge (Pedro Hernández) minguou. O ritmo do filme é comedido e talvez funcione melhor para quem identifica prontamente as questões ditatoriais mexicanas, ecoadas nas argentinas, conforme relato de Lucía, em determinado diálogo. Nos leva a querer saber mais, ao passo em que nos emociona, quando percebemos o descontrole racional de Socorro, que chega a envenenar um gato, depois que este morde fatalmente o pombo que ela acolhe. O roteiro demora a ser desvendado, mas as interpretações são deveras aplaudíveis!
Wesley Pereira de Castro.
Mostra SP 2024: O VENTO SOPRA ATRAVÉS DOS TÚMULOS (2024 , de Travis Wilkerson)
Que o diretor deste filme-ensaio não seja croata é um dos componentes que engrandecem a sua proposta documental, no sentido de que ele descobre, junto ao espectador, algumas camadas horríficas daquilo que, sinopticamente, é descrito como um mero registro sobre os malogros de uma investigação policial. Após assumir a sua origem estadunidense (mais à frente, ele confessa que um de seus avôs pertenceu à Ku Klux Klan) e de enumerar dados pessoais e familiares (incluindo o elogio ao cachorro Yugo, nomeado em homenagem ao vento e a um país dissolvido), Travis Wilkerson apresenta-nos ao atraente detetive Ivan Peric, que entrou para a Polícia para não se tornar pescador, como o seu pai, não obstante querer ser dançarino de 'breakdance', na juventude. Ele investiga as mortes de diversos turistas em sua cidade natal - Split, na Croácia -, mas é hostilizado por seus colegas e por seu chefe, já que, ali, "ninguém gosta de turistas". Ao tentar descobrir como alguns deles morreram, traços sombrios da História do país são trazidos à tona...
Por cada lugar que passa, Ivan encontra pichações e sinais de vandalismo urbano e, a partir daí, explica para o diretor o que são aqueles símbolos, e por que tantas suásticas são percebidas naquela região. A cidade de Split possui um time de futebol, Hajduk, cuja torcida é bastante violenta, confundindo as competições dentro dos estádios com o ódio que sente por outras etnias - principalmente, contra os sérvios. Como tal, os torcedores associam-se ideologicamente aos princípios de Ustasha, organização ultranacionalista croata que, entre outras medidas assustadoras, erigiu Jasenovac, o maior campo de concentração da Europa, dentre aqueles que não foram construídos pelos nazistas. Ali, milhares de sérvios, judeus e ciganos foram assassinados (geralmente utilizando a 'sbrosjek', que era uma faca apelidada de "exterminadora de sérvios"), de modo que a ojeriza nacional por estes grupos étnicos permanece ativa na população do país, que, ainda hoje, demonstra simpatia pela supracitada organização, externando-a através de um U maiúsculo com uma cruz no meio, geralmente disfarçado na palavra Radunica, que é uma importante rota local.
O diretor explica todos estes detalhes de adesão fascista enquanto Ivan esforça-se para se desvencilhar da alcunha de 'uhljeb', que seria um burocrata preguiçoso, segundo uma tradução genérica. Esta é a maneira desdenhosa através da qual ele é atacado por seus pares, por insistir numa investigação boicotada pelos demais profissionais, de cuja ajuda o detetive necessita. Em determinado momento, Travis Wilkerson aproveita a menção de Ivan a um acidente sofrido por uma croata bêbado, quando tentava destruir a estátua de Rade Koncar [1911-1942], para esclarecer quem foi este importante partisano (membro de uma tropa irregular que se opõe ao controle estrangeiro de uma determinada área) iugoslavo e para interrogar "como um homem se torna uma estátua?". É quando percebemos que o título poético do filme faz menção à canção "The Partisan", de Leonard Cohen [1934-2016], cuja letra fala justamente sobre a ocupação nazista nalguns países. Na maior parte do filme, sua fotografia é em preto-e-branco, exceto quando pinceladas vermelhas que lembram sangue surgem na tela, ao som de fogos de artifício, após a tentativa frustrada do realizador de animar uma gravura com a bandeira de Ustasha. Trata-se de mais um instante de genialidade, possibilitado pelo Acaso (os demais seriam o segmento "História da Queda da Iugoslávia Através dos Grafites de Split" e a lembrança da comemoração de aniversário dos seis anos de Ivan, em que, num jogo de futebol, ele testemunhou o que seria uma das primeiras etapas do esfacelamento definitivo da antiga Iugoslávia), que irmana este filme em relação aos trabalhos mais iconoclastas do romeno Radu Jude. Dolorosamente magistral!
Wesley Pereira de Castro.
sábado, 26 de outubro de 2024
Mostra SP 2024: EM RETIRO (2024, de Maisam Ali)
Por causa da predominância do cinema de Bombaim - conhecido internacionalmente como Bollywood -, eventualmente esquecemos que as largas dimensões nacionais da Índia engendram diferentes manifestações culturais, a depender da região: na parte setentrional, fronteiriça com o Tibete, encontramos Ladakh, onde foi filmado este filme. De tradição budista, este local, de caráter político-administrativo semiautônomo, serve aos interesses reflexivos do diretor estreante Maisam Ali, que narra as tentativas de reinserção familiar de um homem que volta para onde cresceu, depois de faltar ao funeral de seu irmão...
Interpretado por Harish Khanna, este homem está ausente há tanto tempo que não consegue sequer falar adequadamente o dialeto da região. Conversa, via Facebook, com um sobrinho que não conhecia, e vê-se diante de conflitos urbanos, entre jovens que brigam, depois que um deles tenta assaltar outro. Não é um enredo fácil de compreender, visto que as relações entre os personagens são balizadas pela mesma sensação de estranhamento e não pertencimento que atravessa o protagonista. Para piorar, quase todas as seqüências são filmadas à noite, de modo que percebemos muito mais do que efetivamente vemos as situações.
A despeito de seu extremo hermetismo, "Em Retiro" é um filme que justifica o título na própria maneira com que justapõe as cenas, visto que precisamos redimensionar a maneira como nos orientamos narrativamente, através das convenções tradicionais do gênero dramático: sabemos que uma jovem faz desenhos, no interior de sua residência, enquanto ouve uma canção da Billie Eilish ("When the Party's Over"); sabemos que o protagonista se delicia ao tomar uma sopa num estabelecimento local; sabemos que os adolescentes daquele contexto bebem e fumam, como acontece em qualquer outra parte do mundo. Porém, não identificamos adequadamente como os coadjuvantes se relacionam entre si, e em que sentido eles afetam emocionalmente o inominado protagonista. Ao final, a paisagem em movimento que se nota através da janela de um ônibus assume uma velocidade extremamente lenta, metonimizando a deambulação quase fantasmática do protagonista acerca dos lugares por onde passou, durante a breve visita à sua cidade-natal. Ele seguirá vagando depois disso, tanto quanto a nossa tentativa de entender aquilo a que assistimos... É um filme bonito, entretanto!
Wesley Pereira de Castro.
Mostra SP 2024: OS MAUS PATRIOTAS (2024, de Victor Fraga)
Avançando em sua proposta de finalizar uma trilogia documental sobre manipulação midiática - depois de realizar o interessante "A Fantástica Fábrica de Golpes" (2022, co-dirigido por Valnei Nunes - comentado aqui) -, o diretor baiano Victor Fraga, radicado em Londres, entrevista duas importantes personalidades britânicas, comumente criticadas por sua simpatia ao socialismo e pelas críticas ao imperialismo monárquico: o cineasta Ken Loach, duas vezes ganhador da Palma de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Cannes, e o parlamentar Jeremy Corbyn, que foi líder do Partido Trabalhista entre 2015 e 2020. Segundo a narração, o próprio Ken Loach já teve a intenção de realizar algo protagonizado por Jeremy Corbyn, mas esta é a primeira vez em que eles são filmados juntos...
Na curta duração do filme (cerca de uma hora e setenta minutos), o documentarista senta-se diante de seus dois entrevistados, e eles conversam sobre o modo hostil com que são geralmente definidos nos meios de comunicação de massa locais. Algumas imagens de longas-metragens loachianos servem como ilustrações das falas de ambos, confirmando algo que o veterano realizador diz: "a divergência de opiniões é mais tolerada na ficção porque é ficção". Ao que Jeremy Corbyn complementa, elogiando-o bastante, referendando que o cineasta é assaz modesto ao falar sobre as suas necessárias provocações cinematográficas, sendo que algumas de suas obras foram censuradas internamente, já que "a mídia britânica é hostil a mudanças radicais no 'status quo'". Enquanto ouve, Victor Braga reage com expressões de estupefação e, obviamente, faz alguns comentários sobre a política brasileira, com destaque para o 'impeachment' sofrido por Dilma Rousseff e para a prisão injusta de Luiz Inácio Lula da Silva, sobremaneira conhecidos por Jeremy Corbyn. Mas o melhor momento de intervenção é quando ele pergunta a Ken Loach se "um cineasta socialista pode não ser realista?"!
Validando a entrevista, declarações encolerizadas de jornalistas vinculados à direita política são animadas através de pequenas vinhetas, nas quais ouvimos que "Leni Riefenstahl era mais sutil [em seu propagandismo] que Ken Loach" ou que seus filmes nem precisam ser vistos, "da mesma forma que não é necessário ler 'Minha Luta' para saber que Adolf Hitler é um monstro". O que confirma uma opinião progressista compartilhada por ambos os entrevistados: "o que seria de uma sociedade democrática em que não se tem acesso aos eventos, mas apenas a interpretações sobre os eventos?". Como tanto o cineasta quanto o parlamentar são eventualmente tachados de antissemitas, por serem favoráveis à causa palestina, Victor Fraga aproveita esta deixa para comentar a diferença de tratamento concedida à Rússia e a Israel. Em razão de a entrevista em pauta ter ocorrido antes do ataque da organização Hamas, em outubro de 2023, questões essenciais do debate são continuadas após a sessão, naquilo que ele incita. Vale acrescentar que o documentário, mesmo elementar em seus apanágios (o diretor tenta dinamizar o ritmo fílmico inserindo efeitos visuais durante os bastidores, como quando Jeremy Corbyn pede água ou quando Ken Loach recusa maquiagem), é deveras assertivo em seu discurso midiático-denuncista. Que venha a terceira parte da trilogia, com a participação do lingüista Noam Chomsky!
Wesley Pereira de Castro.
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Mostra SP 2024: ÁRVORES QUE EU ME LEMBRO (2024, de Erhan Tuncer)
Por não ser um diretor estreante, chama negativamente a atenção, neste drama turco, a frouxidão com que a câmera é segurada em seqüências em não há muita movimentação, como no instante em que Bahar (Hande Dogandemir) e Mahir (Erdem Kaynarca) conversam durante um piquenique, servindo-se da comunicação através da linguagem de sinais: se algo muito interessante ocorre diante da tela, o excesso de tremeliques no enquadramento prejudica a imersão do espectador, num filme que também padece do excesso de pretensões roteirísticas...
Demoramos a perceber que a narrativa é contada de trás para a frente, e este efeito possui uma intenção definida, no modo chocante como é revelado, afinal, o porquê da desoladora insatisfação de Bahar em relação à gravidez que carrega. O desfecho é impactante na exposição de uma disfunção familiar amplamente anunciada, que impregna todos os personagens, levando-os a mencionar a possibilidade de suicídio em mais de uma oportunidade: Bahar, por causa dos traumas relacionados aos "muros" afetivos erigidos por seu pai, que não aceitava que ela tivesse escolhido cursar Comunicação Social na universidade; Mahir, pela condição de paraplégico, decorrente de um desentendimento entre amigos, após uma manifestação política; e Cemal (Istar Gökseven), pelas dificuldades no trato afetivo com seu filho, que reage com rispidez ao seu zelo protetoral.
Outro problema que denuncia a imaturidade estilística do realizador Erhan Tuncer é a construção dramatúrgica dos diálogos: as conversas entre os personagens são longas e demarcadas pelas sofridas lembranças de infância e/ou juventude, mas o arremedo bergmaniano não faz jus à referência célebre, pois, até que consigamos redefinir as noções de causa e conseqüência, invertidas na montagem alinear, a animosidade externada pelo trio central soa um tanto forçada. Os instantes que justificam o título poético são graciosos e os atores são competentes, mas a lentidão rítmica e os caprichos directivos nos distanciam da pujança emocional intentada. É um filme que talvez funcione melhor numa revisão, ciente da lenta concatenação de ressentimentos mnemônicos. Eis o desafio!
Wesley Pereira de Castro.
quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Mostra SP 2024: O TRATOR (2024, de Ramesh Yanthra)
O fato de o diretor Ramesh Yanthra ser proveniente dos documentários faz com que ele dedique parte considerável da metragem de sua estréia ficcional à abordagem descritiva do cotidiano de Muthu (Prabhakaran Jayaraman) e seus parentes: como o enredo condiz com a época do Pongal - festival que ocorre no Sul da Índia, no início de cada ano, no qual, por quatro dias, as pessoas fazem oferendas aos deuses familiares - , esta cerimônia é mostrada duas vezes, em dois anos consecutivos. Numa delas, há fartura, decorrente do labor rural; na outra, a miséria induzida pela credulidade do protagonista em relação a uma empresa fraudulenta, que promete-lhe um trator enquanto prêmio, após o pagamento vultoso de algo similar a um consórcio. Entre uma e outra situação, a vida, que persiste.
Se o cineasta é mui exitoso na reprodução dos rituais religiosos, nas idas de Muthu à feira, nas suas atividades enquanto agricultor e na maneira afetiva como ele se relaciona com a esposa, com o filho, com a mãe e com o sogro, há também espaço, no realismo da proposta cinematográfica, para uma cena de sonho (que metonimiza a extrema ansiedade do protagonista quanto ao recebimento de seu prêmio - afinal, enganoso), para uma contundente denúncia contra a invasão das tecnologias ocidentais e fraudes multinacionais (a mãe de Muthu reclama que, desde que seu filho comprou um telefone celular, coisas ruis começaram a acontecer) e para canções que sintetizam os eventos ocorridos, na plangente voz da mãe de Muthu, interpretada por Pillaiyarpatti Jayalakshmi.
Aceitando o viés dramático, mas evitando o sensacionalismo caro a produções que abordam o malogro de indivíduos através do registro progressivamente sádico, este realizador demonstra um carinho legítimo por seu personagem principal, ficando ao seu lado até o derradeiro momento, quando a mudança de protagonismo para a esposa Selvi (Sweetha Pradhap) - que passa a conduzir o trator, a contragosto - desencadeia mais uma canção por parte da senhora idosa, entoada entre o lamento e a valorização dos esforços de sua nora. O modo persistente como o toque do aparelho telefônico de Muthu invade a banda sonora, nas diversas vezes em que os funcionários do banco cobram as prestações atrasadas, é magistralmente associado à corrosão emocional embutida naqueles acordes eletrônicos, que ressurgem nos créditos finais. Temos, aqui, uma grata surpresa indiana hodierna!
Wesley Pereira de Castro.
Mostra SP 2024: O CHEIRO DO LEITE QUEIMADO (2024, de Justine Bauer)
O fato de ser narrado por uma adolescente permite a este filme uma ambivalência que, ainda que não o redima por completo, problematiza aquilo que incomoda as parcelas do público que não se identificaram com os dilemas compartilhados: se, por um lado, acompanhamos os anseios púberes de garotas que, tal como ocorreu com suas mães e avós, precisam dedicar a maior parte de seus dias às tarefas rurais, por outro, verificamos também a exposição das conseqüências drásticas da especulação financeira nos destinos de pequenos agricultores e pecuaristas. Neste sentido, a seqüência que explica o título é particularmente atordoante, tanto pelo que acontece em seguida (o suicídio de um fazendeiro) quanto pelo próprio desperdício de leite, que não causa a comoção midiática pretendida.
A ausência dos familiares masculinos da protagonista talvez seja explicada pela necessidade de eles trabalharem nas áreas fabris da Alemanha. Resta àquelas mulheres tarefas árduas e intermináveis, como juntar feno, castrar ruminantes e afogar ou espancar os gatinhos recém-nascidos. A constatação de uma reflexão social subjacente a todos estes procedimentos não abole a má impressão direcionada às jovens personagens, visto que a maneira pragmática com que elas tratam os animais provoca desconforto. Vide o instante em que é dito que "depois que o touro foi castrado, ele cresceu bastante e, assim, pôde trabalhar mais"...
As atrizes são simpáticas, mas as situações em que elas se envolvem são regidas por convenções dramáticas muito específicas daquela conjuntura regional: a dúvida de uma das adolescentes quanto à manutenção de uma gravidez, por exemplo, não chega a desencadear um conflito evidente (ao perceber que a sua filha está grávida, a proprietária da fazenda apenas pergunta: "quer dizer que eu serei avó?"), não obstante converter-se na cena que encerra o filme, abruptamente interrompida. O ritmo narrativo é conduzido de maneira monocórdica, mesmo diante de situações impactantes, como o supracitado suicídio ou o momento em que um homem banha-se completamente despido no córrego onde as garotas decidem nadar. Terminada a sessão, as questões sociológicas se sobressaem ao enfado provocado pelos diálogos truncados pela indecisão entre o realismo campestre e o arremedo juvenil de um existencialismo essencialmente feminino. As boas intenções, neste caso, são insuficientes para validar a nossa apreciação!
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Mostra SP 2024: DON GOYO (2023, de Jorge Flores Velasco)
Apesar de ser o personagem-título deste filme e da novela homônima - publicada em 1933, por Demetrio Aguillera Malta [1909-1981] -, Don Goyo (Carlos Chiriboga) aparece pouco. Ele é sobremaneira mencionado - e inicialmente temido -, mas a verdadeira protagonista do filme é Cusumbo (Jenifer Carabalí), uma cortadora de cana-de-açúcar que, após a constatação de diversas injustiças, migra para Guayaquil, onde espera experimentar não apenas a própria liberdade como incitar o sentimento de libertação entre aqueles que, como ela, vêm sendo explorados há gerações...
Permeado pelo realismo fantástico, este drama equatoriano tem aparência épica, mas a sua realização é contrastante: seja por conta da curta duração (pouco mais de uma hora e dez minutos), seja pela utilização excessiva de telas pretas, em seqüências narrativamente impactantes ou para demarcar a passagem de tempo entre as situações. Estes dois aspectos diluem a força da trama, que possui uma contradição elementar na composição da protagonista, atravessada pelas anuências do machismo estrutural. Afinal, ela opta por ficar ao lado de seu pai, depois que este espanca a sua mãe até a morte, durante uma reação colérica atiçada pelo alcoolismo, ou quando, ao flagrar seu amante e sua patroa em conluio sexual, ela sente mais raiva dela que dele, assassinando a ambos.
A abertura do filme é promissora, ao fazer com que o mito de Don Goyo, um negro ancestral que é "pai dos nascidos no mangue", seja contada por um "coronel" local, que, obviamente, descreve a entidade decolonial como alguém possuído pelo Diabo, como um fantasma temível. É quando somos apresentados à jovem Cusumbo, que, alegando não saber dançar, apaixona-se pelo impetuoso Nico (Enrique Guzmán), que deseja fazer sexo com ela "da mesma maneira que as vacas se entregam para os bois". A moça consente, e esta submissão inicial é problematizada no desfecho, depois do encontro com Don Goyo, ainda que o roteiro, escrito pelo próprio diretor, não disponha de suficiente tempo para tornar a personagem tão memorável quanto ela poderia ser, enquanto esboço reivindicativo do proletariado e/ou liderança feminista. Seja como for, trata-se de uma obra bem fotografada, que utiliza as imagens florestais de maneira imponente. O que atrapalha é a montagem apressada. Mas vale a pena buscarmos o livro original, que tal?
Wesley Pereira de Castro.
Mostra SP 2024: O VAQUEIRO (2024, de Emma Rozanski)
Num diálogo circunstancial, porém mui elucidativo acerca das intenções discursivas desta produção, Bernícia (Natalia Cortés Rocha) comenta com sua tia e sua irmã que decepcionou-se um pouco com o faroeste antigo que acabaram de ver. O motivo: segundo ela, havia muitas cenas de ação, e preferia que os personagens apenas cavalgassem e observassem a paisagem. Suas interlocutoras comentam que, sem os tiroteios, o filme ficaria monótono, ninguém gostaria de assisti-lo. Ao que a protagonista retruca: "quem gosta de meditar, gostaria, sim". Para ela, isto representa a descoberta de um reconhecimento identitário, que confunde-se com o próprio filme que estamos vendo, na placidez com que a trama se desenrola...
As situações acontecem de maneira corriqueira: enquanto trabalha num restaurante que fica num parque florestal onde turistas costumam fazer trilhas, Bernícia percebe uma égua perdida na vizinhança. Ela não tem lembranças de já ter montado num cavalo antes, mas passa a ficar obcecada pelo animal, chegando mesmo a dormir no rancho em que o eqüino vive deixando as suas parentas preocupadas, já que ela não possui sequer um telefone celular para enviar mensagens. A partir daquele momento, esta personagem não apenas sentirá que "está aqui" no mundo, mas escolherá para si mesma uma personalidade, para a qual busca inspiração em filmes antigos - no caso, obras da década de 1930, dirigidas por Robert N. Bradbury [1886-1949], que estão sob domínio público.
Conduzido com extrema simpatia pela diretora, este filme apresenta um carinhoso panorama sobre a vida no interior de uma cidade colombiana, em que as notícias violentas associadas ao país estão distantes. Bernícia ressignifica a sua própria solidão, ao encontrar a vestimenta de vaqueiro que começará a utilizar em tempo quase integral. Sua irmã Edita (Paola Abril) a apoia integralmente, mas a decisão dela por dedicar mais tempo para si mesma instaurará alguns conflitos, no sentido de que ela era enxergada apenas como um arrimo familiar, como a babá de seus sobrinhos. Neste sentido, o filme cativa-nos pelo modo como valoriza o sutil empoderamento de uma mulher sem muitas perspectivas, que se reconhece capaz de cuidar de um rancho e até mesmo de fazer amizades, como ocorre com o mochileiro Tobi (Lennart Hermanns), que passa uma noite consigo, bebendo uísque e aguardente. Um enredo deveras simpático sobre autodescoberta, portanto!
Wesley Pereira de Castro.
PERMANÊNCIA EM LUGAR NENHUM (2024, de Tsai Ming-Liang)
Um destes dois homens, conforme já anunciado, é o monge que cobre-se com uma manta vermelha mui perceptível, e que caminha numa velocidade que requer uma intensa capacidade de concentração. Suas aparições originam composições fotográficas fascinantes, como aquela em que ele passa por diante das letras compostas por arco-íris psicodélicos, pintadas nos portões fechados de algum estabelecimento, e que formam a palavra "LOVE" ("amor"). Noutros momentos, há curiosas intervenções do acaso, como quando uma pessoa com dificuldades de locomoção caminha ainda mais rápido que ele, ou quando, no meio de uma estação ferroviária, um transeunte, paralisado por algum tempo no cenário, chama a nossa atenção ocular, competindo com o protagonista inominado e silencioso. As seqüências em calçadas também são bastante interessantes, por conta do modo como as pessoas encaram o monge, que, em sua lentidão, atrapalha o tráfego delas.
O outro homem é interpretado por Anong Houngheuangsy, que já participara de um episódio anterior deste projeto ["Where" (2022)]. Aqui, ele deambula por templos religiosos - num deles, curiosamente, a palavra "heart" ("coração") está sintomaticamente dividida como "he/art" ("ele/arte"), quiçá metonimizando a vinculação desta obra à tônica da instalação artística -, por museus de artefatos asiáticos e por hotéis, onde, num quarto, cozinha a sua própria comida, algo recorrente na filmografia ming-lianguiana. Não há trilha musical (exceto pela canção que é executada para prenunciar o desfecho do filme) nem qualquer mote tramático: vemos apenas dois homens que andam pelos ambientes norte-americanos - entre eles, o famoso Lincoln Memorial. Tudo indica que este monge regressará em capítulos vindouros da cinessérie 'Walker'. Enquanto isso, agradamo-nos ritmicamente por aquilo que é mostrado nos filmes, mas sentimos falta das reflexões relacionais de outrora, conforme ocorreu no excelente "Dias" (2020), protagonizado pela mesma dupla de intérpretes do longa-metragem ora analisado. Tsai Ming-Liang segue absolutamente autoral em seu percurso directivo, eis uma certeza!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 20 de outubro de 2024
A SUBSTÂNCIA (2024, de Coralie Fargeat)
Wesley Pereira de Castro.
RECEBA! (2021, de Pedro Perazzo & Rodrigo Luna)
sexta-feira, 30 de agosto de 2024
ARMADILHA (2024, de M. Night Shyamalan)
Nas entrevistas que concede, M. Night Shyamalan faz questão de enfatizar algo essencial para a compreensão de sua obra: ele é obcecado por Alfred Hitchcock [1899-1980]. Não um mero admirador, mas um legítimo continuador - ou melhor, um expansor, no sentido de que ele conjuga a sua extrema admiração pelo "mestre do suspense" com elementos que ele alegava advir do fascínio por outro cineasta hollywoodiano, Steven Spielberg. Com o que aprendeu deste último, ele justifica a recorrência de famílias desmembradas em seus roteiros. De um cineasta, portanto, ele extrai a idiossincrasia das aparições diante das câmeras (no caso do indiano, em participações com falas e, nalguns casos, determinantes para alguma reviravolta emocional); do outro, a antecipação de que, nalgum momento da trama, será necessário escolher entre a promessa de harmonia familiar e a possibilidade de salvação em larga escala, tanto de pessoas próximas quanto de desconhecidos. Na mistura de referências, uma filmografia extremamente original, que, neste mais recente capítulo, dialoga até mesmo com o maneirismos supramidiáticos de Brian De Palma!
Tal qual o seu grande mentor, para M. Night Shyamalan, o prolongamento da tensão interessa mais - muito mais! - que as reviravoltas acachapantes, ainda que ambas coincidam nos enredos: nesta produção mais recente, ele surpreendeu os espectadores antes da estréia, ao revelar, no 'trailer', que o seu protagonista é um assassino em série deveras perverso. Sabendo disso, adentra-se a sessão frente a um desafio: como evitar a identificação com um personagem tão hediondo, quando tudo o que percebemos está conduzido por seu olhar, através de sua perspectiva associada a necessidade de fugir? Ou seja, o espectador vê-se diante de um dilema fundamental, que é o de emancipar o seu ponto de vista tramático da condução plenipotente do psicopata vivido por Josh Hartnett. Como evadir-se? De antemão, o realizador nos diz: seu ofício é semelhante ao de um sádico, em que prolongar o sofrimento das vítimas funciona como uma missão direcionadora. Tese de gênio!
Pondo em prática uma constatação psicanalítica - a de que a maneira mais eficiente de esconder algo é deixá-la à mostra -, M. Night Shyamalan faz também o inverso: ao obliterar um ou outro detalhe narrativo, ele revela. Daí, ser contraproducente elencar as falhas narrativas ou as inverossimilhanças que as sustentam: o que interessa a ele é a comunhão com o subconsciente espectatorial, sendo imperativo o recurso ao trauma, à explicitação dos mecanismos que retroalimentam a existência dos medos. Por isso, uma psiquiatra (Hayley Mills) orienta os agentes do FBI na busca pelo assassino em série e, nos intervalos de suas canções, Lady Raven (interpretada pela filha do diretor, Saleka Shyamalan) pede à sua vasta platéia que, "se houver alguém, em suas vidas, que vocês precisem perdoar, ergam os seus telefones celulares e digam 'eu te perdôo'". Descobrir a identidade do "Açougueiro" importa muito menos que entender o porquê de ele ter se tornado assim. O intricado (ou, para alguns, defeituoso) enredo é apenas um pretexto: a dialética entre criminoso e vítima é refletida na relação entre o filme e o espectador e, prolongando-se 'ad infinitum', entre este e o que ele se esforça para esquecer...
Jamais desvencilhando-se das lições hitchcockianas, os 'macguffins' shyamalanianos desvelam-se como luxuosas sessões de terapia, em que as personalidades mais violentas podem estar ao nosso lado (ou, em casos eventuais, dentro de nós). Que ele faça isso através dos mais espetaculosos recursos cinematográficos é algo que merece demorados aplausos: vide o caso em pauta, em que a sua filha compôs um álbum inteiro com canções 'pop', repetidas com paixão pelos figurantes do filme e por Riley (Ariel Donoghue), filha do protagonista. Uma destas canções, "Where Did She Go", magistralmente executada ao piano, é pivô de um momento-chave, em que o bombeiro Cooper não pode mais disfarçar quem ele é: "existe um fantasma em minha casa, e ela está vestindo as minhas roupas/ Ela se parece com alguém que eu conhecia/ Ela canta à noite, melodias que eu escrevi/ Há lágrimas nos olhos dela, mas, por detrás, eu sei"...
Tecnicamente, o filme é esplendoroso (toda a longa seqüência do concerto, que ocupa quase metade do filme, é excelente), mas, no desenvolvimento da trama, as incongruências se acumulam, obrigando os espectadores mais afoitos a externarem a sua decepção quanto às obviedades e/ou impossibilidades do filme. Até que, durante os créditos finais, o funcionário Jonathan Langdon exclama, olhando para a tela de sua TV (e, por extensão, para nós), que "nunca mais falará com ninguém enquanto estiver trabalhando". A tese salta aos olhos: M. Night Shyamalan sabe que a manutenção da paranóia e a interdição das gentilezas servem a interesses de vigilância governamental e de macrocomerciantes que se beneficiam dos sentimentos de culpa de seus consumidores. Quer dizer que o assassino escapa, no final? Então...
Wesley Pereira de Castro.
quinta-feira, 29 de agosto de 2024
TIPOS DE GENTILEZA (2024, de Yorgos Lanthimos)
Goste-se ou não das esquisitices - eventualmente forçadas e sempre tendentes à misantropia - do grego Yorgos Lanthimos, ele configura-se - também de maneira forçada - como um dos grandes autores cinematográficos contemporâneos. Se, em suas tramas, a lógica da dominação de um personagem (ou grupo de personagens) por alguém com tendências psicóticas é recorrente, na perspectiva visual, os espaços tendem a ser bastante amplos, sufocando, pelo excesso de vazio, os protagonistas atormentados. Para isso, a atual colaboração com o fotógrafo Robbie Ryan é fundamental, seja quando exagera na utilização das câmeras olhos-de-peixe, em obras anteriores, seja quando emula os planos de longo alcance de Thimios Bakatakis, que fotografou a maioria das obras deste cineasta, e cuja influência é assaz evidente neste longa-metragem...
Mais uma vez colaborando roteiristicamente com Efthimis Filippou, parceiro em quase todos os seus trabalhos [exceção sentida em "A Favorita" (2018) e "Pobres Criaturas" (2023)], Yorgos Lanthimos retoma o flerte com o horror que permeava obras que o tornaram internacionalmente conhecido, como "Dente Canino" (2009) e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017). Tal como ocorre nestes filmes, as subtramas independentes abordam os efeitos colaterais de relacionamentos marcados pela excessiva devoção: na primeira das estórias, em âmbito profissional; na segunda, sob o jugo marital; e, na terceira, avaliando o fanatismo religioso/místico. Mesmo quando resvala em alguma verborragia, as quase três horas de duração do filme são bizarramente entretenedoras!
Um hepteto de atores reveza-se, nas três estórias, em papéis completamente diferentes, sendo surpreendente a radical transformação de Jesse Plemons de um segmento para o outro: de um funcionário subjugado, ele torna-se um marido paranóico e termina como um assecla quase impotente. Emma Stone, apesar de fascinante, não varia o tom de suas interpretações, conquanto vivifique alguém meigo no início, servil no meio, e vilanaz no desfecho. O mesmo ocorre nas personificações de Willem Defoe, que surge demoníaco na abertura, volta quase inexpressivo no episódio intermediário, e aparece como um líder lascivo no enredo derradeiro. Hong Chau, Margaret Qualley, Joe Alwyn e Mamoudou Athie completam o grupo principal de intérpretes, deveras competentes em suas funções tangenciais.
Do um modo semelhante ao anjo que rondava o condomínio onde transcorriam os capítulos de "Decálogo" (1988, de Krzysztof Kieslowski), há uma entidade, identificada através da sigla R.M.F. e personificada por Yorgos Stefanakos, que circunda as três tramas, e nomeará os correspondentes segmentos ("A Morte de R.M.F", "R.M.F. Está Voando" e "R.M.F. Come um Sanduíche"): ele não fala, mas observa os personagens de maneira clemente, percebendo que estes não terão direito aos consolos que buscam, dado o sadismo com que o diretor os trata. Este último aspecto, infelizmente, calha de estragar a potência do filme, visto que, depois de um primeiro episódio interessante mas apenas mediano, vem uma quase obra-prima e, por fim, um segmento que poderia ser magistral, se não fosse a espalhafatosa falta de contenção do realizador. Tudo o que acontece após a mui divulgada dancinha de Emma Stone soa redundante, em relação ao que já fôra demonstrado. Custava respeitar a epifania criminosa que se instaura num necrotério?!
Para quem chegou desprevenido ao filme, os sinais que identificam as obsessões do diretor estão anunciados desde a utilização da canção "Sweet Dreams (Are Made of This)", da banda Eurythmics, durante os créditos de abertura: para este realizador, as "gentilezas" do título correspondem àquilo que a letra oferta, de maneira um tanto ambígua: "todo mundo está procurando por algo/ Alguns deles querem te usar, outros querem ser usados por ti/ Alguns querem te abusar, outros querem ser abusados por ti". Neste sentido, não chega a ser chocante o teor pornográfico dos vídeos de suruba que o policial Daniel (personagem de Jesse Plemons, no segundo segmento) deseja assistir ao lado de um casal de amigos, nem a progressão antropofágica de seus comportamentos. A violência oportunista a que uma cadela idosa é submetida, no terceiro segmento, por sua vez, é bastante incômoda, bem como o sub-aproveitamento do talento desnudo de Hunter Schafer, numa única e breve seqüência. Ainda assim, trata-se de um filme à altura daquilo que esperamos de seu realizador, que, mais uma vez, extrai uma excelente e perturbadora trilha musical de Jerskin Fendrix. A imagem de um cachorro enforcado, como se fosse um suicida, ao som de uma canção metaleira ("Rainbow in the Dark", de Dio), demora a sair de nossa mente!
Wesley Pereira de Castro.
O AUGE DO HUMANO 3 (2023, de Eduardo Williams)
Lançando o terceiro exemplar de um projeto iniciado em 2016 – sem que tenha havido um capítulo intermediário –, o cineasta argentino Eduardo Williams faz jus ao título de seu filme, visto que, nas longas conversas e seqüências contidas em “O Auge do Humano 3” (2023), ele prepara-nos para um clímax quase sobre-humano, no desfecho, quando voar é uma atividade corriqueira. Um trabalho genial, que requer imersão por parte do espectador, concedida através de recursos de Realidade Virtual e da filmagem em trezentos e sessenta graus, que engendra efeitos inebriantes desde o primeiro instante de projeção…
Não há letreiros situando o espectador acerca do país em que uma determinada situação está ocorrendo: migramos de Taiwan para o Peru e para o Sri Lanka em poucos segundos, através de uma montagem virtuosística – a cargo do próprio diretor –, que aproveita de forma magistral a expansão do quadro, as linhas de fuga das paisagens urbanas ou rurais dos ambientes em que os jovens protagonistas interagem.
Na seqüência de abertura, percebemos que interessa mais ao realizador os recursos estendidos de imagem e som que os diálogos, não obstante estes serem indispensáveis, em sua profusão quase surrealista. Caminhando por um cenário praiano, um rapaz alega ter visto um corvo vomitando na praia. Seguem andando, até que um deles precisa urinar, e é elogiado por isso: “tu fazes xixi muito bem”. Encontram uma senhora cujo filho está afastado para dedicar-se ao serviço militar. Despedem-se dela e, ao apressar o passo, um deles escorrega. Como sabe que está sendo filmado, exclama “que vergonha!”. É repreendido de imediato: “vergonha é ser um mega-bilionário”!
Situações como esta são repetidas em cenários distintos e as mesmas frases voltam em meio às conversas aparentemente circunstanciais entre amigos. Chama positivamente a nossa atenção a pletora de membros da comunidade LGBTQIA+, naturalizados em suas vivências diuturnas. Um tema recorrente nestas conversas é a necessidade de procurar emprego ou, paradoxalmente, de relaxar durante as jornadas de trabalho que nem sempre são satisfatórias. Um ótimo exemplo: em determinado momento, um rapaz busca outro no restaurante em que trabalha. Este último não parece reconhecê-lo, mas, de qualquer modo, aceita o convite para passearem, subitamente. De repente, o primeiro começa a correr, alegando estar cansado. O conselho lógico: “não corras, então, senão ficarás ainda mais cansado”!
Flagrando os personagens em casas construídas sobre palafitas, à beira-mar ou no meio da floresta, Eduardo Williams estabelece maravilhosos contrastes entre as figuras humanas e as paisagens e cenários ao seu redor. Para tal, a fotografia de Victoria Pereda – que já trabalhara com o diretor no primeiro capítulo deste audacioso projeto – atinge efeitos esplêndidos e alucinantes, por vezes estroboscópicos. Assistir a este filme equivale a experimentar audiovisualmente as sensações compartilhadas por aqueles jovens!
Para quem aprecia os filmes do tailandês Apichatpong Weerasethakul – sobretudo “Eternamente Sua” (2002), uma de suas obras-primas, com muitas similaridades tramáticas em relação ao trabalho multinacional ora resenhado –, “O Auge do Humano 3” serve como uma indicação tão obrigatória quanto balsâmica: trata-se de uma produção que congrega de maneira inteligente e autoral as características audiovisuais – múltiplas, metamórficas e permutáveis, para citar uma famosa classificação do teórico Arlindo Machado [1949-2020] – da contemporaneidade. Vide a inusitada percepção que se instala quando os jovens conversam sobre narrativas de jogos eletrônicos enquanto passeiam por um cenário vasto e montanhoso, próximo ao surpreendente desfecho, em que a câmera é objetificada em sua subjetividade: num átimo, ela parece perder o seu eixo, mas é logo reencontrada, por um dos personagens, e paralisada, no ápice de um movimento. Incrível!
A fim de que o filme seja tão bem-sucedido em suas intenções “instaladoras”, os efeitos visuais idealizados pelo próprio realizador e o trabalho egrégio da equipe responsável pelo desenho de som possuem importância basilar. Tecnicamente, o filme é deslumbrante, possuindo, em suas entrelinhas, críticas pertinentes à poluição e ao desrespeito de algumas pessoas em relação à Natureza. Num dos píncaros espetaculares deste longa-metragem, a placidez sussurrante do mergulho de uma dupla de amigas é prontamente substituída por uma ‘rave’ aquática, onde ouvimos o “Baile do Caos”, de Alada, na banda sonora. Um filmaço mui descritivo acerca do que é o Século XXI, em termos de conjunção entre imagens e sons cinematográficos, mas que também enfatiza a relevância dos encontros entre seres humanos, inclusive em seu viés sexual. Qualquer elogio superlativo é pouco, muito pouco, para metonimizar o impacto desta obra. Um lançamento extraordinário!
Wesley Pereira de Castro.
quinta-feira, 22 de agosto de 2024
MOTEL DESTINO (2024, de Karim Aïnouz)
Ainda que não seja lícito julgar um filme pelas expectativas que ele provoca, este título é negativamente vitimado pelos expressões superlativas que acompanharam a sua divulgação em coberturas de festivais - e, por extensão, nas redes sociais: a exortação enquanto "'thriller' erótico" e a extrema simpatia dos envolvidos na produção, em entrevistas e coletivas de imprensa, resvalam num desempenho apenas morno na tela. Ou pior: cercado por conveniências tramáticas que soam inconvenientes até mesmo na comparação ostensiva com enredos clássicos do subgênero 'noir', sendo o roteiro decepcionante na insistência com que tenta forçar o impacto do Destino, como se fosse uma entidade exterior, na vida daqueles personagens, quando tudo o que acontece advém da irresponsabilidade e das inconseqüências dos mesmos...
Que Elias, magistralmente interpretado por Fábio Assunção, seja obcecado pelos animais que cria (cavalo, galinhas, gato, etc.) é algo que ajuda bastante no delineamento de caracteres em simultânea atração e conflito, sendo nodal a seqüência em que ele flagra o impetuoso Heraldo (Iago Xavier) observando um casal de burros que se acasala num terreno. Resta-lhe lamentar que "a vida não seja apenas isso" e prosseguir com a labuta infindável no hotel titular, em que os funcionários subjugam as próprias vidas a uma rotina assaz centrípeta, seja em expedientes noturnos ou diurnos. Inclui-se nesta categoria o recepcionista acessório vivido por Yuri Yamamoto, que não esconde uma paixão platônica por seu patrão. Esta paixonite, aliás, será ecoada nas manifestações de homoerotismo que se intensificam quando Elias está próximo a Heraldo, que não hesita em ficar seminu, o tempo quase inteiro, mas se recusa em nadar numa piscina doméstica por "não estar de sunga".
Esplendorosamente fotografado por Hélène Louvart, que serve-se de um contraste excelente entre cores fortes como azul e vermelho, além de efeitos 'neon' e/ou fosforescentes, este filme leva a sério a sua autodefinição enquanto "'noir' equatorial": em muitas situações, as cenas são tão escuras, que percebemos sobretudo a iluminação advinda de pirilampos ou o reflexo da lua nos corpos suados dos atores. E isto é maravilhoso, tanto quanto outros aspectos formais da obra. O problema é que estes elementos técnicos estejam a serviço de uma trama insossa e mal construída, principalmente no que diz respeito ao delineamento dos personagens: vide o fascínio súbito que Dayana (Nataly Rocha) sente por Iago quando este tenta lhe estrangular por não ter dinheiro para pagar a estadia no quarto onde esteve com uma desconhecida, enquanto ela converte o seu marido em vilão por ele demonstrar os mesmos comportamentos violentos ou possessivos atrelados à competividade masculina. Neste sentido, o grande problema do filme é o sobejo de coincidências, como a morte do francês que Heraldo deveria ter assassinado, num quarto do Motel Destino, ou as situações que justificam a leitura romântica de uma carta, no desfecho.
Se, em âmbito imagético, o filme é acachapante, o desenho de som revela-se exagerado ao manter uma contínua banda sonora de gritos e gemidos escandalosos no motel, como se todas as pessoas fizessem sexo de maneira radicalmente indiscreta. Os diálogos pronunciados por Heraldo e Dayana muitas vezes soam inconvincentes, em razão de ignorarem a concatenação emotiva provocada pelas situações imediatamente anteriores: é como se eles vivessem num presente perpétuo, referendando, mais uma vez, a associação com os comportamentos animalescos. Complementam os problemas do filme a reprodução caricata do ambiente criminal em que Heraldo e seu irmão interagiam e as alucinações visuais que atormentam o rapaz, ao longo da projeção. Em seu pretenso erotismo, o filme é brochante, exceto quando Fábio Assunção está em cena, dignificando um personagem ambíguo com tamanha intensidade, que, mesmo que ele não apareça nu (como foi amplamente perguntado nas redes sociais, antes do lançamento), desnuda-se impressionantemente enquanto artista, sem medo de se reinventar, após diversas atribulações em sua vida pessoal. Por ele e pelos esperados maneirismos da direção, o filme compensa a debilidade tramática e a inverossimilhança relacional que, infelizmente, atravessa toda a narrativa!
Wesley Pereira de Castro.
sexta-feira, 16 de agosto de 2024
Festival de Gramado 2024 - Documentários: POEMARIA (2024, de Davi Kinski)
Que a inspiração nos filmes de Eduardo Coutinho [1933-2014] seja destacada na sinopse e no material de divulgação deste filme é algo que muito mais atrapalha do que ajuda, no sentido de que cria-se, a partir disso, uma expectativa insatisfatória: afinal, emula-se o dispositivo, mas não necessariamente o método. Registrar as falas emocionadas de várias pessoas - entre famosos e profissionais do dia a dia -, diante de uma tela negra, num palco vazio, não é o mesmo que "entender a razão do outro, sem lhe dar razão". Superada esta comparação auto-imposta, "Poemaria" (2024) cativa por aquilo que possui de tão particular: os relatos de poetas, assumidos ou não, que lidam com a beleza inequívoca de um ofício que salva vidas, como tantos concordam e ratificam, em suas lembranças. Vide o exemplo da tributarista Claire Feliz Regina que, aos oitenta anos de idade, começa a escrever poesias e compõe uma prodigiosa ode à vagina...
Logo na abertura, o ator Gero Camilo chama a atenção para o fascínio engendrado pelos ruídos da claquete, enquanto disparo exordial da "poesia cinematográfica". Segue-se um depoimento prenhe de erotismo, em que ele destaca o processo poético como atravessado pelos mesmos mecanismos de uma trepada, em que o esperma e o óvulo a ser fecundado são as palavras, as frases e os sentimentos. Daí para a frente, todos os entrevistados trarão à tona emoções intensificadas, a partir do modo como eles lidam com definições muito pessoais que correspondem à poesia: seja quando a jornalista Marília Gabriela comenta as dificuldades inerentes à recepção artística; seja quando o estilista Fause Haten declara que qualquer ato pode ser poético, sendo expresso em palavras ou não. Ou quando Jean Wyllys relembra o verso maiakovskiano, musicado por Caetano Veloso, que ouviu enquanto comia uma macarronada, depois de uma longa privação de víveres: "gente é para brilhar, não para morrer de fome". Dá para compreender imediatamente o porquê de ele ter tatuado isto em seu peito!
Num momento egrégio, a poetisa mineira Adélia Prado tem seu choro, manifesto enquanto lê um de seus poemas, interrompido pela montagem, a fim de se coadunar à recitação de um poema também dela, agora na voz de uma médica, que explica que a poesia a atinge "onde a ciência não alcança". Seu relato sobre uma paciente moribunda, que lacrimejava mesmo estando desidratada, é impressionante, tanto quanto a resposta da escritora Rosana Banharoli à pergunta "se a poesia fosse uma pessoa, o que tu dirias a ela?". Sem pestanejar, ela diz: "eu te amo. Obrigada por me salvar!". Isso ecoa nas contribuições de vários dos outros depoentes, como quando Alexandre Borges define o ato de ser pai como sumamente poético ou quando Ignácio de Loyola Brandão tece o máximo de elogios à capacidade sintetizadora de um 'haicai'. E é da comediante transexual Nany People que surge um dos apotegmas mais potentes, quando, ao recordar algo que a sua avó repetia, ela direciona ao espectador a seguinte lição: "não importa o prejuízo trazido pela tempestade; o que importa é a nossa capacidade de fazer a lavoura voltar a brotar". Eis a poesia em curso!
Wesley Pereira de Castro.