sábado, 15 de novembro de 2025

ERA UMA VEZ EM GAZA (2025, de Tarzan Nasser & Arab Nasser)

Dentre os vários méritos perpetrados por esta dupla de irmãos diretores - que fizeram jus ao prêmio recebido na mostra 'Un Certain Regard', do Festival de Cannes -, enfatizamos o modo como eles compreendem o necessário chavão político que preconiza que "não existe conteúdo revolucionário sem uma forma revolucionária": ao versarem sobre a causa palestina, mas respeitando determinadas convenções narrativas cinematográficas, eles valorizam a inteligência do espectador ao permitir que algumas brechas entre os eventos abordados permaneçam não esclarecidas, de modo que, assim, elas possam ser completadas através do arcabouço de quem vê o filme. Este, portanto, é ressignificado e engradecido a cada informação revelada sobre os percalços de produção ou sobre o contexto epocal em que se passam as situações, entre os anos de 2007 (quando o Movimento de Resistência Islâmica Hamas assumiu o poder em Gaza) e 2010, quando houve o ataque da Marinha de Israel à Flotilha da Liberdade, que intentava levar víveres para os habitantes da Faixa de Gaza. 

    

Há uma cerimônia fúnebre que se repete em mais de um momento: celebrando o falecimento de um mártir palestino, cuja luta serve de exemplo para as novas gerações, os acompanhantes do defunto atiram para cima, enquanto vemos bandeiras hasteadas, num 'travelling' vertical para o céu. Da primeira vez em que isso acontece, não sabemos quem está sendo enterrado; na segunda, há contigüidade espacial em relação ao restaurante onde trabalha um dos protagonistas; e, na terceira, é este próprio personagem quem está morto, sendo alçado a uma categoria de veneração que ocorria apenas intrafilmicamente, na produção que ele protagoniza, dentro do filme que estamos vendo... 



Servindo-se habilmente de 'flashforwards', os diretores exibem, logo no começo, o 'trailer' do "primeiro filme de ação realizado em Gaza", que será apresentado na segunda metade da trama, depois que Yahya (Nader Abd Alhay) é reencontrado, dois anos depois de ter testemunhado o assassinato de seu melhor amigo, Osama (Majd Eid), por um policial corrupto, Abou Sami (Ramzi Maqdisi). Escolhido para interpretar um revolucionário palestino, por conta de sua similaridade física com ele, Yahya é dotado de uma conscientização política que parecia ter anulado, quando foi obrigado a estabelecer-se como um mero vendedor de faláfeis, ao perceber-se confinado na cidade de Gaza, impedido pelo Governo israelense de visitar a sua mãe, mesmo que ela more a apenas uma hora de viagem de onde ele vive. Qual o motivo deste impedimento? "Os israelenses não justificam os motivos para as suas proibições", esclarece uma funcionária burocrática, entregando mecanicamente os documentos a Yahya... 


Numa utilização brilhante de uma canção 'pop' - "Elly Etmanetoh", da cantora libanesa Nawal Al Zoghbi -, quiçá a favorita de Osama, já que ele a dançava antes de ser morto, Yahya a ouve depois que se vinga de Abou Sami e, assim, sabemos como ele e seu amigo se conheceram, quando um era universitário e o outro taxista. O que fez com que eles se tornassem proprietários de um restaurante, que, nas horas vagas, traficavam analgésicos (cujas receitas são obtidas ilegalmente durante consultas médicas, quando Osama alega sentir dores por causa das cicatrizes obtidas durante a sua participação numa intifada)? Eis mais um dos aspectos não respondidos do roteiro que, desta maneira, obriga a espectador a refletir acerca da onipresença opressora de Israel no cotidiano daqueles personagens. Enquanto eles comem, discutem ou cozinham, vemos e ouvimos bombas ser disparadas nos prédios locais - detalhe: por motivos mui compreensíveis, as filmagens ocorreram na Jordânia, em 2023. No crédito derradeiro, quando o filme termina, uma sentença é escrita na tela, como um vaticínio ativista: 'it will end' ("vai acabar"). Que tal anseio seja reproduzido na prática: eis o que desejamos a partir deste trabalho de mestres, que contribui efetivamente para a execução de uma longeva exortação emancipatória, que, da mesma maneira que infelizmente depende dos disparos de metralhadoras, também concebe a "resistência através das imagens", conforme explica o diretor do filme dentro do filme. Evidente e, por isso mesmo, genial! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

PALESTINA 36 (2025, de Annemarie Jacir)


Quando este filme, roteirizado pela própria diretora, oferta-nos o que é prometido no título (uma reconstituição de época acerca das revoltas de aldeões palestinos contra a dominação britânica em seu país, a partir do ano em pauta), o enredo é minimamente interessante, dentro de sua adesão às convenções narrativas de cariz hollywoodiano. Porém, isto não é suficientemente defendido: como a realizadora é nascida em Belém, no território palestino, ela opta por esperadas conclamações políticas - boa parte delas, a cargo de personagens femininas, o que é mui defensável -, mas isto acontece sob um viés tão esquemático quanto publicitário: para fazer com que o público simpatize automaticamente com a causa palestina, elabora-se um estratagema maniqueísta, que depende de um vilão unidimensional e crudelíssimo, o capitão Wingate (Robert Aramayo), que rapidamente torna-se alvo da fúria espectatorial, e, assim, aspectos históricos merecedores de reflexão são negligenciados... 


Ao trazer para o primeiro plano enredístico situações que ecoam o que ainda acontece na Palestina - o que demonstra-se escandaloso, na manutenção remunerada de quase cem anos de extrema injustiça contra os habitantes locais -, este filme, infelizmente, opta por clichês inautênticos, que nos distanciam do que ele deseja contar, ao invés de validar a nossa imediata (e pretendida) adesão emocional. Pensemos no recurso equivocado das seqüências em câmera lenta, na utilização de uma trilha musical xaroposa e na concepção pouco aprofundada de personagens potentes naquilo que poderiam desempenhar: o esforçado Yusuf (Karim Daoud Anaya), que trabalha como motorista para um importante morador de Jerusalém; o garotinho Kareem (Ward Helou), que aprenderá a atirar, depois de testemunhar o assassinato de seus parentes, mesmo interagindo freqüentemente com um padre cristão; e a escritora Khuloud (Yasmine Al Massri), que precisa utilizar um codinome masculino para poder publicar seus artigos no jornal de seu esposo, Amir (Dhafer L'Abidine). Ao invés de explorar a contento os dramas interligados destes personagens locais, a diretora desperdiça interesse discursivo ao confundir a perspectiva do filme com a piedade influente do secretário inglês Thomas (Billy Howle), depois que testemunha os extremos maus tratos a que os palestinos são submetidos pelas decisões coloniais... 


A utilização recorrente de imagens de arquivo colorizadas e animadas através de Inteligência Artificial exteriorizam uma insuficiente confiança da diretora nos aspectos históricos do período retratado, insistindo em manipular exageradamente os eventos abordados no roteiro, anteriores ao estabelecimento forçoso do Estado de Israel, em 1948, mas já antecipando as suas mazelas, em razão do financiamento sionista, que contou com infiltrados palestinos, traidores de sua própria nação. Preocupada em conformar o seu longa-metragem a toda pompa exigida pelas superproduções épicas norte-americanas (cenas de sofrimento, fotografia opulenta, aproveitamento chamativo das paisagens locais), Annemarie Jacir, que já possui uma carreira consolidada, age como diretora estreante, indecisa quanto aos seus propósitos e pusilânime em sua envergadura política, conforme fica evidente nos diálogos quase chistosos em sua tautologia, como quando, numa festa, ao faltar energia elétrica, alguém reclama que "os rebeldes querem nos lembrar dos aspectos ruins da sociedade" ou quando, ao justificar a publicação de textos favoráveis à progressiva dominação judaica no território palestino, Amir diz que aquilo "trata-se apenas de opiniões e palavras", como se fosse algo desimportante. No desfecho, a câmera detém-se num 'close-up' nos pés de uma adolescente que corre, enquanto alguém toca uma gaita de fole, nos créditos finais. É um tropo imagético que desperta alguma revolta em nós, diante do absurdo que é esta guerra contemporânea, convertida em genocídio, mas não é suficiente para tornar autêntico um projeto fílmico que parece encomendado por outrem, sem a devida empolgação. Vide a reles participação de Jeremy Irons como um político britânico, que não quer que o periga acontecer na Palestina daquele período, no que tange aos conflitos populares - fingidamente religiosos em alegação institucional - torne-se algo parecido com o que já ocorria na Irlanda. É bem pior, infelizmente! 



Wesley Pereira de Castro.