quinta-feira, 21 de maio de 2015
MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA ('Mad Max: Fury Road') Austrália/EUA, 2015. Direção: George Miller
Não obstante ser – ao menos, por enquanto – o fecho de uma tetralogia iniciada com a obra-prima “Mad Max” (1979), este filme não carece da audiência prévia aos filmes anteriores para ser compreendido. Na verdade, ocorre praticamente o inverso: a trama desta obra é tão desconectada em relação aos eventos prévios da vida de Max Rockatansky (antes interpretado por Mel Gibson) que as reverberações de memórias de garotinhas suplicantes que culpam o protagonista por não ter conseguido salvá-las soam insuportavelmente incoerentes. Afinal de contas, levando-se em consideração o somatório de desgraças que já fora testemunhado (ou até mesmo praticado) pelo personagem-título, as suas reprimendas contra a esperança e a inserção do adjetivo ‘mad’ (que pode significar tanto ‘louco’ quanto ‘furioso’) em seu prenome tornam dispensáveis as lembranças persecutórias de melindrosos falecidos.
Sendo assim, logo em sua seqüência inicial, quando testemunhamos o sujo Max, diante de um precipício, narrando as condições mui rudes de sua sobrevivência quase instintiva, o filme demonstra-se perseguido por este conflito entre a violência inclemente e cultuada de sua verve australiana (vide o modo como o protagonista mastiga um lagarto bicéfalo que surge no deserto em que se encontrava) e o sentimentalismo que se instala até mesmo nos mais selvagens filmes de ação hollywoodianos (manifesto inicialmente através destas lembranças infantis persistentes e hipertrofiado no tratamento inevitavelmente “feminino” que é concedido às mulheres seqüestradas para serem meras reprodutoras, que Max se dispõe a salvar).
Este conflito, porém, não prejudica a admissão de extrema qualidade acerca da direção versátil de George Miller, que se aventurou por filmes dos mais diferentes gêneros e classificações etárias, conforme demonstram “As Bruxas de Eastwick” (1987), “O Óleo de Lorenzo” (1992) e “Babe – O Porquinho Atrapalhado na Cidade” (1998), para ficar apenas em alguns. Um traço comum a seus filmes? Quiçá a capacidade dos protagonistas em reconstruir os laços familiares após a ocorrência de tragédias, o que faz com que o final feliz de “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015) não seja desprovido de sentido, ainda que pareça um tanto súbito no que diz respeito aos “viciados em água” que circundavam a Cidadela em que viviam os personagens.
Com algumas similaridades formais em relação a “Mad Max 2: A Caçada Continua” (1981), o maior problema desta mais recente produção milleriana talvez seja o desenvolvimento de seu roteiro (escrito pelo próprio diretor, ao lado de Brendan McCarthy e Nico Lathouris), visto que, apesar do ótimo argumento e do aplaudível ritmo quase incessante de ação, os diálogos são vagos e desperdiçam o potencial levado a cabo pela extraordinária direção de arte. Se, nos minutos em que exibe o cotidiano do monstruoso Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) e a sua horda infindável de serviçais filiais, o filme poderia explorar a contento sua transposição sexualmente invertida de uma colméia de abelhas – em que Joe seria, obviamente, a abelha-rainha; seus filhos deficientes, as abelhas-operárias; e as mulheres aprisionadas, os zangões reprodutores –, infelizmente, quando a rebelde Furiosa (Charlize Theron, maravilhosa) parte em sua jornada ensandecida pelos desertos da Terra devastada, todo este potencial descritivo-narrativo é desperdiçado.
Ainda que, em breves relances dialogísticos, a portentosa construção do universo tirânico de Joe reverbere – vide as práticas excessivamente ritualizadas de seus asseclas, as características patológicas dos portadores da “meia-vida”, as relações comerciais de interdependência com outras regiões –, o roteiro não se mostra tão oportunamente político quanto poderia ser, visto que o seu discurso ecológico e reflorestador na metade final, apesar de sincero e bem-vindo, soa muito mais convencional que legítimo, por causa, principalmente, de um incômodo momento anterior, em que flagramos as mulheres raptadas (algumas delas grávidas) banhando-se à revelia com uma mangueira, numa cena deveras assemelhada às que encontramos em filmes eróticos tradicionais.
Se a substituição de Mel Gibson pelo alucinado Tom Hardy assegurou de imediato a caracterização insana do hipercodificado personagem, esta insanidade contamina todos os demais intérpretes, visto que as tentativas de comunicação entre eles são quase sempre aos gritos, aos socos e aos gestos frenéticos. Os laivos de calmaria, surpreendentemente, vêm da personagem Furiosa, que aos poucos revela a sua emocionante origem, e do inaudito Nux (Nicholas Hoult, também ótimo), que é convertido pelo amor, num estratagema narrativo que parece forçado no início (quando ele é impedido de ser assassinado por uma das mulheres, a partir da argumentação de que “não deve haver mortes desnecessárias”!), mas que é positivamente justificado quando ele utiliza seu treinamento de ‘kamicrazy’ para sacrificar-se em prol das sobreviventes e futuras ressemeadoras do mundo.
Todo o processo de conversão, entretanto, revela mais uma concessão roteirística às convenções sentimentais do cinema hollywoodiano, sendo o mesmo bem-aceito pelo espectador tanto por sua funcionalidade intrínseca quanto, sobretudo, por sua previsibilidade contextual. No que tange às interpretações e caracterizações, portanto, o filme foi deveras feliz em suas escolhas, sendo mais uma vez digna de menção elogiosa a magnificente direção de arte e os estupefacientes trabalhos de maquilagem e indumentária.
Em meio à frenética corrida que domina mais de três quatros da duração (120 minutos) do filme, um aspecto genial salta aos olhos: a diegetização da espetacular trilha musical de Junkie XL (nome de palco do DJ holandês Tom Holkenborg), a partir da reprodução de uma prática comum nas investidas bélicas do passado, a saber, o acompanhamento, nas batalhas, de músicos que seguiam os soldados. Assim sendo, o guitarrista delirante que é mostrado executando um instrumento ígneo, cercado por dezenas de bateristas, enquanto hordas de veículos velocíssimos digladiavam entre si, surge como um dos maiores e singulares méritos deste filme. Um detalhe magistral, que fica ainda mais vigoroso quando o próprio Max enfrenta este guitarrista numa luta corpo a corpo, estando o mesmo muito mais preocupado em continuar com a execução de sua cantilena ‘rocker’ que em ferir o seu inimigo.
Mais uma vez, reaproveitando a metáfora da colméia, isto faz pensar na subordinação das abelhas-operárias às funções para as quais foram designadas, sendo muito interessante na concepção da aparência física das centenas de filhos de Immortan Joe a sua face decrépita, decorrente não apenas de uma anemia nata como também das várias pústulas que irrompem em seus corpos esquálidos, infecções estas que são tão naturalizadas que o meigo Nux chega mesmo a nomear e tatuar amigavelmente os tumores que podem consumir definitivamente as suas já parcas forças vitais.
Para além do sub-aproveitamento do próprio universo que erigiu, o roteiro de “Mad Max: Estrada da Fúria” não impede que o filme como um todo seja uma elegante diversão e uma advertência autoflagelada acerca das inelutáveis contradições morais da produção cinematográfica hodierna: afinal de contas, se um filme gastou milhões de dólares em sua produção (e, diante da exuberância dos cenários, é óbvio que o orçamento desta produção foi avassalador), é imprescindível que os mesmos sejam devolvidos na bilheteria e, a fim de os espectadores não estranhem por completo o resultado final, as convenções românticas e sentimentais a que eles estão acostumados devem ser conservadas. Nesse sentido, não de deve repreender George Miller por ter tentado: sua direção é absolutamente audaciosa! Pena que não apenas o diretor comanda o filme...
Wesley Pereira de Castro.
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