quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

UMA CERTA TENDÊNCIA DO CINEMA SERGIPANO?


Para além das diversas outras atividades e eventos realizados ao longo do dia, a noite de 26 de dezembro de 2012 ficará marcado para alguns espectadores como o dia em que foram lançados mais alguns curtas-metragens que, talvez, erijam a nova geração de cineastas ou videastas sergipanos. Agraciados por um edital público de financiamento estatal, cinco produções foram apresentadas na referida noite, numa cerimônia que se iniciou com pelo menos uma hora de atraso. Antipatias pessoais e conhecimento prévio acerca das limitações teóricas ou presunções exacerbadas de alguns dos envolvidos na produção destes curtas-metragens levaram algumas personalidades criticamente influentes a negarem-se ostensivamente a ver os mesmos, ao passo em que eu, por estar imbuído da necessidade cinefílica de avaliar o que está sendo produzido no Estado em que resido, dispus a ver pelo menos quatros dos cinco filmes apresentados. Recusei-me a ver o último por causa da bazófia de seu realizador em alegar que o corte de 15 minutos então exibido foi uma imposição que ia de encontro às suas pretensões criativas, de modo que uma “versão do diretor” seria exibida noutra data e aquilo que estávamos prestes a conferir era apenas uma “mostra” do seu trabalho. A própria configuração terminante do evento negava a justificativa do diretor para a insatisfação em relação à duração instituída pelo edital para o seu curta-metragem, de modo que isso feriu a minha sensibilidade espectatorial: levantei-me audaciosamente da sala e, se for o caso, deixo para ver o documentário sobre o Hotel Palace quando ele estrear do modo que o diretor achar conveniente. Mas, por ora, vamos a algumas considerações pessoais prévias acerca do que foi visto:


  • ·         “Luzeiro” (2013, de Raphael Borges): oficialmente, este filme a ser lançado apenas em janeiro do ano vindouro padece de um problema similar àquele que justificou o meu boicote íntimo ao último filme, mas o comentário de uma amiga de que ele seria “uma obra-prima” (palavras dela, juro!) levaram-me a desafiar uma idiossincrasia e quase me arrepender de tê-lo feito. Na trama do filme, os habitantes de um povoado do município de Lagarto ficam ansiosos com a instalação de fiação elétrica em sua localidade, de modo que um agricultor em particular, cuja família trabalha com produtos alimentícios derivados da mandioca, declara publicamente o seu sonho de ter uma televisão de plasma. Declara publicamente o seu intento de comprar o referido eletrodoméstico, enquanto a trama passa a acompanhar as promessas políticas de um candidato em campanha pela reeleição como prefeito, que, em seus momentos mais tragicômico, no sentido mais lancinantemente anti-democrático do termo, faz pensar em "Terceiro Milênio" (1981, documentário antológico e pouco visto de Jorge Bodanzky & Wolf Gauer).  O desfecho do filme é um anticlímax proposital, em que o candidato assegura ao agricultor que ele disporá da energia elétrica necessária para a utilização de sua televisão de plasma. A idéia é original, a crítica é bem-feita (ao menos, em teoria), mas algo prejudicou a desenvoltura do filme. Talvez o fato de esta não ser a montagem oficial do curta-metragem, mas aí é outra história: por ora, falo apenas do que vi...;


  • ·         “Tudo Vai Ficar Bem” (2012, de Cleiton Lobo): sem dúvida, o grande chamariz publicitário-quantitativo do evento, este filme chamou previamente a atenção de muitos dos interessados por causa de sua temática homossexual e parabiográfica. A partir de um roteiro de Cláudio Pereira, acompanhamos o idílio romântico de um casal ‘gay’ ser interrompido pela morte de um deles, que exerce a função de professor universitário, supostamente assassinado pelo pai do sobrevivente, definido como “uma figura emblemática” pela sinopse do filme que foi lida antes do início da sessão. Ao final, a angústia progressiva do pai, afligido tanto pelo que parece ser um sentimento de culpa (teria sido ele o assassino do genro?) quanto pelas dificuldades de comunicação com seu filho, destaca-se – inclusive pelo fato de a atuação de Flávio Porto ser meritória – mas o curta-metragem é amplamente prejudicado pelas atuações excessivamente empostadas  de Carlos Augusto de Lima e Leandro Handel, atreladas a uma afetação que pode ter provindo tanto da experiência teatral prévia de ambos os intérpretes quanto por uma apreensão equivocada do tom dramático conferido pelas poesias de Fernando Pessoa que são lidas na narração inicial. Apesar de um ou outro esforço directivo (a insistência na câmera subjetiva, por exemplo), os resultados desagradaram: entre as pessoas que consultei, foi quase unânime a decepção em relação ao filme, que, num vaticínio pessoal direcionado ao diretor, periga ser muito mais lembrado pelo demorado beijo entre dois homens que por suas características audiovisuais num futuro próximo;


  • ·         “Aracajoubert” (2012, de Jade Moraes): documentário sobre o talentoso artista plástico Joubert Moraes, que, por acaso, é pai da diretora e roteirista, mas que, ao invés de incorrer num problema, assume-se como uma grande virtude, visto que a intimidade com que ela conduz as entrevistas com personalidades importantes da cena cultural sergipana de décadas anteriores é muitíssimo bem-vinda (vide, por exemplo, a ótima declaração de Ilma Fontes, acerca da tendência ‘up to date’ de seus companheiros intelectuais de geração). Além de apresentar com louvor fotografias que mostravam o vigor da juventude – tanto pessoal quanto artística – do pintor, sua filha faz questão de mostrá-lo em plena atividade, cantando ao lado de alguns parceiros musicais hodiernos, em relação aos quais ele é tratado como um padrinho, e diante de suas criações pictóricas, sendo comparado por uma admiradora pessoal a um não-renascentista. O detalhe: uma das funções precípuas de um documentário (apresentar um tema real a um público que porventura o desconhece) foi cumprida à risca, de modo que não apenas ouvi de várias pessoas o interesse de conhecer melhor a obra do artista como, no local em que estávamos, O Museu da Gente Sergipana, deparamo-nos com um belo quadro do pintor, analisado já á sombra das declarações emocionadas que vimos no filme. Gracioso e funcional, portanto: vale a pena ser mais bem conhecido!;


  • ·         “Caixa D’Água – Qui-Lombo É Esse?” (2012, de Everlane Moraes, mostrado em foto): já havia tido acesso a algumas imagens iniciais de uma pré-montagem da diretora, num debate em que a mesma expôs a grandiosidade antropológica e mnemônica de seu projeto, mas surpreendi deveras com a qualidade da versão final. Não apenas o filme resolveu muito bem a conjunção entre uma linguagem poética e, ao mesmo tempo, preocupada com a oralidade dos depoentes como algumas soluções estilísticas mui criativas (uma animação durante a narrativa da fundação espontânea de um cemitério infantil, projeções fotográficas sobre o corpo da própria diretora e de um ator, superposição de vozes, etc.), o teor bakhtiniano da narrativa documental impressiona pelo respeito aos moradores da comunidade onde a própria diretora vive, sendo que o curta-metragem é ainda agraciado por trechos antológicos de uma apresentação do cantor e compositor Irmão num programa da TV Aperipê, em que o artista cunha o neologismo “sofreviventes” para referir-se aos quilombolas. Emocionante e muito realizado: de longe, o melhor da longe e uma das produções mais interessantes do panorama audiovisual sergipano!

Ao término deste último curta-metragem, conforme já disse, saí da sala exibitória e fui interagir com os presentes no local, coletar mais opiniões, cotejar com minhas próprias impressões e pensar numa maneira de responder modestamente ao que é perguntado no título desta postagem, em referência cínica a um polêmico artigo do então crítico de cinema François Truffaut. Pensando bem, é muito cedo para responder qualquer coisa: ainda é necessário ler, ver e ouvir muita coisa sobre cinema aqui em Sergipe, mas, por ora, talvez eu precise admitir que um passo importante foi dado nesta noite. O problema é que, infelizmente, a grande maioria dos passantes não conhecem direito as dimensões ou para que servem os seus pés cinematográficos...

Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

AS AVENTURAS DE PI ('Life of Pi') EUA/China, 2012. Direção: Ang Lee.

Num texto datado de 1957, fundamental para a arregimentação teórica do que foi consagrado como “Política dos Autores”, o cineasta e crítico de cinema François Truffaut afirma que “um diretor possui um estilo perceptível em todos os seus filmes, e isso vale para os piores cineastas e seus piores filmes”. Alegando que, para além das diferenças técnicas e produtivas imputadas de um filme para outro, um cineasta inteligente e talentoso permanece merecedor de ambos os adjetivos não importa que filme esteja a realizar, François Truffaut acrescenta que “um filme de diretor não visa à perfeição; é menos homogêneo, porém mais vivo, mais belo de rever”.

Ainda que alguns considerem precipitada a consideração do taiwanês Ang Lee como um cineasta autoral, é inegável que, ao transitar por filmes dos mais variegados gêneros, ele consegue imprimir uma sutil marca registrada permanente, estando esta atrelada à temática recorrente da autoridade paterna questionada pela rebeldia de sua prole. Transitando entre a figura ostensiva do pai em crise [“Comer, Beber, Viver” (1994), “Tempestade de Gelo” (1997), “Hulk” (2003)] e a figura paterna ausente, omissa ou substituída [“Razão e Sensibilidade” (1995), “Desejo e Perigo” (2007), “Aconteceu em Woodstock” (2009)], esta temática explica por que filmes tão distintos quanto os excelentes “O Tigre e o Dragão” (2000) e “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005) possuem aspectos em comum que ultrapassam as suas convenções genéricas específicas e asseguram a impressionante versatilidade do diretor Ang Lee.

 Em “As Aventuras de Pi”, como era esperado, tal temática é novamente importante para se entender as motivações pulsionais dos personagens, mas, no caso do protagonista Piscine Patel (Suraj Sharma), o que surpreende é a elevação do questionamento da autoridade paterna a um nível teológico, visto que, numa cena-chave, uma criança hindu tendente à conversão ao cristianismo interroga-se pungentemente acerca dos motivos que levaram Deus a conduzir a própria figura humana de Seu filho para sofrer na Terra...

A introdução oportuna das questões religiosas no roteiro deste filme – escrito por David Magee a partir de um conceituado romance de Yann Martel – transporta o espectador por um terreno muito mais árduo do que parecia demonstrar a assunção de que Ang Lee é um cineasta autoral e com preocupações assaz íntimas acerca da reiteração das relações familiares anteriormente descritas. Além de se considerar simultaneamente hindu, cristão e muçulmano, o personagem principal ainda dialogará com um budista, sendo este último fundamental para o pretenso deslindamento de uma chave interpretativa justificadora dos panegíricos destinados ao filme, ao qual seria ofensivo dedicar uma análise meramente técnica ou centrada apenas em suas peculiaridades tramáticas. 

Um dos méritos mais evidentes do filme é a sua apresentação narrativa ambígua, inicialmente conduzida pelo protagonista envelhecido (Irrfan Khan) que conta a sua estória de sobrevivência para um audiente (Rafe Spall) prontamente identificado como alter-ego do escritor Yann Martel. Se, no princípio, esta narração intercalada parece incômoda ou equivocada, numa das seqüências finais ela instaura a dúvida acerca da veracidade intradiegética dos eventos narrados, quando estes se bifurcam numa trama convencional e noutra simbólica, em que um quarteto de animais desempenha funções antropomorfizadas. O problema (no melhor sentido do termo): mesmo que associemos a zebra ferida, a hiena agressiva, a orangotanga maternal e o tigre instintivo a um budista feliz, a um marinheiro chistoso, à mãe do protagonista e a ele próprio, como tenta fazer alguém durante o filme, a co-presença de Pi em relação a estes mamíferos exige que analisemos o seu espectro enredístico a partir de um prisma crítico/narratológico mais ousado.

Obrigando o espectador a se posicionar diante de duas ficções possíveis envolvendo as mesmas possibilidades de interação entre personagens, Ang Lee, através do roteiro que dirige, lança-nos na mesma encruzilhada conteudística que balizava “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003, de Tim Burton), não por acaso um filme sobre um filho que se desentende com seu pai fantasioso. Porém, dois filmes com os quais se pode cotejar diretamente “As Aventuras de Pi” são “Stromboli” (1949, de Roberto Rossellini) e “Náufrago” (2000, de Robert Zemeckis). 

Em relação à segunda obra, as associações são óbvias, visto que existem diversas conexões entre ambos os filmes, como a valorização encantatória e, ao mesmo tempo, periculosa de misteriosos seres vivos marinhos e a perda dalgum objeto que assegura a sanidade do protagonista à deriva em meio à solidão concernente à sua espécie (uma bola de futebol humanizada a partir de uma mancha de sangue que parece uma efígie sorridente, no filme zemeckisiano, e um caderno onde relatava as suas memórias de sobrevivência, no filme mais recente). Já no que diz respeito ao clássico de Roberto Rossellini, o filme de Ang Lee irmana-se no que tange à aceitação de aspectos epifânicos da crença monoteísta, de modo que a invocação exaltada que Ingrid Bergman faz em relação à supremacia de um Deus Todo-Poderoso quando um vulcão entra em erupção ao lado dela tem muitíssimo a ver com as exclamações religiosas adoradoras de Pi em meio a uma tempestade permeada por apavorantes relâmpagos. Mas, sendo original em relação aos filmes com os quais foi comparado, “As Aventuras de Pi” se destaca pela grandiosidade heteróclita do relacionamento entre o protagonista indiano e o tigre-de-Bengala Richard Parker (maravilhosamente recriado a partir de efeitos computadorizados digitais).

Por mais limitador que seja analisar este filme em vista de seus atributos técnicos, não há como não se impressionar diante da extrema segurança directiva relacionada aos diversos animais em cena, que, reais ou não, em termos de atuação não deixam nada a dever a nenhum dos atores humanos com quem contracenam. O brilhantismo da fotografia de Claudio Miranda, a majestosidade da trilha sonora de Mychael Danna, a edição firme de Tim Squyres (que colaborou com o diretor em quase todos os seus longas-metragens) e as habilidades versáteis já mencionadas de Ang Lee (que, neste filme, faz uma breve aparição à la Alfred Hitchcock) estão à mercê das questões sumamente filosóficas que o filme elenca, tendo como motrizes dois diálogos essenciais e repetidos em momentos roteiristicamente convenientes: o primeiro deles diz respeito à teimosia do pequeno Piscine (então interpretado por Gautam Belur) em acreditar que os animais têm alma, até que a exposição, por parte de seu pai (Adil Hussain), de como um carnívoro se alimenta o leva a acreditar que a afeição que ele percebeu nos olhos do tigre Richard Parker não passava de seus próprios sentimentos refletidos; o segundo, por sua vez, é mais categórico e pontual, quando o náufrago Pi atrela o medo que sente do tigre também náufrago à força que o fez permanecer alerta e seguir em frente. 

Por extensão, poder-se-ia deduzir daí que o filme filia-se ao tipo de pensamento contido no vigésimo segundo parágrafo da sexta meditação cartesiana, quando o filósofo, em primeira pessoa, insinua que “tudo o que a natureza me ensina contém alguma verdade. Pois, por natureza considerada em geral, não entendo outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas”. Não sendo mais inoportuno, portanto, chegar à conclusão que Ang Lee é, sim, um autor de cinema, no caso em pauta talvez seja muito mais urgente ler a obra original de Yann Martel no qual o filme se baseia. Mas, enquanto não se tem acesso a ela, as perguntas suscitadas pelo filme são o que ele tem de mais precioso: deveras gratificante encontrar este tipo de reflexão metafísica num filme hollywoodiano atual, aliás!

Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O IMPOSSÍVEL ('The Impossible/ Lo Imposible') Espanha/EUA, 2012. Direção: Juan Antonio Bayona.

Apesar de não ser um ótimo filme, “O Orfanato” (2007) tinha como principais méritos a boa direção de atores, a sustentação inspirada de um clima de tensão e a estréia em longa-metragem de um diretor que prometia ser uma das bem-vindas anexações à renovação do horror hispânico que tem em Guillermo Del Toro (produtor executivo do referido filme) e Aléx de la Iglesia dois dos nomes hodiernos mais relevantes. “O Impossível”, encargo posterior do mesmo diretor, não apenas destoa como é muitíssimo decepcionante no que tange à percepção dos talentos outrora aventados do realizador Juan Antonio Bayona. 

Ao contrário do que aconteceu no filme anterior, em que os espaços físicos eram minuciosamente respeitados, até mesmo por conta da relevância titular dos mesmos, em “O Impossível” um dos elementos que mais saltam negativamente aos olhos, ouvidos e cérebro do espectador é a proliferação de elipses classistas que obliteram as razões socioeconômicas da pletora de estrangeiros entre os afligidos pelo tsunami que atingiu o litoral tailandês em 26 de dezembro de 2004: a extrema especulação turística sobre o local e o desconhecimento imaginado dos hóspedes estrangeiros em relação às particularidades ambientais do lugar são suplantadas pelo roteiro de Sergio G. Sánchez a fim de que as impressionantes agruras e sofrimentos enfrentados pela rica família branca e britânica Bennet, filmicamente concebidos a partir de um argumento biográfico da sobrevivente Maria Belon, sejam priorizados em relação ao desespero anônimo das centenas de famílias desfeitas (inclusive, tailandesas) focalizadas através de reiteradas tomadas em ‘plongée’. 

Não obstante ser uma co-produção espanhola, “O Impossível” é um filme balizado pelo sadomasoquismo técnico que justifica a supremacia quantitativa dos investimentos hollywoodianos em relação a outras cinematografias mundiais!


Ainda que a breve (e, nalguns aspectos, surpreendente) participação de uma muito envelhecida Geraldine Chaplin permita o direcionamento dalguns panegíricos desculpados ao filme, no sentido de que a associação do título do mesmo à dificuldade inicial em saber quem permanece vivo e quem morre durante uma tragédia é inteligente, “O Impossível” insiste em render-se ao que de mais cruel poderia ser engendrado a partir daquele enredo, mobilizando o público a torcer por focalizações atrozes de ferimentos ou pelas repetições oportunistas de imagens da correnteza marítima que se seguiu ao tsunami mencionado. 

Por este motivo, a direção de Juan Antonio Bayona faz péssimo uso de uma montagem exageradamente entrecortada (a cargo de Elena Ruiz e Bernat Vilaplana), abusa da horrenda trilha sonora xaroposa (e quase onipresente) de Fernando Velázquez, fica refém de efeitos visuais que não podem ser descritos como abaixo de muitíssimo eficientes e desperdiça as capacidades actanciais de ótimos intérpretes como Naomi Watts e Ewan McGregor, que pouco podem fazer em relação aos papéis sem legítimas inspirações dramáticas que ficaram a seus cargos. Ou seja, apesar de o filme ser categorizado como drama, os clichês familiares mais rasos e as imagens exuberantes de destruição são muito mais importantes para a equipe produtiva que as reações humanas acerca do que estava acontecendo ao redor dos personagens...


Por mais de um motivo, a atuação do garoto Tom Holland e, principalmente, a composição de seu personagem Lucas Bennet merecem um comentário denegrido especial, no sentido de que, desde a primeira aparição em cena, ele se demonstra como um pré-adolescente egoísta, sarcástico e tendente à misantropia, mas que, por funções inconvincentes e caras à manipulação emotiva mais vergonhosa, é elevado à condição de motivador salvacionista, de agente de reencontro não apenas dos seus entes familiares mas dos pais e filhos internados em um hospital improvisado, angustiados para saber das condições vitais de seus parentes. A forçação de barra heróica relacionada a este personagem juvenil entoja os membros da platéia do filme, especialmente quando associada aos elementos técnicos desagradáveis (trilha sonora, montagem, atuações) já mencionados.


Para que não se diga que “O Impossível” é um desastre completo – no intento mais proposital do trocadilho – deve-se mencionar que as boas imagens subaquáticas do primeiro quartel do filme são bastante funcionais na arquitetura de um clima de suspense antecessor às imagens do fenômeno natural fetichizado pela produção. O compêndio de situações triviais que deixam entrever a catástrofe vindoura (as páginas de um livro sendo levadas por uma corrente de vento, um liquidificador que subitamente pára de funcionar, pássaros voando estridentemente) foi muito bem explorado pelo diretor, que, nos minutos iniciais, parecia levar à frente as qualidades condutivas de seu filme anterior.

 Infelizmente, ele preferiu as benesses de um suposto sucesso de bilheteria à valorização de sentimentos reais, incutindo a legitimação do sadomasoquismo espectatorial como traço característico dos audientes massificados. Financeiramente falando, “O Impossível” é mais do que possibilitado: é induzido pelo ‘studio system’ global!

Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 2 de dezembro de 2012

A ESTÉTICA DA CRUELDADE EM CLÁUDIO ASSIS: POR UMA POSTURA ADULTA NO CINEMA BRASILEIRO!

Associado à “estética da crueldade” por causa do modo desafiador e mordaz com que filma Pernambuco, seu Estado-natal – a ponto de ser considerado ‘persona non grata’ por alguns representantes da classe média do mesmo, que não compreendem os seus radicais intentos artísticos – Cláudio Assis erigiu uma das carreiras mais impressionantes do cinema brasileiro nas últimas décadas. Se a palavra “crueldade”, quando associada ao estilo deste cineasta autoral, parece secundária em relação ao seu filme mais recente, considerado “utópico” por alguns, isto se deve a um desentendimento crasso da redefinição que lhe conferiu o crítico e cineasta François Truffaut quando editou alguns textos de seu mentor André Bazin (1918-1958) sobre o título “O Cinema da Crueldade”.

Para além do sexteto de cineastas ancorado sobre este epíteto (Erich Von Stroheim, Carl Theodor Dreyer, Preston Sturges, Luis Buñuel, Alfred Hitchcock e Akira Kurosawa) estar embasado num contexto deveras particular, o da redefinição da cinefilia francesa pós-II Guerra Mundial, uma declaração de seu autor acerca da exigência de um cinema mais adulto estabelece o devido contraponto com a vinculação hodierna de Cláudio Assis: “que não venham dizer que há gosto para tudo, no ponto em que estamos, muito abaixo do gosto. A verdade é outra, é que a crise do cinema é muito menos de ordem estética que de ordem intelectual. Aquilo de que a produção basicamente sofre é de burrice e uma burrice tão evidente que as querelas sobre esteticismos ficam relegadas ao segundo plano”. É uma citação longa mas percuciente, pois, ainda que proferida em 1943, num contexto artístico bastante diverso do atual, aplica-se muitíssimo bem às soluções que o genial Cláudio Assis oferece em relação à crise estrutural e conteudística do cinema brasileiro.

Tendo realizado apenas três longas-metragens, além de alguns curtas-metragens [sendo um deles, “Texas Hotel” (1999), bastante conhecido pelo modo como adiantou os embates sociais e personalísticos dos seus filmes posteriores], Cláudio Assis é tachado de bêbado alucinado por seus detratores e seus filmes não raro enfrentam problemas com uma censura inassumida como tal por causa de incômodos deslocados acerca do excesso de palavrões em seus roteiros ou do sobejo de nudez em suas filmagens. Uma verificação rasteira nos filmes deixa facilmente entrever o quanto são infundadas as alegações demeritórias contra este cineasta: a exacerbação do naturalismo em seus filmes tem por função denunciar as mazelas infligidas pelo tardo-capitalismo contra as populações ditas subdesenvolvidas, às quais restam estrebuchar ou entregar-se aos instintos animalescos básicos, sendo a segunda opção muitíssimo mais coerente em relação aos afãs dos personagens assisianos.

Da assunção de que “o ser humano é só estômago e sexo” em “Amarelo Manga” (2002) à elaboração melancólica de “Baixio das Bestas” (2006), em que as opressões de classe são literalmente convertidas em estupros, Cláudio Assis demonstrou uma evolução técnica tão elogiável quanto urgente, que desemboca na opção contra-hegemônica de sobrevivência e enfrentamento que emerge em “Febre do Rato” (2011), um filme muito mais complexo em sua demonstração de que “a anarquia não deve se tornar dogma”.

 Dentre os aspectos comuns aos três filmes, destacam-se a presença de Matheus Nachtergaele no elenco, a deslumbrante direção fotográfica de Walter Carvalho (com matizes diversos em cada uma das obras) e a constância do anticonformismo, minuciosamente fundamentado e transmutado em imagens e sons, nos roteiros de Hilton Lacerda. Em “Amarelo Manga”, o ator referido interpreta um homossexual obcecado por um açougueiro e as tonalidades fotográficas acentuam a cor mencionada no título do filme, estando o roteiro a serviço da demonstração dos conflitos oriundos da exacerbação famélica (em sentido existencial, inclusive), tornando concomitantes a adesão de uma evangélica ao sexo anal fetichista, a necrofilia, o transe de um mulherengo arrependido no clímax ruidoso de uma igreja, o vício em aerossóis vaginais, o assassinato legitimado de animais, e até mesmo a leitura oportuna de Friedrich Nietzsche pelo dono de um bode! Em “Baixio das Bestas”, Matheus Nachtergaele vive o influenciador de um rapaz mimado e perverso de classe média, que confunde o desbunde exalado num filme clássico de Cláudio Cunha [“Oh! Rebuceteio” (1984)] com a capacidade de empalar genitalmente uma prostituta crédula, estando a fotografia de Walter Carvalho marcada por tonalidades mais lúgubres, tanto quanto o são o prólogo poético do filme e o desfecho do mesmo, em que uma encenação de macaratu exalta a violência como potencial mecanismo de luta contra a miséria e a exploração do homem pelo homem. Em “Febre do Rato”, a sutileza contida da interpretação do ator e a deslumbrante captação em preto-e-branco do fotógrafo exigem um parágrafo adicional para coadunar este filme à tarefa anunciada no título desta resenha.

 Centrado na figura do poeta Zizo (interpretado apaixonadamente por Irandhir Santos), o que configura uma importante – e problemática – mudança de tom em relação às produções anteriores, muito mais explícitas em sua estrutura de filme-painel, “Febre do Rato” é absolutamente original em sua postura de dissenso em relação ao poder vigente, abdicando das cenas-choque dos filmes anteriores em prol da reiteração imagética do discurso de seu protagonista, que propõe, contra a opressão e a desunião dos ricos, “a alegria e a camaradagem; o sexo e a anarquia”. Nesse sentido, o filme erige aquilo que ele tem de mais defeituoso e, simultaneamente, encantador: o apelo à poesia.

 Se, por um lado, parecem inconvincentes o modo como os habitantes da comunidade onde vive Zizo aderem à profusão erudita e pornográfica de seus versos e a falta de explicações para a subsistência material do poeta (visto que ele aparece diversas vezes consumindo muitas garrafas de cerveja em bares, além de possuir uma máquina moderna de fotocópias, a qual ele utiliza sem qualquer preocupação evidente com o esvaziamento de tinta), por outro, os personagens que o rodeiam são agraciados por manifestações epifânicas encontradas na realidade e demonstradas através de uma moça que se movimenta nua num balanço ou na diegetização da trilha sonora original de Jorge du Peixe, conforme executada pelo laudatório pianista Vitor Araújo (que aparece despido numa das mais belas seqüência do filme, quando a mesma moça do balanço brinca com os testículos de seu trio de amantes, como se fossem ovos de Páscoa).

 A autenticidade do travestismo de Tânia Granussi, a nudez quase permanente e o carisma iridescente de Mariana Nunes, a coadjuvação à altura do também bastante desnudado Juliano Cazarré, as cenas de sexo gerontofílico co-protagonizadas por Maria Gladys e Conceição Camarotti, o resgate actancial de Ângela Leal e a indefinição conscienciosa de Nanda Costa são alguns dos aspectos magnos do elenco, que explodem em dois momentos célebres do filme: o protesto dos excluídos no desfile de sete de setembro e o desfecho que rejeita a nostalgia paralisante, não obstante a saudade que todos sentem do desaparecido Zizo – que, por uma ironia deveras sagaz, talvez tenha morrido em decorrência de leptospirose, depois que é atirado pela Polícia num rio poluído.

Analisando-se adequadamente o filme, não é de se estranhar que estejam ausentes as conseqüências homicidas do narcotráfico ou a comiseração diante da pobreza, características recorrentes na maioria dos filmes recentes que abordam o cotidiano das pessoas com menor poder aquisitivo no Brasil: o que Cláudio Assis deseja mostrar (e exaltar) em seu filme deve ser lido nas entrelinhas, nas paredes, nos muros, nos panfletos subversivos e no arcabouço cultural dos espectadores que não se deixam hipnotizar pelo maniqueísmo oportunista que pulula nas representações cinematográficas vendáveis das contradições políticas da atualidade!


 Wesley Pereira de Castro.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A SAGA CREPÚSCULO: AMANHECER - PARTE 2, O FINAL ('The Twilight Saga: Breaking Dawn - Part 2'). EUA, 2012. Direção: Bill Condon.

Num primeiro momento, a ausência de qualquer contato com o filme imediatamente anterior a este ou com os livros que deram origem à presente cinessérie dificultaria o entendimento da segunda parte do capítulo conclusivo do envolvimento langoroso entre a humana Bella Swan (Kristen Stewart) e o insípido vampiro Edward Cullen (Robert Pattison, tenebrosamente inexpressivo). Entretanto, a autoproclamada saga baseada nos livros escritos por Stephanie Meyer é perpassada por tantos clichês e convenções ultrapassadas da infantilização do gênero romântico hollywoodiano que não apenas a trama é perfeitamente acompanhável como vergonhosamente dispensável e esquecível.

 A estratégia de fazer com que o clímax belicoso desta obra seja desvendado como premonição antevista pela vampira Alice (Ashley Greene, numa das poucas atuações convincentes deste filme) funciona como uma sacada momentaneamente arguciosa do desvirtuado diretor Bill Condon e/ou da medíocre roteirista Melissa Rosenberg para entremear o elogio à diplomacia interespecista contida no enredo com o estímulo à violência pseudojustificada que é requerida pelo público-alvo do filme a partir de direcionamentos espetaculosos de sua publicidade avassaladora.

 Com exceção deste truque enredístico e do deslumbramento fotográfico diante dos poderes adquiridos por Bella após a sua vampirização, pouco mais há a ser aproveitado – de bom ou de ruim – neste engodo disfarçado de filme...

 Protagonizado por um casal absolutamente desenxabido (malgrado a intérprete Kristen Stewart tenha se revelado uma atriz muito boa noutras produções), os episódios desta saga foram agraciados pela sensualidade nata do astro juvenil Taylor Lautner, que aparece sem camisa na maioria das sequências, com o obséquio de que seu personagem lupino sente um calor desmedido. Infelizmente, a composição do personagem Jakob Black é estapafúrdia em sua subsunção extremada a uma paixonite convertida em promessa de contrafação erótica embebida de um forte espectro pedofílico, visto que a moça por quem o lobisomem se apaixona secundariamente é nada mais que a filha recém-nascida de sua musa inacessível, de quem ele será o encarregado da criação desde a infância (quando é interpretada pela neutra Mackenzie Foy). Por esse motivo, as brigas entre Bella e Jakob no início deste filme são assaz gratuitas e nulas em sua factibilidade, visto que, no momento seguinte, não apenas a vampira recém-convertida estará participando de uma disputa de braço-de-ferro para demonstrar a sua força como é absolutamente provida de sentido a interrogação recorrentemente levada a cabo pelos personagens deste filme acerca do excesso de zelo, comprometimento e abnegação por parte de mais de uma espécie fantástica (lobisomens, vampiros, mutações) em relação à preservação da vida de Renesmee, filha de um hematófago com uma ex-humana: por que tantos seres se dispõem a sacrificar as suas vidas por causa de um casal tão insosso? Definitivamente, a direção apagada deste filme não consegue responder a esta pergunta!

Ainda que Bill Condon tenha demonstrado um impressionante talento dramático em “Deuses e Monstros” (1998) e uma versatilidade genérica em “Dreamgirls – Em Busca de um Sonho” (2006), tendo inclusive roteirizado ambos os filmes, em “A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2, o Final”, ele se dissolve negativamente na abundância de suspiros afetuosos e insinuações sexuais pífias e numa seleção de canções ‘indie pop’ que intenta exaltar a suposta pureza dos sentimentos escambados pelos protagonistas. Além de Feist, Christina Perri, St. Vincent, Green Day, Ellie Goulding e Passion Pit, a atriz Nikki Reed (que interpreta a vampira Rosalie Hale na saga), num dueto com Paul McDonald, interpreta “All I’ve Ever Needed”, uma das canções graciosamente chorosas que integram a trilha sonora, cujo tema original [“Plus que Ma Propre Vie”] é composto por Carter Burwell, que se reveza pouco inspiradamente entre os temas anteriormente compostos por Alexandre Desplat e Howard Shore.

 Num saldo geral, ainda que “A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2, o Final” seja um péssimo filme, ele é inócuo até mesmo na incitação da fúria crítica que deveria ser destinada a ele, sendo aparentemente muito mais produtivo ignorá-lo a assumir qualquer posicionamento combativo diante de sua periculosidade disfarçada de propensão amorosa.

 As impressionantes bilheterias alavancadas pelo filme – e pela série literária que lhe deu vazão – são ainda mais preocupantes quando se tem notícia dos comportamentos exaltados de algumas fãs, que chegam a gritar que desejam ser “comidas” pelos personagens durante as sessões. A reiteração perpetrada pelo roteiro de que os Volturi (poderosa família vampírica italiana que, precipitadamente, se torna inimiga da família Cullen) são intransigentes em suas decisões autoritárias e inabalavelmente avessos ao diálogo tentam oportunizar as degolações comemorativas que são vislumbradas na já mencionada antevisão da previdente Alice, o que demonstra mais um aspecto da malevolência inegável desta franquia cinematográfica.

 Algo parecido pode ser dito no que tange à inconvincente sequência inicial de caça, em que Bella abdica da vontade de experimentar sangue humano ao morder o felino que tentava se alimentar do cervo que ela perseguia. Ou seja: encerrado o forçoso compromisso com a audiência, uma conclusão lícita a que o espectador consciente pode chegar é a de que, no quinteto de filmes protagonizado pelas criações literárias de Stephanie Meyer, onde parece sobejar amor, vaza peçonha... 

Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

007 - OPERAÇÃO SKYFALL ('Skyfall') Inglaterra/EUA, 2012. Direção: Sam Mendes.

Num livro em que deslinda os processos constitutivos do que define como cinema hipermoderno – ou seja, o cinema “livre das normas passadas, dos freios e obstáculos, das convenções estéticas e morais de outrora” – o filósofo Gilles Lipovetsky menciona a imagem-distância como sendo aquela que identifica o filme como algo que recua referencialmente em relação a si mesmo e, como exemplo paradigmático desta tendência, cita a recente contratação de Daniel Craig como intérprete do famoso agente secreto britânico James Bond. Segundo o autor, o primeiro dos filmes com o espião protagonizados por este novo astro [“007 – Cassino Royale” (2006, de Martin Campbell)] “se apresenta como um distanciamento quase crítico da série, pela escolha de um intérprete fisicamente diferente, de uma violência seca e de uma melancolia desencantada no tom”, caracterizando o recuo iconoclasta e/ou referencial embutido na sua definição de hipermodernidade cinematográfica.

Polêmicas conceituais à parte, o diagnóstico sobre o personagem que Gilles Lipovetsky menciona em “A Tela Global” cabe perfeitamente na análise deste “007 – Operação Skyfall” como um dos melhores da franquia, visto que, dentre todos os filmes envolvendo o agente britânico nas últimas duas décadas, ele é o que mais avança neste recuo referencial e assume-se com uma homenagem legítima aos tempos áureos da cinessérie, quando ela era realmente cultuada pelo público e seus episódios não eram apenas despejados no mercado como meros ‘blockbusters’ entupidos de explosões e efeitos especiais deslocados.

 Nesse sentido, a inusitada opção pelo diretor dramático Sam Mendes na condução desta aventura diz muito sobre os variegados méritos deste filme, que, para além de suas bifurcações temporais – tão legitimadas pelas convenções da diegese quanto as distâncias impressionantemente ultrapassáveis de um continente a outro – fecha um ciclo em relação aos vinte e dois capítulos “oficiais” anteriores (sem contar três títulos não produzidos por Albert R. Broccoli, detentor dos direitos autorais dos romances com o personagem), de modo que, se houvesse uma lógica produtiva estrita na produção destes longas-metragens hodiernos, o próximo filme a ser lançado seria uma regravação do ótimo “007 Contra o Satânico Dr. No” (1962, de Terence Young).

 Conforme antecipado por Gilles Lipovetsky, um dos principais estranhamentos trazidos à tona com a vinculação de Daniel Craig ao personagem James Bond está em sua sisudez monogâmica, bastante distinta do caráter bonachão e perenemente lascivo das célebres vivificações de Sean Connery e Roger Moore. Se, no já citado “007 – Cassino Royale”, o que laureia a produção é justamente a falibilidade do personagem – bastante humanizado, afinal de contas – o filme seguinte [“007 – Quantum of Solace” (2008, de Marc Forster)] demonstra-se como um dos mais fracos da cinessérie por causa de sua linearização factual (o contato direto com o final da trama do filme imediatamente anterior rompe a liberdade narrativa dos filmes predecessores) e de sua adesão renitente aos clímaxes amorfos, que acrescentam muito pouco à evolução psicológica do personagem, que, nos filmes contemporâneos, protagoniza “preqüências” das ações levadas a cabo pelos demais intérpretes.

“007 – Operação Skyfall” supera o demérito disfuncional e revela-se como uma das melhores aventuras do personagem justamente por restituir a sua dignidade viril (em nível freudiano, inclusive, visto que o trauma da morte de seus pais durante a infância é assumida como a causa de sua conhecida rebeldia, segundo um diagnóstico intrafílmico) e dialogar com os aspectos minuciosos que tornam as produções das décadas de 1960 a 1980 absolutamente geniais em sua capacidade de fazer com que os ancestrais fílmicos do subgênero ‘ação’ sejam urdidos pela inteligência de seus enredos e aparições vilanescas.

Os diálogos recorrentes envolvendo um conflito entre a “velha guarda” da espionagem e as novas práticas profissionais – vide o primeiro encontro entre James Bond e o jovem Q (Ben Whishaw), em que canetas explosivas são descartadas do cardápio tecnológico do espião por serem consideradas antiquadas, e os embates entre M (Judi Dench, sempre majestosa) e o burocrata Gareth Mallory (Ralph Fiennes) sobre os ônus políticos e bélicos do final da Guerra Fria [“continuamos lutando nas sombras...”]– pontuam o roteiro de Neal Purvis, Robert Wade e John Logan com esperteza calculada, encontrando eco magistral na cena em que James Bond “seqüestra” M utilizando um modelo imponente de automóvel clássico (justamente utilizado pelos 007’s de outrora) e na assunção aguardada da personagem de Naomie Harris como sendo a espirituosa (e onipresente nos filmes primevos) senhorita Eve Moneypenny. Ou seja, o cuidado que Sam Mendes dedica em suas obras pessoais à valorização (não apenas nostálgica, mas historicizada) do passado foi definitiva para a genialidade detectada neste ótimo filme.

 Não obstante a obsessão por “entradas triunfais” do vilão afetado e muitíssimo bem-interpretado por Javier Bardem justificar um blague mui coerente de 007, o contraste irregular entre a imponência de seus primeiros momentos em cena e a sua derrocada súbita aparece como um dos poucos defeitos estruturais significativos desta obra. Ainda assim, a seqüência que o ex-agente Silva explica a 007 a razão de seu ódio vingativo por M a partir de uma anedota metafórica sobre as mudanças induzidas nos comportamentos de ratos insulares, que, a partir de um confinamento forçado, passariam a se alimentar de sua própria espécie (mais ou menos como os traidores nos filmes de espionagem) é exímia em toda a sua extensão, incluindo a inaudita suspeição de indícios homossexuais no histórico de James Bond, visto que, quando Silva alisa as suas coxas, com intuito assumido de deflorá-lo eroticamente, 007 retruca: “quem te disse que esta seria a minha primeira vez?”. 

O assassinato tragicamente estilizado da prostituta Sévérine (Bérénice Marlohe) e o modo sutilmente anunciado com que Silva é esfaqueado enquanto suplica para que M utilize uma mesma bala para dar fim à sua vida e à dela própria confirmam a grandiosidade compositiva deste personagem, obliterada momentamente durante o tiroteio ocorrido na residência em que James Bond morou quando criança e que explica o título do filme, visto que “Skyfall”, palavra que ele se recusa a comentar durante um teste psicotécnico, nada mais é que o nome da chácara onde ele vivia com seus pais falecidos. Mais: o retorno de James Bond ao território que valida a crença de M de que “os órfãos são os melhores recrutas” conecta-se brilhantemente à vinheta musical de abertura do filme, em que a cantora Adele interpreta uma belíssima canção homônima, enquanto signos inicialmente cifrados de um veado, de uma sala de espelhos e de túmulos desfilam para tela, para que, afinal, desemboquem e sejam desvendados com o animal que identifica a propriedade dos Bond, com o estratagema que James ensina a seu criado para que ele atire nos capangas de Silva sem ser atingido e com a descoberta da lápide onde lê-se os nomes de ambos os pais (Andrew e Monique Delacroix Bond) do agente, falecidos na infância do mesmo em condições misteriosas, porém traumáticas e determinantes no enrijecimento de sua personalidade aventureira.

 Emoldurando definitivamente a qualidade superior deste filme, temos: a já citada assunção da senhorita Moneypenny e a sua função acessória enquanto amante perpetuamente disponível do agente; a morte da feminina M e a sua substituição mandatária pelo personagem de Ralph Fiennes; a ótima trilha sonora de Thomas Newman, companheiro habitual do diretor, que se funde organicamente com os eventos e não apenas os acompanha pleonasticamente; a maravilhosa direção de fotografia de Roger Deakins, particularmente deslumbrante no último quartel do filme; a recorrente menção ao luto no roteiro, em contextos tramaticamente oportunos (o elíptico obituário de James Bond, a fatalidade do destino de Sévérine, o presente destacado por M em seu testamento, o funeral dos agentes da MI6 mortos num atentado a bomba, a malfadada tentativa de suicídio narrada por Silva); e a encarnação definitiva de Daniel Craig como um cínico mulherengo, emulando principalmente a subestimada e dramática encarnação unitária de George Lazenby como o personagem, no excepcional “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade” (1969, de Peter R. Hunt).

Como acontecia no passado, o alinhamento de aventuras alucinantes não prejudica o estatuto artístico do filme: “007 – Operação Skyfall” é, portanto, o bem-sucedido coroamento de um ciclo, no qual Daniel Craig torna-se internamente merecedor do pronunciamento do jargão característico “Bond. James Bond”! Que ele faça bom uso de seu laurel verbal nas produções vindouras...

 Wesley Pereira de Castro.

sábado, 10 de novembro de 2012

GONZAGA - DE PAI PRA FILHO (Brasil, 2012). Diretor: Breno Silveira.

Por motivos óbvios e bastante aguardados, a comemoração do centenário de Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989), recebedor meritório da antonomásia “o rei do baião”, engendraria a necessidade de uma cinebiografia, o que se tornou mercadologicamente urgente diante da tendência cada vez mais usual das produtoras audiovisuais vinculadas à Rede Globo de Televisão de capitalizar – num viés batizado como “convergente” – até mesmo os detalhes das vidas pessoais dos artistas que ajuda a divulgar.

A contratação de Breno Silveira, consagrado por causa do equivocado e muito rentável “2 Filhos de Francisco” (2005), diminuiu as expectativas positivas acerca deste projeto, pois o fato de este diretor ter como arremedo de estilo menos uma temática recorrente que um problema mal-resolvido entre pai e filho, convertido em chamariz enredístico de todos os seus filmes, concentrou antecipadamente a trama de “Gonzaga – De Pai Pra Filho” num embate parcial entre as duas gerações familiares mencionadas no subtítulo.

A opção por iniciar o filme a partir da perspectiva de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (1945-1991), conhecido como Gonzaguinha – destacando-se evidentemente a ocasião em que o seu sucesso foi matéria de capa da revista Veja – foi muito bem-sucedida, visto que sua trajetória artística desmente paradoxalmente o mote (“filho de gato, gatinho é!”) proferido na rápida, humorística e quase desnecessária participação de João Miguel no trecho inicial do filme, quando associa o talento do jovem Luiz Gonzaga no traquejo com a sanfona à descendência do diligente Mestre Januário. Gonzaguinha, entretanto, não adquire o hábito pela sanfona (fato desdenhado no filme, apesar de um promissor ‘flashback’ sonoro no início, quando Luiz Gonzaga repreende o filho por estar tocando em seu instrumento musical), tornando-se um compositor de MPB e samba muitíssimo mais politizado (e amargurado) que o pai.

Há de se adiantar, portanto, que, apesar de sua incontestável genialidade musical, Luiz Gonzaga foi acusado de defender posicionamentos reacionários, conforme percebido em letras de canções deslumbradas como “Forró de Mané Vito”, “Nordeste Prá Frente” e “Canto Sem Protesto”, assaz entusiásticas, não obstante as duas últimas terem sido lançadas no final da década de 1960, quando o Brasil enfrentava uma ditadura política violenta, que, no filme, é televisivamente noticiada, mentirosamente, a partir de imagens extraídas do documentário “Jango” (1984, de Silvio Tendler).

 Ao se mencionar a palavra-chave televisão, vaticina-se que este é o veículo midiático projetado como ideal para a transmissão deste filme, visto que, em mais de uma situação, ele adota uma formatação telenovelesca, em especial na primeira fase da vida de Luiz Gonzaga, a sua adolescência, quando é interpretado sem muita inspiração pelo simpático Land Vieira, e tem sua composição actancial desperdiçada num roteiro que exacerba suas dores amorosas e tenta obliterar sua participação colaborativa, enquanto militar, na Revolução de 1930.

 A segunda vivificação de Luiz Gonzaga (a cargo do músico Chambinho do Acordeon), do final de sua mocidade à idade adulta, não é ruim, mas as situações dramáticas que enfrenta não são suficientemente credíveis a partir do roteiro escrito por Patrícia Andrade, exceto quando mostra o cantor e compositor entusiasmado nos palcos ao redor do País. Neste sentido, a reprodução do concerto na laje do Cine Rex, o encontro com o compositor Humberto Teixeira (cuja importância na carreira do cantor é estranhamente negligenciada) e a seleção dos músicos improvisados que se tornam ajudantes de palco são instantes inspirados, bem como a brilhante reconstituição do retorno de Luiz Gonzaga à sua cidade natal (Exu, interior em Pernambuco), numa situação que amalgama as letras de dois dos maiores hinos do cantor [“Respeita Januário” e “Samarica Parteira”], narrativos por excelência.

Se estes instantes fílmicos demonstram que há uma preocupação eminentemente cinematográfica em “Gonzaga – De Pai Pra Filho”, esta é negativamente contrabalançada pelo mau uso da trilha sonora incidental xaroposa de Berna Ceppas (que se presta a reproduzir a melodia de “A Deusa da Minha Rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj, na cena em que Luiz e a mãe de seu filho se conhecem), pela ridícula execução do “Adágio” de Tomaso Albinoni na seqüência em que o cantor descobre que seu filho está com tuberculose, mesma doença que vitimou a mãe do adolescente, e pela cena em que o pai quebra o violão do filho por flagrá-lo cantando “música de comunistas”, cuja pujança dramática é desperdiçada pelo excesso de cortes na edição impessoal (leia-se: mui profissionalizada e tecnicamente asséptica) de Vicente Kubrusly.

Apesar de o filme servir muito mais para atender às ansiedades internas do diretor que para apresentar Luiz Gonzaga às novas gerações, ele foi sobremaneira exitoso neste aspecto, aproveitando-se muito bem da comparação com documentações reais (gravações em cassete doméstico, fotografias, vídeos, etc.) de momentos célebres da vida do artista, além de elucidar aspectos complexos de sua relação com o filho Gonzaguinha, posto que, até 1981, graças à turnê “A Vida do Viajante”, pai e filho nunca tinham compartilhado um mesmo palco, não obstante ambos serem músicos conceituados e aclamados nacionalmente. As opções rememorativas para justificar a revolta de Gonzaguinha são precipitadas, mas o filme acerta ao não tomar partido nem de um nem de outro, aceitando o perdão e a admissão de erros por parte de ambos, numa seqüência reconciliatória visualmente forçada (exageradamente filmada à contraluz pelo competente Adrian Teijido) que, afinal, é verossímil e importante para o desfecho informativamente emocionante do filme, que conta com as excelentes interpretações de Adélio Lima e Júlio Andrade, responsáveis pelas vivificações dos artistas nas fases finais de suas vidas.

Aliás, deve ser destacada, para além das impecáveis atuações, a impressionante similaridade fisionômica – e, principalmente, vocal – entre os dois atores e os personagens biografados, tanto que, nalguns momentos, era difícil distinguir quando o filme estava a utilizar gravações reais ou ficcionais. Neste sentido, a escolha destes dois membros do elenco é digna de aplausos, o mesmo sendo dito para o adolescente Alison Santos (que interpreta Gonzaguinha quando criança), para Silvia Buarque (competente como a sua mãe adotiva Dina), para Cássio Scapin (magnífico como Ary Barroso) e para Luciano Quirino (firme e sincero como o amigo Xavier).

 Num saldo geral, “Gonzaga – De Pai Pra Filho” é bastante regular enquanto produto audiovisual sujeito a uma avaliação crítica e irregular no que tange ao seu desenvolvimento rítmico. Dentre os seus méritos adicionais, estão a agradável canção-tema de Gilberto Gil (“Mundo do Lua”, um tanto deslocada em relação ao restante do filme), uma convincente adoção da narrativa oral entrecortada por lembranças visualizadas (o que reforça que esta não é uma biografia em sentido estrito, mas a análise coesa de um motivo relacional), e a inebriante execução de obras-primas musicais tanto de Luiz Gonzaga (“Qui Nem Jiló”. “Asa Branca”, a já citada “A Vida do Viajante”, em dueto com o filho) quanto de Gonzaguinha (a magistralmente aproveitada “É Preciso” e a inebriante “O Que É, o Que É?”, ao final, que intima a platéia a cantar junto).

As más atuações de Nanda Costa (Odaléia) e Magdale Alves (Helena) como as esposas do cantor e as inversões emotivas do enredo (as já mencionadas seqüências passadas em Exu, por exemplo) surgem como defeitos estruturais do filme, que tem como maior nódoa a própria vinculação ao projeto anistórico da Globo Filmes, que, conforme destacado na cena em que Helena e Luiz Gonzaga assistem à exposição do golpe militar de 1964 pela televisão, corroboram a afirmação do teórico da Economia Política da Comunicação Cesar Bolaño, quando este atesta que a Rede Globo de Televisão (e, por extensão, suas derivadas institucionais) “tende a dissolver inclusive tradições da nossa cultura cinematográfica, visto que a concorrência obriga a empresa vencedora a recontar a história do campo a seu favor”. Este é o problema maior do filme: ser rendido e subserviente, adjetivos que se adéquam muito bem aos propósitos falsamente conciliatórios do diretor Breno Silveira!

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

MAGIC MIKE ('Magic Mike') EUA, 2012. Direção: Steven Soderbergh.

Steven Soderbergh é um diretor prolífico que transita competentemente por diversos gêneros cinematográficos: quando pronunciada, esta frase verídica denota pelo menos dois grandes encômios em relação à proveitosa trajetória deste cineasta em Hollywood, onde dispõe de cacife suficiente para erigir uma produtora de filmes independentes e realizar diversas atividades técnicas simultâneas (além de dirigir, ele costuma fotografar e montar seus filmes, entre outras funções). Porém, tanto um quanto o outro atributo esbarram num problema taxonômico essencial: é difícil reconhecer a temática recorrente dos filmes soderberghianos, identificar aquilo que pode ser associado especificamente ao seu estilo directivo.

Sendo responsável por filmes tão radicalmente distintos quanto o introspectivo “Kafka” (1991) e o extrovertido “Onze Homens e um Segredo” (2001), este diretor é digno de exaltações laudatórias pelo modo como consegue transitar entre terrenos enredísticos tão divergentes, mas que, afinal, são permeados por um rasgo tornado deveras ostensivo em “Magic Mike”: a predominância do superego enquanto instância subversora de uma determinada situação (moral).

 Por mais evidente que esta predominância pudesse ser verificada no que tange à assunção tardia – porém efetiva e corrosiva – da verdade em “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989), à compreensão das mentiras sobrevivenciais em “O Inventor de Ilusões” (1993) ou às persecuções conscienciosas que se manifestam diante de condutas reincidentes em “Obsessão” (1995) e “Solaris” (2002), para ficar em apenas alguns exemplos, em “Magic Mike” ela ficou muitíssimo evidente.

Talvez o filme com que esta produção mais se coadune estilisticamente seja “Confissões de uma Garota de Programa” (2009), mas a impossibilidade provisória de ter acesso a ele leva-nos a compará-lo com “Full Frontal” (2002), cuja temática mais ampla e pretensiosa não elimina as similaridades formais com o percalço tramático do filme mais recente.

Roteirizado pelo novato Reid Carolin, “Magic Mike”, sinopticamente, é demasiado previsível: um jovem que sonha em ter o seu próprio negócio como restaurador de móveis trabalha às noites como ‘stripper’. Quando conhece um rapaz desorientado que insiste em ser seu melhor amigo, ensina a ele os estratagemas da profissão, mas a adesão do rapaz aos vícios da vida noturna faz com que ele se sinta traído, buscando consolo na irmã conservadora do mesmo, por quem, afinal, se apaixona. Desde a primeira cena do filme, é possível adivinhar como a estória vai acabar, mas, se algo surpreende neste enredo, isso diz respeito à progressiva diminuição da relevância no personagem-título (Channing Tatum) na condução da trama, visto que ele praticamente se torna um elemento psicológico intermediário entre os afãs pós-adolescentes do estouvado Adam (Alex Pettyfer) e as determinações conservadoras de sua irmã Brooke (Cody Horn), culminando para a predominância da última enquanto personagem com quem o roteiro mais se identifica moralmente, depois que a instável Joanna (Olivia Munn) demonstra-se comprometida com um rapaz cujo estilo de vida é muito diverso daquele que Mike se vincula profissionalmente, mas insiste em não se atrelar na vida pessoal.

 Tal predominância é realçada pelo modo como a direção não se prende a apenas uma perspectiva personalística, seguindo à risca um conselho providencial do proprietário da casa de eventos em que Adam e Mike trabalham: “olhe para todas as mulheres [e, por extensão, pessoas], mas não foque em nenhuma!”. Se, num filme menos integrado a uma sutil recorrência temática, isto seria um grave problema, no filme soderberghiano, este é um aspecto elogiável, ainda que desenvolvido de maneira imponderada.

 Prejudicado principalmente pelas más atuações de seu belo elenco (no sentido fisiculturista do termo) – em que a composição sagaz de Matthew McConaughey é uma honrosa exceção – “Magic Mike” transfere para o espectador um conflito que não é bem resolvido no filme: se os cacoetes da direção versátil de Steven Soderbergh (realçados pela montagem eficiente de Mary Ann Bernard, um dos nomes que ele utiliza para se “esconder” nos créditos) e a ótima direção de fotografia do próprio cineasta (sob o pseudônimo Peter Andrews) impressionam, a composição dos personagens e os clichês redentores do roteiro incomodam negativamente. Porém, quando os ‘strippers’ estão no palco, o filme atinge clímaxes impressionantes, tanto no que diz respeito ao distanciamento crítico com que emoldura a sensualidade dos dançarinos quanto no perfeito entrosamento entre os espetáculos intradiegéticos e a demonstração de uma inteligência bem-vinda no cinema contemporâneo. Em linhas gerais, o filme é tecnicamente primoroso, justificando os elogios que Steven Soderbergh angaria pela agilidade e coerência com que conduz os seus projetos, já tendo alcançado, inclusive, a proeza de ser indicado por dois filmes bastante diversos numa mesma cerimônia do prêmio Oscar [no caso, o extraordinário “Traffic” (2000) e o eficiente “Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento” (2000)].

 Apesar de ser um filme “menor” em seu numeroso ‘corpus’ – o que está longe de ser um demérito para um cineasta que realizou obras de grande fôlego político como “Che 2 – A Guerrilha” (2008) e “Contágio” (2011) – “Magic Mike” é assaz elucidativo acerca das intenções sub-reptícias que atravessam a impressionante habilidade de Steven Soderbergh em agradar concomitantemente público e crítica com filmes que misturam gêneros estadunidenses canônicos [o romance e o policial em “Irresistível Paixão” (1998); o drama histórico e o suspense em “O Segredo de Berlim” (2006)] e, ao mesmo tempo, erigir marcas registradas que parecem diluídas em sua sutileza, mas que manifestam-se certeiramente no rigor que ele imprime em cada obra. Neste sentido, a aplicação analítica da correlação paradigmática entre “Estados Unidos da América, dinheiro e idiotas” (mencionada pelos ‘strippers’ num momento de descontração), aliada à deslumbrante seqüência em que os mesmos parodiam o militarismo estadunidense num ‘show’ de 04 de julho (feriado da independência norte-americana) e a recorrência de motivos proto-empresariais/empreendedores nos diálogos, assume-se como temática sustentacular da predominância do superego que é enaltecida na condenação das drogas e do enriquecimento fácil e imoral que perpassa praticamente todos os seus filmes.

Steven Soderbergh é um cineasta que merece bastante atenção e esforço classificatório, visto que, nem bem as imagens de “Magic Mike” se sedimentam nas mentes dos espectadores e o seu diretor já está novamente comprometido com a pós-produção de dois filmes simultâneos [o televisivo “Behind the Candelabra” (2013), sobre a vida do célebre pianista Liberace, e “Side Effects” (2013), categorizado como ‘thriller’ dramático]. Definitivamente, a vastidão curricular deste cineasta impressiona, ainda que seja precipitado defini-lo como gênio!

 Wesley Pereira de Castro.

domingo, 4 de novembro de 2012

FRANKENWEENIE ('Frankenweenie') EUA, 2012. Direção: Tim Burton.

Numa das cenas mais propositalmente suspeitas, porém incisivas, deste filme, o pai do protagonista infantil exibe diante dele dois garfos – um espetando um camarão; outro, um pedaço de carne bovina – e discorre sobre a possibilidade de coadunar duas opções aparentemente incongruentes numa mesma atividade. Segundo este personagem, frente a um dilema acerca do que escolher, o mais adequado seria amalgamar ambas as proposições, discurso que vem servindo para justificar a carreira de Tim Burton desde que ele começou a trabalhar como animador nos Estúdios Disney, onde concebeu filmes fantasiosos que são, ao mesmo tempo, lúgubres e autorais, conforme o seu realizador deseja, e simpáticos e bem-sucedidos comercialmente, conforme os seus produtores exigem.

Sendo “Frankenweenie” a regravação de um curta-metragem homônimo que o diretor realizou em 1984, ainda no início de sua carreira, é muito coerente e oportuno que tal discurso paterno seja tão ostensivamente compartilhado com o espectador (os garfos são focalizados sob o ponto de vista do personagem aconselhador, inclusive): mais uma vez, Tim Burton empreende um filme que lhe permite fazer as pazes consigo mesmo! 

 Tendo se dedicado, nos últimos anos, à refeitura de obras anteriormente realizadas por outrem – com resultados que, salvo “Sombras da Noite” (2012), estão aquém do esperado, tanto num cotejo com os alvitres do próprio diretor quanto com os filmes originais – Tim Burton aproveita cada fotograma de “Frankenweenie” para citar a si mesmo e justificar a qualidade técnica, emocional e conteudística de seu conjunto de obra: para além de referências pontuais e geniais a clássicos como “A Noiva de Frankenstein” (1935, de James Whale), “O Vampiro da Noite” (1958, de Terence Fisher, exibido na TV) e “Gremlins” (1984, de Joe Dante), o principal alvo citacional desta obra são mesmo as produções anteriores de Tim Burton, meritórias e suficientemente singulares para justificarem esta homenagem sem recair na autocomplacência ou na bazófia.

 Por mais que alguns espectadores não percebam que o nome da personagem dublada por Winona Ryder neste filme faz menção à atriz (Elsa Lanchester) que interpreta a personagem-título do filme whaleniano destacado (cuja famosa mecha branca no cabelo vertical é incutida na cadelinha Persephone), que a tartaruga de um dos colegas de Victor traz à tona o nome da escritora londrina que escreveu a obra literária capital em que Tim Burton se inspirou [“Frankenstein” (1818), de Mary Shelley] ou que a amalgamação entre um gato e um morcego menciona humoristicamente o frenesi animalesco filme danteano, ainda assim, este filme é prenhe de diversão tragicômica, justificando mais uma vez a acertada incursão à mesa do pai de Victor Frankenstein (dublado muito convenientemente por Martin Short).

Entretanto, a fruição adequada deste filme suplica pelo reconhecimento das características insignes do estilo burtoniano. Não apenas por estender muito bem (exceto por alguns aspectos de sua meia-hora final) a trama do curta-metragem homônimo “Frankenweenie” (1984), em que um garotinho revive o amado cachorrinho que fora atropelado, este filme chama positivamente a atenção dos fãs do diretor desde a sua seqüência metalingüística inicial, quando, ao apresentar para a família um filme que realizara em sua própria casa, o protagonista infantil Victor Frankenstein (dublado por Charlie Tahan) demonstra-se como uma reencarnação personalística do artista biografado em “Ed Wood” (1994), exibindo situações que já foram satiricamente representadas em “Marte Ataca!” (1996).

O plano geral que exibe as fachadas da vizinhança da família Frankenstein parece uma nítida versão em preto-e-branco do cenário de “Edward Mãos de Tesoura” (1990), o mesmo sendo dito acerca do sótão da casa do protagonista, em que ele se diverte solitariamente tanto quanto o garotinho atormentado que intitula o genial curta-metragem “Vincent” (1982). Tal qual o personagem principal de “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (1985), Victor locomove-se numa bicicleta e, quando está a realizar o seu grande experimento de reanimação, serve-se do auxílio de uma pipa em formato de morcego, catapultando-nos mnemonicamente direto para “Batman” (1988), filme que deu projeção comercial ao cineasta.

Na cena em que o jovem aprendiz de cientista desenterra o corpo de seu animalzinho, a ambientação do cemitério remete a “Os Fantasmas se Divertem” (1988), sem contar que a portentosa entrada em cena do professor Rzykruski (dublado por Martin Landau, intérprete do ator Bela Lugosi numa das obras-primas do diretor) reinstala um elogio à criatividade dos seres lutuosos que encontra eco em todas as obras anteriormente mencionadas, incluindo a sanha na persecução de objetivos que motivava o atribulado protagonista de “Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (2007), cuja trilha sonora é assemelhada aos crescendos adotados pelo músico Danny Elfman neste filme mais recente, ainda que a partitura à qual o seu mais recente trabalho esteja sendo comparado seja uma das poucas ocasiões em que ele não colaborou com o diretor.

 Demonstrada a exitosa reiteração dos caracteres burtonianos, até mesmo através dos elementos mais discretos da direção de arte e do estilo de animação – obviamente assemelhado ao encantatório “A Noiva-Cadáver” (2005, co-dirigido por Mike Johnson), lamenta-se que, mais uma vez, o roteiro de John August – colaborador habitual do diretor em seus filmes recentes – não sustente a atmosfera de autenticidade prometida no início e descambe para um clímax explosivo, clicheroso, desengonçado e pouco interessante (a monstruosa ressurreição mutante dos cadáveres dos animaizinhos dos colegas de Victor), que, apesar de confirmar a veracidade das palavras do professor Rzykruski sobre a necessidade de se realizar experimentos científicos com paixão, não esconde a convencionalidade de seus intentos no que diz respeito à obsedação do público infanto-juvenil do filme, acostumado a seqüências semelhantes nas outras produções dos estúdios Disney. Entretanto, a cena derradeira da produção é belíssima, mostrando os cachorros Sparky e Persephone trocando choques elétricos nasais de forma amorosa, enquanto a canção “Strange Love”, interpretada por Karen O, começa a ressoar na apresentação dos créditos finais, onde o diretor inclui um bem-vindo agradecimento a Barret Oliver, Shelley Duvall e Daniel Stern, atores do curta-metragem que deu origem a este filme, afinal, muito enternecedor em toda a comoção zoofílica que transmite.

A montagem de cenas com a expressão inane do entristecido Victor, depois que Sparky é atropelado, e as engraçadas situações em que pedaços do corpo do cachorro ressuscitado caem, mas que seu dono logo se antecipa em dizer que irá consertar, validam magnanimemente os versos da canção-tema do filme, que apregoa que “quando há beleza no interior, não há nada em seu exterior que a modifique”. É o que acontece em relação ao filme como um todo, que possui muitos equívocos, conflitos produtivos e desvios roteirísticos, mas, no que tange a emoção e coerência autoral, cumpre muitíssimo bem o seu papel: faz chorar, de tão belo que é!

 Wesley Pereira de Castro.

domingo, 30 de setembro de 2012

INTOCÁVEIS ('Intouchables') França, 2011. Direção: Olivier Nakache & Eric Toledano.

“Boudu Salvo das Águas” (1932, de Jean Renoir) é, sem dúvidas, um paradigma internacional acerca das possibilidades cômicas e analíticas sobre as divergências de classes sociais num contexto contemporâneo. Regravado em 1986 por Paul Mazursky (sob o título “Um Vagabundo na Alta Roda”), a trama deste filme – na verdade, baseada numa peça escrita em 1919 por René Fauchois – sofreu uma drástica atualização, transmutando a criticidade quase anarquista da obra original num humorismo formulaico, que tende muito mais a reiterar as diferenças de classe do que a questioná-las, sob a desculpa falaciosa da tolerância advinda da convivência esporádica entre elas. Esta tendência é bastante recorrente no cinema hollywoodiano, engendrando obras tão diversas quanto “Trocando as Bolas” (1983, de John Landis), “Um Salto Para a Felicidade” (1987, de Garry Marshall) e “Três Trapalhões da Pesada” (1987, de Michael Schultz).

Apesar de ter sido realizado no mesmo país em que René Fauchois nasceu, “Intocáveis” é um filme que, lamentavelmente, está filiado de maneira oportunista ao pior dos projetos tramáticos até então citados, visto que são diversos os pontos de contato formal entre o seu enredo e a sinopse do horrível filme protagonizado por The Fat Boys. O fato de “Intocáveis” ter sido baseado numa história real, entretanto, nos leva a repensar a negatividade desta filiação...

Centrado na amizade desenvolvida entre um tetraplégico branco e milionário (maravilhosamente interpretado por François Cluzet) e um senegalês desbocado e pobre (vivido por Omar Sy, que dota o seu personagem de um humor que não raro beira a vulgaridade), o roteiro escrito pelos próprios diretores é muitíssimo mais efetivo em sua metade final que no desfile de lugares-comuns apresentado no início, tão previsível quanto as produções hollywoodianas assimiladas nos acostumaram a esperar que fosse. Se o contraste entre os hábitos refinados e burguesamente afetados do milionário Philippe e o cotidiano caótico do até então desempregado Driss não chama a atenção pela originalidade, há de se notar que as piadas envolvendo o que se convencionou chamar de “politicamente incorreto” são realmente inspiradas, como o instante em que Driss testa a insensibilidade dos nervos da perna paralisada de seu patrão derramando água fervente sobre ela, o chiste envolvendo o Teleton (maratona televisiva destinada a angariar fundos monetários para pessoas que são afligidas por deficiências físicas e/ou psicológicas) ou quando ele propõe que, a fim de que o tetraplégico eduque melhor a sua filha adolescente, ele a atropele com a sua cadeira de rodas.

Além disso, o conteúdo de tais piadas é essencial para que entendamos o que Philippe quis dizer quando alega que acha positivo que Driss não sinta compaixão dele enquanto assume as funções de seu empregado pessoal. Entretanto, as diversas situações chavonadas envolvendo a profusão libidinosa de Driss, que trata de forma machista quase todas as mulheres que atravessam o seu caminho, ou as blagues relativas à fetichização da arte erudita pecam pela superficialidade de sua elaboração, ainda que pareçam ocasionar gargalhadas da platéia, conforme detectado na cena em que Driss acha absurdamente ridículo assistir de forma respeitosa a um cantor de ópera fantasiado de árvore enquanto canta em alemão.

 A exposição recorrente dos problemas de gueto que circundam o cotidiano pobre da família de Driss, por sua vez, resvalam numa pusilânime adesão ideológica a um “estado de coisas” capitalista mantido pela suposta incapacidade dos moradores de áreas periféricas de reagirem a problemas como o tráfico voluntário de drogas, a procriação desmesurada e a inevitabilidade subempregatícia. O modo como a família e equipe de Philippe aceitam de bom grado algumas atitudes coercitivas de Driss – como interceptar com violência um motorista que estacionou numa área proibida ou intimidar agressivamente um ex-namorado da filha de seu contratador para que ele se desculpe por tê-la xingado de puta – convalida estruturalmente as más condições de vida que Driss insistia em levar, inclusive acostumando-se a depender da previdência estatal para receber dinheiro sem trabalhar. Tudo isso, aliado à subsunção ostensiva do filme aos mais evidentes clichês do gênero, faz com que “Intocáveis” seja muito perigoso socialmente, para além das boas intenções filantrópicas percebidas em seus créditos finais, que anunciam que 5% de toda a renda do filme serão destinados a instituições que cuidam de pacientes tetraplégicos.

Descontados todos os ônus políticos do filme – que, definitivamente, não são poucos – há que se concordar que “Intocáveis” possui um bom ritmo tramático (o que, mais uma vez, é explicado por sua extrema similaridade a diversos produtos congêneres hollywoodianos), conta com ótimas interpretações do elenco secundário [Anne Le Ny (Yvonne) e Audrey Fleurot (Magalie), principalmente], é marcado por uma bela trilha sonora incidental de Ludovico Einaudi (contrabalançada pelo excesso de canções estadunidenses reverenciadas por Driss) e beneficia-se adequadamente de uma perspectiva compartilhada entre os dois protagonistas, que vai além da mera comparação entre cotidianos no quartel final, quando o tema da amizade sobrepõe-se ao das diferenças cômicas de classe.

A partir de então, as brincadeiras com o bigode de Philippe, a percepção funcional da educação artística de Driss e o enfrentamento conjunto de seus problemas de relacionamento e de sociabilidade tornam verossímil e muito emocionante a aparição dos homens reais que inspiraram a trama do filme, Philippe Pozzo di Borgo e Yamin Abdel Sellou, cujos destinos verídicos de companheirismo duradouro são anunciados antes dos créditos finais. Graças a esta imagem documental muito bem assimilada à trama reconstitutiva, “Intocáveis” atenua o desconforto preconceituoso que não é convenientemente disfarçado pela tendência sumamente espirituosa do enredo. É um filme para ser visto e analisado com muito zelo sociológico, pois tende a ser tão perigoso e traiçoeiro quanto a tradição desgastada de humor à qual se coaduna...

Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

TED ('Ted') EUA, 2012. Direção: Seth MacFarlane.

Numa passagem emocionante do livro “Ilusões Perdidas”, publicado por Honoré de Balzac em 1843, o protagonista Lucien de Rubempré ouve de alguém preocupado com o seu bem-estar que “a amizade perdoa os erros, os gestos irrefletidos da paixão; mas deve ser implacável com a decisão firme de mercadejar a alma, o intelecto e o pensamento”. Apesar de pertencer a uma tradição dramático-histórica radicalmente distinta do estilo cômico a que este filme está associado, tal citação é pertinente para se entender o quão oportuna é a exortação do relacionamento entre o protagonista John Bennett (Mark Wahlberg) e seu ursinho de pelúcia maconheiro Ted (dublado pelo próprio diretor e roteirista Seth MacFarlane), magicamente tornados “companheiros de trovoadas” desde a infância.

Porém, se no plano moral, o filme parece bem-sucedido em seus objetivos, em seus meandros efetivamente cinematográficos, ele soçobra a passos largos, desdenhando a segunda metade do conselho amistoso utilizado como epígrafe deste texto. Apesar de algumas piadas serem, de fato, violentamente engraçadas em sua forçação de barra irônica, o roteiro do filme é deveras irregular e a direção do filme é opaca, prejudicando sobremaneira o desempenho extensivo das referidas piadas.

Conhecido e bastante elogiado pela concepção do ótimo seriado televisivo animado “Uma Família da Pesada” (em exibição desde 1999), Seth MacFarlane é indubitavelmente meritório enquanto argumentista e dublador, mas, nesta sua primeira experiência em longa-metragem, não dispôs de autoridade suficiente para conduzir os atores, que, apesar de carismáticos, não apresentam bons desempenhos. A composição caricata do personagem vilanesco de Giovanni Ribisi (o afetado Donny), a vacuidade persecutória do insosso personagem de Joel McHale (Rex, o patrão da namorada do protagonista humano) e a graça desperdiçada da personagem de Jessica Barth (a vulgar atendente de supermercado Tami-Lynn) são demonstrações efetivas da insegurança directiva de Seth MacFarlane, também manifesta em relação aos personagens principais, visto que Mila Kunis parece perdida em cena em diversos momentos (vide o exagero nojoso da cena em que ela precisa coletar as fezes de uma prostituta no chão de seu apartamento) e Mark Wahlberg dá a impressão de estar inadequado em seu papel, não obstante a sua caracterização ser bastante correlata à descrição teórica que sua namorada insiste em fazer dele. A única interpretação bem-sucedida em todo o filme, portanto, sem considerar os artistas que aparecem como si mesmos, é justamente a do desbocado ursinho protagonista...

 Muitíssimo bem vivificado pela própria voz de Seth MacFarlane, o ursinho Ted é tão personalisticamente coerente que, para além das convenções do gênero cômico, sua existência bizarra é facilmente assimilada, em termos de verossimilhança cotidiana. O uso deveras oportuno da gravação sonora de “eu te amo” contida em sua programação original enquanto brinquedo numa cena de despedida é boníssima, bem com o senso de humor emocionalmente integrado à amizade sincera que ele apregoa em relação ao seu proprietário desde a infância. Nesse sentido, o apotegma inicial da narração (“não importa o quão especial tu sejas, depois de algum tempo ninguém vai te dar a mínima!”) também ajuda a naturalizar os comportamentos desordeiros de Ted, que, em quase todas as seqüências em que aparece, está ingerindo maconha ou proferindo ironias contra o cristianismo. Toda a seqüência da festa em que Ted fica sob efeito de cocaína e a hilária seqüência da luta com John, em que ele faz questão de utilizar uma Bíblia Sagrada como arma, demonstram que, se o filme confiasse mais na agilidade nonsense de seu protagonista peludo (como ocorre em relação ao bebê psicótico e ao cachorro falante no seriado animado concebido por Seth MacFarlane), ele seria muitíssimo mais divertido e satírico. O quartel final xaroposo e pretensamente aventureiro da produção, entretanto, atraiçoa o que tínhamos visto até então, tornando-o quase tão anódino (no mau sentido do termo) quanto “Garfield – O Filme” (2004, de Peter Hewitt), personagem inclusive mencionado numa comparação mastológica inolvidável!

Analisando o filme em cotejo com as expectativas que ele desencadeou, o mesmo demonstra-se francamente decepcionante e, quiçá, limado em seu poderio sardônico por exigências produtivas, não obstante a quantidade de vezes em que o nome de Seth MacFarlane é repetido entre as referências técnicas. O excesso de piadas com flatulências e a subsunção a um discurso de readequação capitalista que é legitimado pela instância narrativa (Patrick Stewart, muito bom) quando anuncia os destinos dos personagens na seqüência anterior aos créditos finais demonstram pusilanimidade do filme em relação aos trabalhos prévios do roteirista, mas as seqüências protagonizadas pelo canastrão Sam J. Jones [astro de “Flash Gordon” (1980, de Mike Hodges), filme favorito dos personagens] e pela cantora Norah Jones (que também canta o tema principal do filme, “Everybody Needs a Best Friend”), além das menções e da hilária aparição do ator Tom Skerritt, recuperam provisoriamente a verve satírica e hollywoodianamente influente da produção.

“Ted” é um filme inegavelmente engraçado, mas tem como prerrogativa assimiladamente negativa o fato de achar-se muito mais interferente do que realmente é, quando, como bem demonstra o aguardado reatamento do romance entre John Bennett e sua namorada Lori, ele se aproveita de uma forma supostamente inaceita de humor negro para reiterar a ordem social vigente. O virulento ursinho Ted incomoda, perturba, desconcerta, mas, afinal, é somente por causa dele que tudo continua como antes: não é suficientemente evidente o que isto quer nos dizer enquanto discurso? 

Wesley Pereira de Castro.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

NA ESTRADA ('On the Road') EUA/Inglaterra/ Brasil/França, 2012. Direção: Walter Salles.

Apesar de não ser (ou parecer) tão essencial na análise deste filme uma comparação tramática com a obra de Jack Kerouac que lhe deu origem, pode-se dizer que o roteiro de Jose Rivera não traiu o romance acerca da reprodução de seus principais fatos e percursos geográficos. No que tange à composição dos personagens, entretanto, as diferenças são cavalares.

 Se o romance original, publicado em 1957, apresenta algumas limitações compositivas que não necessariamente resistiram ao tempo – sendo muito mais compreendidas por quem conhece a fundo as peculiaridades do moralismo estadunidense do final da década de 1940, quando se passam os eventos – no filme, algumas transmutações personalísticas prejudicam deveras a adesão empática ao périplo do protagonista. Na obra kerouaquiana, Sal Paradise, alter-ego do escritor, conhece Dean Moriarty após um divórcio, ao passo que, no filme, o encontro se dá após o velório do pai do primeiro, o que não apenas reforça o eco narrativo com a busca sintomática do segundo pelo pai desaparecido como transforma o narrador num filhinho-de-mamãe antipático e psicologicamente amorfo.

A atuação desenxabida de Sam Riley hipertrofia a má composição do personagem, muitíssimo menos interessante que a sua inspiração literária. E, só por este detalhe, pode-se antecipar que não tinha como este filme dar certo...

Em contraponto à atuação apática de Sam Riley, Garrett Hedlund tenta dotar Dean Moriarty do cafajestismo sedutor que explica o porquê de todos a seu redor ficarem tão apaixonados por ele, mas, para além da extrema beleza física do ator e de sua imponente voz grave, os méritos actanciais não são bem-sucedidos: compreendemos que ele seja irresponsável, mas não apreendemos o fascínio que o narrador insiste em atrelar a ele.

Surpreendentemente, as duas melhores presenças humanas em “Na Estrada” correspondem a personagens secundários, no caso, Marylou, a (ex-)esposa adolescente de Dean e Carlo Marx, um poeta homossexual inspirado em Allen Ginsberg. A primeira, muitíssimo bem-vivida pela criticamente subestimada Kristen Stewart, é sabotada pelo conservadorismo exibicionista do roteiro – que insiste numa pudicícia visual não condizente com seu liberalismo oral advindo do livro – mas, ainda assim, protagoniza pelo menos uma excitante cena, em que masturba simultaneamente os dois amigos protagonistas, enquanto um deles dirige um automóvel em alta velocidade.

O segundo, interpretado por Tom Sturridge, tem a seu favor um dos melhores diálogos do filme, quando, ao lamentar a indiferença de Dean Moriarty em relação a ele – não tanto pela sexualidade, mas por não retornar os seus telefonemas carentes –explica a Sal que o que sente “não pode ser definido como ‘coração partido’, pois isto seria muito banal, nem como ‘melancolia’, pois isto seria bastante langoroso, mas talvez possa ser adequadamente descrito como ‘pesar’”. Neste momento, entendemos o impacto ‘moriartiano’ sobre aqueles personagens.

Ainda em relação ao elenco, Viggo Mortensen tem alguns bons momentos como um personagem que lembra bastante William S. Burroughs, enquanto Amy Adams e Kirsten Dunst estão apenas corretas em suas composições de mulheres relegadas à espera conjugal, e Alice Braga dota a aguerrida imigrante (ao menos, no romance original) Terry de uma vacuidade atroz, naquela que periga ser a mais grave displicência adaptativa em relação ao texto original. A montagem de François Gédigier e a direção fotográfica de Eric Gautier apelam para uma agilidade elíptica e cálida, a fim de transmitir ao espectador o empreendedorismo emocional das quatro viagens do protagonista, mas não conseguem dirimir o enfado que se instaura ao longo dos 137 minutos de duração deste filme, musicado de forma pouco inspirada pelo competente e costumeiramente ousado Gustavo Santaolalla.

Conforme insinuado anteriormente, se o livro já apresenta algumas evidentes manifestações arrítmicas, no filme, estas foram subsumidas a uma equanimidade entre o tédio que os personagens alegam sentir em mais de uma seqüência e o aborrecimento que toma de assalto o espectador, exposto ao obtuso anacronismo moral da encenação.

À guisa de conclusão, cabe trazer à tona um questionamento acerca da estranha (ou oportunista) decisão do roteirista em estender o assédio que Dean sofre de um homossexual mais velho (vivido por Steve Buscemi) em sua terceira viagem pelos EUA, convertendo o que era apenas uma bravata de meia-página no romance em uma cena de sexo prostituído que deixa Sal Paradise, a ponto de este brigar com seu amigo pródigo por causa disso. Se, na biografia do escritor Jack Kerouac, é bastante emulado o suposto envolvimento homoerótico com o companheiro Neal Cassady (que inspirou o personagem Dean Moriarty) e esta mesma emulação é fundamental para se entender o imediatismo com que Sal decide se atirar na estrada ao lado do amigo ou com o interesse de reencontrá-lo, por que esta a mencionada cena de desentendimento entre amigos, que beira a homofobia, foi efetivada? Seja qual for a resposta para esta indagação, perdura no filme um alquebramento lamentável: o de que ele é uma traição hodierna ao espírito ‘beatnik’!

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

VOU RIFAR MEU CORAÇÃO (Brasil, 2011). Direção: Ana Rieper.

O primeiro entrevistado do filme descreve resumidamente uma desventura com sua esposa e, a fim de metonimizar o que sente ao narrar o fato, traz à tona uma canção interpretada pelo cantor Amado Batista, cuja letra diz o seguinte: “era uma tarde tão triste quando ela partiu/ Na curva daquela estrada, ela, então, sumiu/ Era como folha seca, que vai onde o vento quer/ Me enganei quando dizia tenho uma mulher”.

Tal seqüência, precipitadamente conduzida, dá a tônica do filme: a diretora intentará estabelecer um panorama observacional acerca dos mecanismos de identificação tramática que arregimentam a vendabilidade da chamada “música brega” no Brasil, principalmente na região Nordeste, já que a maior parte do filme foi filmada em cidades sergipanas, alagoanas e pernambucanas.

Ao contrário dos documentários tradicionais, a equipe técnica deste filme não tem preocupação em identificar os depoentes ou as cidades que serviram como cenário (salvo durante os créditos finais), o que cria um desconforto inicial em espectadores dependentes de trâmites informativos para a fruição relacionada ao gênero. Além disso, o escopo escolhido pela diretora, roteirista e produtora Ana Rieper para a análise do fenômeno “brega” transita quase aleatoriamente entre canções que louvam o amor irrefreável e as litanias iracundas pós-traição, o que deixa entrever uma desorganização constitutiva elementar. Seria muito conveniente se esta aparente desorganização fosse um efeito proposital do filme, a fim de justificar o fato de que “toda pessoa apaixonada é ridícula”, conforme assevera o inspiradíssimo Odair José, mas, do jeito como foi apresentada, parece decorrência imprevista do excesso de confiança auto-elogiosa da produção.

Lançado e distribuído na esteira de um culto alternativo a canções que, na época em que foram lançadas, costumavam ser execradas pela crítica, “Vou Rifar Meu Coração” deixa-se deslumbrar pelos depoimentos colhidos e oferece pouco de efetivamente cinematográfico (no sentido formalmente concatenador do termo), sendo, porém, inequivocamente interessante por causa da riqueza popular contida nas histórias de vida coletadas. O plano móvel em que a câmera adentra uma residência humilde para, de repente, focalizar o concerto de Amado Batista que está sendo reproduzido na televisão de última geração ligada numa estante escancara a autoconfiança promocional do filme, francamente desenxabido nas imagens paisagísticas que intercalam os depoimentos. Estes, entretanto, são amplamente permeados por fascínio e identificação: da confissão de uma mulher que alega que, se fosse consumidora renitente de bebidas alcoólicas, só sairia dos bares aos trancos, em decorrência de sua adesão irrefreável aos desígnios da luxúria, à simpatia conformada dos casais que se conheceram em bordéis, passando pelas emocionadas (mas subaproveitadas) declarações do romântico e ex-viciado em cocaína Nelson Ned, a maioria das pessoas entrevistadas neste filme adquirem facilmente a compaixão da platéia, visto que suas reações – eventualmente permeadas por ingênuas contradições – aos truísmos amorosos confirmam mais uma vez um inteligente comentário de Odair José, que alega que “tanto um pedreiro quanto um médico sentem a mesma dor de amor: a diferença é que um vai chorar no cabaré e o outro na varanda de seu apartamento à beira-mar”.

 As duas laudatórias citações a Odair José deixam patente o quão rica foi a sua participação no filme, acrescentando importantíssimos detalhes discursivos, como, por exemplo, quando ele menciona a rejeição inicial por parte das gravadoras à sua intenção de gravar uma música sobre um homem que se apaixona por uma prostituta (“Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”) e as dificuldades taxonômicas na definição de “Música Popular Brasileira”, que encontram uma reverberação mais agressiva nas colocações de Agnaldo Timóteo, que, se incomodam inicialmente por causa da prepotência comparativa, logo conquistam a nossa adesão por causa de sua corajosa confissão de carência homossexual, tão digna de figurar entre as canções bregas quanto qualquer outra forma de amor. Nesse sentido, é muito bonita a seqüência em que dois homens são mostrados se beijando enquanto dançam sozinhos numa casa de espetáculos periférica, ao passo em que a entrevista que a diretora conduz com a travesti Marquise é ridiculamente contaminada por pleonasmos interrogativos. Mesclando, portanto, situações deveras oportunas (toda a seqüência envolvendo o prefeito de Monte Alegre que descreve, sem rodeios, os reveses associados à convivência paramarital com duas mulheres, em duas casas distintas, bem como a exibição de fotos dos casais interseccionados, ao som da antológica “Sonhos”, de Peninha) com momentos absolutamente oportunistas (a entrevista com Elvis Pires e as lamentavelmente parcas declarações do seminal Lindomar Castilho), “Vou Rifar Meu Coração” chama a atenção mais por seu conteúdo dissociável da forma fílmica que por sua elaboração artística propriamente dita.

Afinal de contas, neste quesito, ele é tão subsumido aos estratagemas comerciais quanto alguns dos estabelecimentos focalizados como lugares de convivência (e consumo) dos personagens reais. Noutro contexto apreciativo, isto não seria um problema, mas uma espécie de exortação metalingüística ao entrosamento do filme com seu objeto de estudo. A conjunção simplória de intervenções cotidianas (uma mulher caminhando pelas ruas de uma cidade interiorana e sendo acompanhada de perto por uma câmera, focalizações de pores-do-sol, a participação pouco expressiva do recém-falecido cantor Wando) só denota a pusilanimidade do filme, quando comparado, por exemplo, com a grandiosidade estética de “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, de Karim Aïnouz & Marcelo Gomes), para ficar apenas num exemplo imediato. Ana Rieper talvez até seja bem-intencionada e/ou apaixonada pelo gênero brega, mas, neste filme, o que se destaca sobremaneira é a ambição de capitalizar méritos antropológicos com esta investidura proto-analítica. Infelizmente, ela parece se conformar com a superficialidade erroneamente atrelada ao seu tema.

Wesley Pereira de Castro.