Imediatamente finda a sessão deste filme, é difícil tecer algum comentário racional sobre o que foi projetado na tela. O impacto emocional do filme é tão intenso, são tantas as referências fílmicas, musicais, políticas e históricas, o roteiro é tão pungente e violento (em mais de um sentido do termo) e a ausência de uma moral unilateral da história é tão premente que, antes de tecer qualquer julgamento avaliativo precipitado acerca do filme, é mister respirar, caminhar, e, se necessário, gritar. O grau elevado de criatividade que o diretor e roteirista basco Álex de la Iglesia adota nos 107 minutos de projeção desta película absolutamente deslumbrante é tão intenso que o impacto desencadeado por ele não é apenas intelectual, mas também carnal. O filme atinge-nos na pele, no sangue, nos ossos, através de qualquer prisma analisado. A extremada astúcia na condução directiva e a esperteza oportuna do entrecho em mesclar eventos e explosões reais com torrentes ficcionais de cólera demonstram o quanto o diretor-roteirista é politizado e consciente das contradições nacionais espanholas, erigindo um largo painel alegórico que, desde a cena inicial, tem muito a ver com o estilo de Carlos Saura, em especial, no ótimo “Ai, Carmela!” (1990). Entretanto, ao contrário do que alguns críticos mais afoitos alegam, Álex de la Iglesia não faz apenas entupir o seu filme com idéias e chistes alheios: muito pelo contrário, ele ostenta um senso criativo de originalidade que impressiona sobremaneira, principalmente no que diz respeito à extraordinária interação entre equipe técnica e elenco.
Não obstante o trio principal de intérpretes (Carlos Areces, Antonio de la Torre e Carolina Bang) estar excelente, o grande mérito desta obra é, sem dúvida, a sua acachapante direção de arte, a cargo de Eduardo Hidalgo Hijo, que reconstitui as diversas épocas em que se passa o filme com precisão minuciosa, ao mesmo tempo em que edifica o universo grotesco e mui particular em que as psicoses exacerbadas dos deformados palhaços Sérgio e Javier soam extremamente coerentes e, até mesmo, verossímeis. E, dentre os três atores principais, as inúmeras mudanças de penteado e maquiagem de Carolina Bang reconfirmam a magnificência desta direção de arte, minuciosamente coligada com a impecável direção de fotografia de Kiko de la Rica, que nos inebria desde a exuberante seqüência que antecede os brilhantes créditos iniciais, em que fica patente o intuito do diretor de homenagear alguns ídolos do cinema de horror (o recém-falecido Paul Nacshy em destaque, conforme novamente mencionado durante os créditos de encerramento). Tudo neste filme, por mais imperfeito que seja, explode de paixão, no sentido mais conseqüencial e concomitantemente inconseqüente do termo, o que justifica, explica e faz entender o melancólico, inesperado e belíssimo desfecho do filme.
Se, por um lado, elenco principal, elenco secundário e elenco animal estão perfeitos, por outro lado, o filme como um todo não atinge esta mesma aura de perfeição, sendo propositalmente irregular, repleto de defeitos e de máculas estruturais disrítmicas, como se, com isso, quisesse forçar o espectador a experimentar o ‘verfremdungseffekt’ (estranhamento) postulado em grau maior pelo teatrólogo Bertolt Brecht. E, apesar de o filme possuir muitas similaridades com alguns dos pastiches vingativos realizados pelo norte-americano Quentin Tarantino, ele se diferencia bastante destes por seu viés extremamente politizado e pela inconsistência anárquica na configuração dos alvos da fúria de Javier, que, inicialmente, está voltada para os soldados franquistas que aprisionaram seu pai, em seguida está direcionada contra o alcoólatra Sérgio e, no auge de seu frenesi colérico, volta-se para crianças, transeuntes e, conforme percebemos na cena em que ele deforma seu próprio rosto com soda cáustica e com um ferro de passar roupas, até contra si mesmo!
Em suma, é tarefa inglória escrever sobre este filme sem se deixar levar pelas exclamações diante de suas reviravoltas enredísticas, de seus arroubos de inventividade genérica (que abarca desde cânones do horror até pérolas do cinema ‘trash’ relacionado a este mesmo escopo fílmico) e de seus lampejos encantatórios (vide a primeira cena em que a trapezista Natália aparece à contraluz ou quando ela dubla uma canção ‘kistch’ num cabaré). Se, em termos avaliativos mais cuidadosos, este filme não supera o humor negro e a genialidade do mais famoso longa-metragem do diretor [“O Dia da Besta” (1995)], com certeza ele se coaduna a uma mesma linha-mestra sardônica e conscientizada, sendo extremamente coerente e coeso em relação à panóplia de estilos contida no modo peculiar de Álex de la Iglesia fazer cinema.
E, acima de tudo isso, o filme é uma homenagem vivaz à arte circense, em vias de extinção num mundo dominado pelos rompantes tecnológicos desumanizadores e pela pirotecnia gratuita, mas aqui reverenciada em seu âmago hipnótico, metonimizado no bonito instante em que Javier ainda criança (interpretado, nesta fase, por Sasha Di Bendetto) é focalizado num palco vazio, ao lado de um leão involuntariamente abandonado por seus domadores, requisitados como combatentes bélicos, ou todas as vezes em que a efígie infeliz do cantor Raphael [atuando em “Sín Un Adiós” (1970, de Vicente Escrivá)] aparece numa tela dentro da tela, chorando enquanto pronuncia melodicamente a letra e as onomatopéias da cantiga que intitula o filme. Impossível não se emocionar de forma cortante e panegírica diante disso!
Wesley Pereira de Castro.
sábado, 22 de outubro de 2011
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