Julgar os recentes filmes – rodados na Europa e não mais em sua Nova York natalícia – de Woody Allen é uma atividade que exige que sejam levados em consideração bem mais aspectos paradigmáticos do que sintagmáticos na análise das atuais narrativas enquanto moldadas aos cacoetes formais e conteudísticos do diretor, que, conforme consentem tanto admiradores quanto detratores, abordam sempre temas recorrentes, como os fins de relacionamentos, a crise existencial diante da proximidade da morte e, tal qual é repetido peremptoriamente neste filme em particular, a certeza moral de que “ilusões são mais efetivas do que remédios”. Se se pode reclamar que o elenco está dissonante (enquanto Gemma Jones está soberba como a doce velhinha divorciada Helena, Antonio Banderas, Anthony Hopkins e Josh Brolin estão atrofiados em seus personagens masculinos irritantes) em “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos”, no plano técnico, o envelhecido Woody Allen ainda demonstra muita sapiência na escolha das músicas-temas adequadas a cada situação e compõe pelo menos um punhado de diálogos inteligentíssimos e multi-referenciais (o momento em que o personagem de Anthony Hopkins explica a uma garota de programa que os avantesmas em peças teatrais de Henrik Ibsen são mais simbólicos do que assustadores é simplesmente genial!), mas não consegue deixar de transparecer a impressão de que a supressão de financiamentos norte-americanos distancia seus roteiros de focos críticos que lhe tornaram célebres, como os incisivos ataques religiosos de caráter institucional ou os chistes apologéticos à masturbação. Ainda assim, o filme é suficientemente divertido e comedidamente dramático para se impor na programação de cinema hodierna, garantindo que o ainda muito prolífico autor seja merecedor do título de genial até mesmo em produções menos demonstrativas de sua veia autoral.
Reutilizar chavões tramáticos de seus próprios filmes anteriores não configura necessariamente um problema nos filmes de Woody Allen, mas esta subsunção auto-formulaica demonstra sinais de cansaço quando se pretende surpreendente em seu efeito de “reviravolta do destino”, conforme se manifesta na situação do escritor em crise criativa Roy (Josh Brolin), que surrupia material literário alheio, lança como se fosse de sua autoria, e depois descobre que o autor original está a se recuperar do estado de coma em que se encontrara desde que sofrera um acidente, situação esta que parece uma vulgarização do tipo de conflito que atormenta os personagens do ótimo “Crimes e Pecados” (1989). A crescente adesão da personagem Helena (a já citada e iluminada Gemma Jones) ao misticismo para-religioso parece uma diluição temática da magia que se mostra também mais efetiva do que os tratamentos psicológicos convencionais no injustiçado “Simplesmente Alice” (1990). Tais como estes problemas, a modorra actancial dos personagens masculinos (Anthony Hopkins, por exemplo, está francamente desinteressante) e a incapacidade do elenco em reproduzir os chavões neurastênicos que se tornaram famosos enquanto reproduções das próprias atuações do diretor em seus filmes (vide a placidez mal-trabalhada da personagem de Freida Pinto) retiram muito do impacto pretendido por “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos”, que funciona melhor enquanto passatempo cinematográfico rasteiro do que enquanto exercício de vitalidade fílmica, por mais que ainda seja evidente o talento de seu realizador, muito feliz na impecável adoção de “When You Wish Upon a Star” como sintomática canção de abertura e de encerramento.
No patamar técnico propriamente dito, Woody Allen obteve as boas colaborações de praxe, destacando-se a sóbria direção de fotografia do veterano Vilmos Zsigmond e a edição dinâmica de Alisa Lepselter (com a qual trabalhou em 12 filmes desde 1999), mas é mesmo o uso gracioso da trilha sonora o que mais chama a atenção (os temas recorrentes de Tali Roth emocionam sempre que executados), bem como as interpretações inspiradas dos coadjuvantes Pauline Collins (como a divertida vidente Cristal), Ewen Bremmer (como o escritor iniciante que se torna comatoso Henry Strangler) e, principalmente, Roger Ashton-Griffiths (divertidíssimo e encantador como o livreiro ocultista Jonathan, que ainda ama a sua falecida esposa, “uma das rivais mais duras [para Helena], com o perdão do trocadilho” - risos). Lucy Punch tem alguns bons momentos como Charmaine, mas, no geral, sua personagem sofre do mesmo desleixo composicional que a de Naomi Watts (Sally). Ainda assim, porém, as interpretações femininas estão muito superiores aos desempenhos desenxabidos dos atores masculinos, com exceção dos dois coadjuvantes destacados.
Finalmente, qualquer julgamento adequado sobre qualquer filme de Woody Allen, recente ou não, mais inspirado ou não, deve destacar o brilhantismo de seus diálogos filosoficamente corriqueiros. Se, logo na abertura, ele parafraseia um aforismo shakespeareano para dizer que “a vida é cheia de som e fúria, mas logo se revela como um nada sem sentido”, durante o decorrer do enredo, vários ditos espirituosos merecem citação, como a conclusão do patrão de Sally, Greg (Antonio Banderas, que dota seu personagem com um sotaque deveras artificial), que constata que eles eram colegas/amigos, mas tornaram-se concorrentes: “a vida é assim, irônica... e bela”. Noutro momento, Helena comenta que a vidente Cristal disse que ela iria conhecer o estranho alto e moreno do título (uma metáfora recorrente para a inevitável chegada da morte noutros filmes allenianos), mas que, afinal, ela contentou-se apenas com o “estranho”, personificado na figura do livreiro com quem se beija na graciosa última cena do filme. Mas, se não somente de bons diálogos se faz um bom filme, a beleza circunspecta das cenas em que o personagem de Josh Brolin observa a sua vizinha eritro-indumentária se despir ou tocar violão na janela demonstra que Woody Allen ainda sabe como encantar seus espectadores com seqüências contagiosas de encantamento passional. Mesmo envelhecido, um gênio é, antes de qualquer outro adjetivo, um gênio!
Wesley Pereira de Castro.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
domingo, 5 de dezembro de 2010
A REDE SOCIAL ('The Social Network') EUA, 2010. Direção: David Fincher.
Numa definição geral, a noção de algoritmo equivale a um “conjunto de instruções ‘passo a passo’ para execução de determinada tarefa ou solução de um problema qualquer”. No caso do filme ora resenhado, a compreensão de tal noção aplicada à Informática é essencial para se compreender os intentos do cineasta David Fincher através da opção de biografar Mark Zuckerberg, idealizador ainda vivo do Facebook, sítio virtual de relacionamentos deveras popular na Internet. Uma síntese rasteira dos temas comuns aos filmes até então dirigidos por David Fincher permite indicar uma amargura contextual em relação aos efeitos do ambiente urbano sobre os comportamentos típicos de cidadãos tão (in)comuns quanto diferenciados, seja a astronauta que sobrevive a uma raça predadora de extraterrestres [a tenente Ripley no interessante “Alien3” (1992)], seja o ‘workaholic’ dominado pela psicose consumista [o personagem sem nome que protagoniza o extraordinário “Clube da Luta” (1999)], seja o personagem que nasce velho e vai rejuvenescendo aos poucos [o protagonista do excelentemente acadêmico “O Curioso Caso de Benjamin Button” (2008)], para ficar em apenas três exemplos conhecidos de sua pitoresca e laudável filmografia.
Neste seu mais recente filme, a amargura personalística é anunciada logo na cena de abertura, um diálogo surpreendentemente veloz entre o personagem principal e sua então namorada Erica Albright (Rooney Mara), que não somente é efetivo ao anunciar o tom de emoções recônditas propositadamente secundarizadas pelo capitalismo tardio abordado no enredo como faz com que se perceba de antemão o quanto “A Rede Social” é um filme cifrado e hermético em sua pletora de siglas, termos técnicos, metáforas cibernéticas e situações julgamentais que soam enfadonhas para quem não está habituado a filmes de tribunal ou que reconstituam os cotidianos especulativos de ‘yuppies’ tachados como rudes por seus convivas. Neste sentido, a impecável interpretação de Jesse Eisenberg merece elogios desde o primeiro segundo e execução, tamanho o sucesso que ele obtém ao preservar a ambigüidade moral do protagonista, ainda que o roteiro tenda a formatá-lo como um personagem negativo, até que a magnífica cena final restitua a simpatia renegada, novamente conflitada pela canção executada durante os créditos de encerramento (“Baby, You’re a Rich Man”, de The Beatles), cujo sarcasmo interrogativo proíbe novamente o personagem de ser tomado como um modelo positivo para os espectadores.
Em outras palavras, Mark Zuckerberg (ao menos, aquele visto no filme) está pouco se importando em ser uma boa pessoa e, mesmo assim, conseguiu galgar o título de mais jovem bilionário do mundo, algo que, conforme notam alguns poucos interlocutores sensatos, não é suficiente. O perfil sorridente de Mark Zuckerberg no próprio endereço virtual que criou, por outro lado, vai de encontro ao seu retrato severo no filme. Surge aí o primeiro ponto francamente genial do filme, não obstante sua indefinição qualitativa tornada assaz ostensiva pelo já destacado ciframento do mesmo. E tal genialidade faz coro com a estupenda mensagem publicitária que propagandeia o filme: “não se consegue 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos”.
À parte este brilhante estratagema de indefinição identificativa com que o espectador se depara diante do filme, em que o estranhamento e a impressão constante de deslocamento etário se confundem em relação à portentosa efemeridade dos componentes de seu roteiro [escrito por Aaron Sorkin com a mesma pecha tribunalística que marcou algumas de suas obras anteriores, como “Questão de Honra” (1992, de Rob Reiner) ou “Jogos do Poder” (2007, de Mike Nichols)], o elemento mais estritamente cinematográfico que o diretor David Fincher aplica para tornar marcante seu filme enquanto obra significativa do século XXI é precisamente um uso magistral dos ‘close-ups’ faciais, que garante o reconhecimento minucioso da inventividade comparativa com o nome do grande projeto zuckerberguiano, o Facebook (literalmente, “livro de rostos”).
Em três cenas cruciais do filme [o primeiro diálogo entre Mark e Erica; uma conversa entre o primeiro e Sean Parker (o cantor Justin Timberlake, escolha inusitada para interpretar o idealizador do Napster) numa boate barulhenta; e o momento em que o brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield, ator que mais destoa negativamente em relação ao restante do ótimo elenco) descobre que se tornou um empregado minoritário na firma que ajudara a construir e da qual fora presidente], o uso reiterado de campos/contracampos aproximados obriga o espectador a inquirir as motivações sub-reptícias da equipe do filme a utilizar tal recurso técnico de forma bastante acentuada, algo que se torna ainda mais prenhe de sentido depois do único ‘fade-out’ demorado da produção, quando vemos os gêmeos Cameron e Tyler Winklevoss (Armie Hammer) perderem uma competição importante de remo, ao som de uma versão introduzida de forma quase paródica de uma peça musical de Georg Friedrich Handel, e logo em seguida descobrir que o Facebook já está vigorando na Inglaterra.
Por mais que, na maioria das situações, o filme pareça estar subsumido ao seu tema, aos desígnios régios do capital especulativo e às reconstituições processuais das denúncias efetuadas contra o protagonista, o diretor introduz sorrateiramente seus toques de gênio, fazendo com que assistir a este filme corresponda a uma verdadeira diligência epistemológica, na qual se precisa estar atento a pequenos detalhes compositivos, como as sutis variações de expressão colérica do protagonista, a já citada magnificência emocional da última cena, o brilhante uso de canções incidentais (um breve excerto de “Califórnia Über Alles”, do Dead Kenneds, é executado num momento célebre de cinema) e a estranha montagem paralela entre as atividades computadorizadas de Mark Zuckerberg e um grupo de alunos que digita em computadores pessoais enquanto se divertem numa festa orgiástica. A mesma cena, aliás, torna mui evidente a destoação entre aplicação climática e qualidade musical da trilha sonora e sua aplicação (dis)funcional do filme.
Composta por Atticus Ross e Trent Reznor (vocalista e multi-instrumentista da “banda de um homem só” Nine Inch Nails), a trilha sonora deste filme mescla sonoridades eletrônicas com ‘rock’ pesado e, como tal, dispõe de uma agradabilíssima recepção espectatorial. Porém, enquanto componente fílmico, não soa de todo adequada: em mais de uma seqüência, a trilha sonora cria um desconforto diferencial justamente por não se adequar ritmicamente à cena, visto que parece que, com esta sonoridade essencialmente juvenil, o diretor David Fincher tenta emular a euforia sinestésica daquele que talvez seja a sua obra-prima, o filme “Clube da Luta” (1999). Se o filme anterior era beneficiado pelas deturpações psicóticas do protagonista, esta produção mais recente apóia-se numa sobriedade tipicamente empresarial, em que até mesmo uma reclamação urgente por furto de idéias deve ser anunciada com bastante antecedência para ser ouvida. Ou seja, não é o contexto apropriado para os paroxismos dos decibéis rítmicos proporcionados pelos músicos que colaboram na trilha sonora.
Além deste problema de inadequação, outros elementos podem ser somados à trilha sonora: a má caracterização do personagem de Andrew Garfield, o sobejo de personagens secundários [Divya Narendra (Max Minghella), por exemplo, é francamente sub-aproveitado] e o hermetismo contextual do filme dificultam a acessibilidade de platéias mais vastas às denúncias e apelos que este filme transmite enquanto “sintoma de uma geração”, diagnosticando o que pode ser considerado (ao menos, por enquanto) o “novíssimo mal-do-século”, conforme se pode notar na insuperável magnificência da cena final, em que o triunfante Mark Zuckerberg (mesmo quando não obtém o resultado desejado nas pelejas judiciais de que participa) hesita em adicionar ou não sua ex-namorada ao rol de amigos virtuais no endereço virtual que ele mesmo criou.
Analisando-se o desfecho do filme sob um viés teorético, cabe trazer à tona alguns pareceres do sociólogo francês Dominique Wolton, que, num texto famoso em que destaca as limitações aplicativas das novas tecnologias digitais de informação e comunicação, enumera os conceitos de “compressão do tempo”, “distâncias intransponíveis”, “impossível transparência”, e, principalmente, “solidão interativa” como problemas perenemente atrelados aos proveitos vantajosos destas tecnologias no que tange aos incrementos de autonomia, domínio e velocidade nos processos comunicativos e de troca de informações entre indivíduos. No filme, há uma cena mui pertinente em que, ao reconhecer o idealizador do Facebook numa palestra, uma garota pede para que ele a adicione naquela rede social virtual para, logo em seguida, poderem sair juntos e beberem, foderem ou qualquer outra atividade socialmente praticável por duas pessoas que interajam ‘in loco’. Esta situação, tão chistosamente apresentada quando a denúncia por maus tratos contra a imposição de canibalismo a uma galinha que é imposta ao deslumbrado Eduardo Saverin, confirmam as teses woltonianas no que tange ao esmagamento da vida pessoal pelo tempo diferenciado da Internet, aos obscurecimentos relacionais induzidos a partir das artimanhas que visam a retroalimentar a distinção classista que fundamenta qualquer sistema capitalista, às defasagens elementares entre emissores e receptores de mensagens eletrônicas, e, principalmente, como já foi dito, ao abismo cada vez mais comum entre popularidade virtual sobressalente e fracasso interativo real, que acomete o próprio personagem principal, tachado não somente de “babaca”, mas de alguém que luta muito para sê-lo.
Nesse sentido, a ainda não suficientemente elogiada beleza da seqüência final do filme, paralela aos créditos que anunciam os destinos atuais dos personagens, é uma liberdade poética do diretor e do roteirista que confirma magistralmente a suspeita de que a genialidade deste filme é sob-reptícia e não detectável na superfície. Um filme que urge pela confrontação com a realidade analítica do século XXI de uma forma tão pungente que nem mesmo a obsolescência oportunamente programada deste tipo de temática (e/ou de reflexão a ela atrelada) consegue obnubilar!
Wesley Pereira de Castro.
Neste seu mais recente filme, a amargura personalística é anunciada logo na cena de abertura, um diálogo surpreendentemente veloz entre o personagem principal e sua então namorada Erica Albright (Rooney Mara), que não somente é efetivo ao anunciar o tom de emoções recônditas propositadamente secundarizadas pelo capitalismo tardio abordado no enredo como faz com que se perceba de antemão o quanto “A Rede Social” é um filme cifrado e hermético em sua pletora de siglas, termos técnicos, metáforas cibernéticas e situações julgamentais que soam enfadonhas para quem não está habituado a filmes de tribunal ou que reconstituam os cotidianos especulativos de ‘yuppies’ tachados como rudes por seus convivas. Neste sentido, a impecável interpretação de Jesse Eisenberg merece elogios desde o primeiro segundo e execução, tamanho o sucesso que ele obtém ao preservar a ambigüidade moral do protagonista, ainda que o roteiro tenda a formatá-lo como um personagem negativo, até que a magnífica cena final restitua a simpatia renegada, novamente conflitada pela canção executada durante os créditos de encerramento (“Baby, You’re a Rich Man”, de The Beatles), cujo sarcasmo interrogativo proíbe novamente o personagem de ser tomado como um modelo positivo para os espectadores.
Em outras palavras, Mark Zuckerberg (ao menos, aquele visto no filme) está pouco se importando em ser uma boa pessoa e, mesmo assim, conseguiu galgar o título de mais jovem bilionário do mundo, algo que, conforme notam alguns poucos interlocutores sensatos, não é suficiente. O perfil sorridente de Mark Zuckerberg no próprio endereço virtual que criou, por outro lado, vai de encontro ao seu retrato severo no filme. Surge aí o primeiro ponto francamente genial do filme, não obstante sua indefinição qualitativa tornada assaz ostensiva pelo já destacado ciframento do mesmo. E tal genialidade faz coro com a estupenda mensagem publicitária que propagandeia o filme: “não se consegue 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos”.
À parte este brilhante estratagema de indefinição identificativa com que o espectador se depara diante do filme, em que o estranhamento e a impressão constante de deslocamento etário se confundem em relação à portentosa efemeridade dos componentes de seu roteiro [escrito por Aaron Sorkin com a mesma pecha tribunalística que marcou algumas de suas obras anteriores, como “Questão de Honra” (1992, de Rob Reiner) ou “Jogos do Poder” (2007, de Mike Nichols)], o elemento mais estritamente cinematográfico que o diretor David Fincher aplica para tornar marcante seu filme enquanto obra significativa do século XXI é precisamente um uso magistral dos ‘close-ups’ faciais, que garante o reconhecimento minucioso da inventividade comparativa com o nome do grande projeto zuckerberguiano, o Facebook (literalmente, “livro de rostos”).
Em três cenas cruciais do filme [o primeiro diálogo entre Mark e Erica; uma conversa entre o primeiro e Sean Parker (o cantor Justin Timberlake, escolha inusitada para interpretar o idealizador do Napster) numa boate barulhenta; e o momento em que o brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield, ator que mais destoa negativamente em relação ao restante do ótimo elenco) descobre que se tornou um empregado minoritário na firma que ajudara a construir e da qual fora presidente], o uso reiterado de campos/contracampos aproximados obriga o espectador a inquirir as motivações sub-reptícias da equipe do filme a utilizar tal recurso técnico de forma bastante acentuada, algo que se torna ainda mais prenhe de sentido depois do único ‘fade-out’ demorado da produção, quando vemos os gêmeos Cameron e Tyler Winklevoss (Armie Hammer) perderem uma competição importante de remo, ao som de uma versão introduzida de forma quase paródica de uma peça musical de Georg Friedrich Handel, e logo em seguida descobrir que o Facebook já está vigorando na Inglaterra.
Por mais que, na maioria das situações, o filme pareça estar subsumido ao seu tema, aos desígnios régios do capital especulativo e às reconstituições processuais das denúncias efetuadas contra o protagonista, o diretor introduz sorrateiramente seus toques de gênio, fazendo com que assistir a este filme corresponda a uma verdadeira diligência epistemológica, na qual se precisa estar atento a pequenos detalhes compositivos, como as sutis variações de expressão colérica do protagonista, a já citada magnificência emocional da última cena, o brilhante uso de canções incidentais (um breve excerto de “Califórnia Über Alles”, do Dead Kenneds, é executado num momento célebre de cinema) e a estranha montagem paralela entre as atividades computadorizadas de Mark Zuckerberg e um grupo de alunos que digita em computadores pessoais enquanto se divertem numa festa orgiástica. A mesma cena, aliás, torna mui evidente a destoação entre aplicação climática e qualidade musical da trilha sonora e sua aplicação (dis)funcional do filme.
Composta por Atticus Ross e Trent Reznor (vocalista e multi-instrumentista da “banda de um homem só” Nine Inch Nails), a trilha sonora deste filme mescla sonoridades eletrônicas com ‘rock’ pesado e, como tal, dispõe de uma agradabilíssima recepção espectatorial. Porém, enquanto componente fílmico, não soa de todo adequada: em mais de uma seqüência, a trilha sonora cria um desconforto diferencial justamente por não se adequar ritmicamente à cena, visto que parece que, com esta sonoridade essencialmente juvenil, o diretor David Fincher tenta emular a euforia sinestésica daquele que talvez seja a sua obra-prima, o filme “Clube da Luta” (1999). Se o filme anterior era beneficiado pelas deturpações psicóticas do protagonista, esta produção mais recente apóia-se numa sobriedade tipicamente empresarial, em que até mesmo uma reclamação urgente por furto de idéias deve ser anunciada com bastante antecedência para ser ouvida. Ou seja, não é o contexto apropriado para os paroxismos dos decibéis rítmicos proporcionados pelos músicos que colaboram na trilha sonora.
Além deste problema de inadequação, outros elementos podem ser somados à trilha sonora: a má caracterização do personagem de Andrew Garfield, o sobejo de personagens secundários [Divya Narendra (Max Minghella), por exemplo, é francamente sub-aproveitado] e o hermetismo contextual do filme dificultam a acessibilidade de platéias mais vastas às denúncias e apelos que este filme transmite enquanto “sintoma de uma geração”, diagnosticando o que pode ser considerado (ao menos, por enquanto) o “novíssimo mal-do-século”, conforme se pode notar na insuperável magnificência da cena final, em que o triunfante Mark Zuckerberg (mesmo quando não obtém o resultado desejado nas pelejas judiciais de que participa) hesita em adicionar ou não sua ex-namorada ao rol de amigos virtuais no endereço virtual que ele mesmo criou.
Analisando-se o desfecho do filme sob um viés teorético, cabe trazer à tona alguns pareceres do sociólogo francês Dominique Wolton, que, num texto famoso em que destaca as limitações aplicativas das novas tecnologias digitais de informação e comunicação, enumera os conceitos de “compressão do tempo”, “distâncias intransponíveis”, “impossível transparência”, e, principalmente, “solidão interativa” como problemas perenemente atrelados aos proveitos vantajosos destas tecnologias no que tange aos incrementos de autonomia, domínio e velocidade nos processos comunicativos e de troca de informações entre indivíduos. No filme, há uma cena mui pertinente em que, ao reconhecer o idealizador do Facebook numa palestra, uma garota pede para que ele a adicione naquela rede social virtual para, logo em seguida, poderem sair juntos e beberem, foderem ou qualquer outra atividade socialmente praticável por duas pessoas que interajam ‘in loco’. Esta situação, tão chistosamente apresentada quando a denúncia por maus tratos contra a imposição de canibalismo a uma galinha que é imposta ao deslumbrado Eduardo Saverin, confirmam as teses woltonianas no que tange ao esmagamento da vida pessoal pelo tempo diferenciado da Internet, aos obscurecimentos relacionais induzidos a partir das artimanhas que visam a retroalimentar a distinção classista que fundamenta qualquer sistema capitalista, às defasagens elementares entre emissores e receptores de mensagens eletrônicas, e, principalmente, como já foi dito, ao abismo cada vez mais comum entre popularidade virtual sobressalente e fracasso interativo real, que acomete o próprio personagem principal, tachado não somente de “babaca”, mas de alguém que luta muito para sê-lo.
Nesse sentido, a ainda não suficientemente elogiada beleza da seqüência final do filme, paralela aos créditos que anunciam os destinos atuais dos personagens, é uma liberdade poética do diretor e do roteirista que confirma magistralmente a suspeita de que a genialidade deste filme é sob-reptícia e não detectável na superfície. Um filme que urge pela confrontação com a realidade analítica do século XXI de uma forma tão pungente que nem mesmo a obsolescência oportunamente programada deste tipo de temática (e/ou de reflexão a ela atrelada) consegue obnubilar!
Wesley Pereira de Castro.
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quinta-feira, 25 de novembro de 2010
HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE: PARTE 1 ('Harry Potter and the Deathly Hallows: Part 1) EUA/Inglaterra, 2010. Direção: David Yates
Ao contrário do que um pré-conceito literariamente elitista faria supor no plano defensivo, “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, da autora britânica J. K. Rowling, não é um livro ruim e, muito menos, adequado sobremaneira ao público infantil. Para além dos atropelos climáticos da trama e de uma concepção incomodamente autotélica da magia, o livro é bem-sucedido na composição psicológica de seus personagens que, por estarem muito mais maduros e atormentados por perigos reais do que nos livros anteriores, são críveis, interessantes, verossímeis e, cada qual a seu modo, apaixonantes.
Neste sentido, era de se supor que o filme derivado a partir dele seria tão interessante quanto. Graças à segurança elogiável do diretor com currículo amplamente televisivo David Yates, consegue-se imprimir à cinessérie uma conotação político-administrativa muito bem-vinda e até mesmo surpreendente, substituindo a rivalidade caprichosa entre grêmios estudantis dos primeiros filmes por oposições de cunho ético-partidário entre os agrupamentos de personagens, de maneira que as intrigas e profecias que agora circundam a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts são convertidas em chamarizes válidos para platéias adultas e mais esclarecidas em relação a um arcabouço cultural de caráter erudito. Entretanto, tanto livro quanto filme possuem problemas incontornáveis de ritmo e narrativa, sendo que estes ficaram ainda mais evidentes na versão filmada por causa de alguns motivos bastante ostensivos, entre eles a caricaturização excessiva dos vilões e a má interpretação de alguns atores masculinos juvenis. Tentemos expor com cautela, portanto, os erros e acertos mais evidentes do filme enquanto peça cinematográfica propriamente dita, sem levar em consideração as autorizadas liberdades adaptativas em relação à obra literária original.
Se o irrepreensível Alan Rickman tem poucas oportunidades cronológicas de brilhar em sua impecável composição do complexo personagem Severus Snape, a graciosa Emma Watson oferece um positivo contraponto como a eloqüente e exibicionista Hermione Granger. Porém, os dois pólos personalísticos de maior relevância na trama (Lorde Voldemort e o hipertrofiado personagem-título) sofrem com as preleções compositivas hiper-estimadas de seus personagens, visto que nem Ralph Fiennes demonstra aqui o talento superlativo que o tornara célebre noutros filmes nem o inexpressivo Daniel Radcliffe é capaz de dotar de exigida significância o portentoso personagem a que ficara associado desde a infância.
Assim sendo, diversas seqüências que soam credíveis no romance original, principalmente quando dizem respeito aos compreensíveis auto-questionamentos do protagonista acerca das dificuldades vitalícias que enfrenta por ser o único capaz de enfrentar o vilanesco Voldemort, carecem de vigor no filme, tamanha a desenxabidez do ator protagonista. A forçação de barra espirituosa na composição do insosso personagem Ron Weasley (cada vez menos competente na interpretação de Rupert Grint) e os gritos clicherosos a que Helena Bonham Carter se submete como a espalhafatosa Bellatrix são os elementos que mais prejudicam a autenticidade aventurosa deste filme, seguidos de perto pelos cacoetes preguiçosos dos demais componentes da trupe de Voldemort, como o tolo Rabicho (Timothy Spall) ou o progressivamente nulo Lucius Malfoy (Jason Isaacs).
Em relação às interpretações dos correligionários de Harry Potter, lamenta-se a pletora desperidçada de personagens secundários, que, apesar de contar com nomes imponentes como David Thewlis (Lupin), Rhys Ifans (Xenophilius Lovegood) ou Bill Nighy (ministro Rufus Scrimgeour), felizmente foi suprimida no primeiro quartel do bom roteiro de Steve Kloves, mais dinâmico na descrição quase dispensável dos eventos matrimoniais que ocupam várias páginas do livro de J. K. Rowling. Ainda falando-se no roteiro de Steve Kloves, cabe laureá-lo positivamente pela solidez com que ele apresenta as disputas de poder entre os bruxos, destacadas em seu viés político-administrativo partidário, conforme já mencionado, em que parece de muito bom tom destacar o letreiro “magia é poder” que estampa as paredes do Ministério da Magia a que o trio de protagonistas consegue penetrar disfarçadamente, focalizar em primeiro plano várias notícias de jornais e/ou capas de livros relevantes para o desenrolar da trama e filiar a maturidade irrefreável (inclusive, no patamar físico) dos personagens a outros componentes bem-sucedidos da equipe técnica. Neste sentido, é perfeitamente compreensível e louvável constatar que a trilha sonora de Alexander Desplat não mais evoca os temas encantatórios de John Williams para os primeiros filmes da cinessérie, perceber que a direção de fotografia de Eduardo Serra prioriza tão positivamente as belezas geológicas dos cenários em que Harry, Hermione e Rony se escondem durante a busca pelas Horcruxes perdidas e admirar-se diante da bela cena em que Harry Potter e Hermione Granger dançam ao som de “O Children”, do amargo grupo de ‘rock’ australiano Nick Cave and the Bad Seeds. Os personagens cresceram – por dentro, por fora e também no que diz respeito à condução das expectativas espectatoriais.
Por fim, qualquer pretensa crítica deste filme que se almeje minimamente respeitosa aos apanágios fílmicos (tanto positivos quanto negativos) deve salientar com entusiasmo a entrada em cena do excelente personagem Dobby, um elfo doméstico habituado à taciturnidade ditirâmbica, ou seja, à vocação nata à servidão quase masoquista aos desejos de seus amigos, personagem fantástico que aqui ressurge ainda melhor construído psicologicamente do que sua aparição anterior no fraquíssimo “Harry Potter e a Câmara Secreta” (2002, de Chris Columbus). A fecundidade com que ele faz uso de seus poderes mágicos num calabouço onde os bruxos estavam confinados e a grandiosidade sacrificial de seu falecimento (não tão dramático quanto o do livro, mas ainda assim carregado de emoção) fazem com que Dobby responda pelos momentos mais efetivamente climáticos deste filme, que , mesmo sem inovar no plano narrativo como fora feito por Alfonso Cuaron no ótimo “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (2004), se dá ao luxo de momentos grandiosos de cinema hollywoodiano, como a seqüência animada que explica o subtítulo do filme (“As Relíquias da Morte”), o triste momento em que Hermione é obrigada a apagar a sua própria existência da memória de seus pais “trouxas”, a já citada cena em que Harry e Hermione dançam ao som de uma canção melancólica e o breve funeral de Dobby à beira-mar.
A saturação de efeitos especiais combativos poderia ser evitada nalguns momentos e o inevitável desconforto que se instaura quando o filme é interrompido depois de irregulares 146 minutos de duração ao menos é compensado pela certeza de que a permanência de David Yates enquanto condutor directivo garantirá que a segunda parte deste capítulo final da trajetória profética do bruxo seja dotada de toda a emoção rememorativa e ambígua que pelo menos metade das adaptações cinematográficas dos livros de J. K. Rowling ficou devendo...
Wesley Pereira de Castro.
Neste sentido, era de se supor que o filme derivado a partir dele seria tão interessante quanto. Graças à segurança elogiável do diretor com currículo amplamente televisivo David Yates, consegue-se imprimir à cinessérie uma conotação político-administrativa muito bem-vinda e até mesmo surpreendente, substituindo a rivalidade caprichosa entre grêmios estudantis dos primeiros filmes por oposições de cunho ético-partidário entre os agrupamentos de personagens, de maneira que as intrigas e profecias que agora circundam a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts são convertidas em chamarizes válidos para platéias adultas e mais esclarecidas em relação a um arcabouço cultural de caráter erudito. Entretanto, tanto livro quanto filme possuem problemas incontornáveis de ritmo e narrativa, sendo que estes ficaram ainda mais evidentes na versão filmada por causa de alguns motivos bastante ostensivos, entre eles a caricaturização excessiva dos vilões e a má interpretação de alguns atores masculinos juvenis. Tentemos expor com cautela, portanto, os erros e acertos mais evidentes do filme enquanto peça cinematográfica propriamente dita, sem levar em consideração as autorizadas liberdades adaptativas em relação à obra literária original.
Se o irrepreensível Alan Rickman tem poucas oportunidades cronológicas de brilhar em sua impecável composição do complexo personagem Severus Snape, a graciosa Emma Watson oferece um positivo contraponto como a eloqüente e exibicionista Hermione Granger. Porém, os dois pólos personalísticos de maior relevância na trama (Lorde Voldemort e o hipertrofiado personagem-título) sofrem com as preleções compositivas hiper-estimadas de seus personagens, visto que nem Ralph Fiennes demonstra aqui o talento superlativo que o tornara célebre noutros filmes nem o inexpressivo Daniel Radcliffe é capaz de dotar de exigida significância o portentoso personagem a que ficara associado desde a infância.
Assim sendo, diversas seqüências que soam credíveis no romance original, principalmente quando dizem respeito aos compreensíveis auto-questionamentos do protagonista acerca das dificuldades vitalícias que enfrenta por ser o único capaz de enfrentar o vilanesco Voldemort, carecem de vigor no filme, tamanha a desenxabidez do ator protagonista. A forçação de barra espirituosa na composição do insosso personagem Ron Weasley (cada vez menos competente na interpretação de Rupert Grint) e os gritos clicherosos a que Helena Bonham Carter se submete como a espalhafatosa Bellatrix são os elementos que mais prejudicam a autenticidade aventurosa deste filme, seguidos de perto pelos cacoetes preguiçosos dos demais componentes da trupe de Voldemort, como o tolo Rabicho (Timothy Spall) ou o progressivamente nulo Lucius Malfoy (Jason Isaacs).
Em relação às interpretações dos correligionários de Harry Potter, lamenta-se a pletora desperidçada de personagens secundários, que, apesar de contar com nomes imponentes como David Thewlis (Lupin), Rhys Ifans (Xenophilius Lovegood) ou Bill Nighy (ministro Rufus Scrimgeour), felizmente foi suprimida no primeiro quartel do bom roteiro de Steve Kloves, mais dinâmico na descrição quase dispensável dos eventos matrimoniais que ocupam várias páginas do livro de J. K. Rowling. Ainda falando-se no roteiro de Steve Kloves, cabe laureá-lo positivamente pela solidez com que ele apresenta as disputas de poder entre os bruxos, destacadas em seu viés político-administrativo partidário, conforme já mencionado, em que parece de muito bom tom destacar o letreiro “magia é poder” que estampa as paredes do Ministério da Magia a que o trio de protagonistas consegue penetrar disfarçadamente, focalizar em primeiro plano várias notícias de jornais e/ou capas de livros relevantes para o desenrolar da trama e filiar a maturidade irrefreável (inclusive, no patamar físico) dos personagens a outros componentes bem-sucedidos da equipe técnica. Neste sentido, é perfeitamente compreensível e louvável constatar que a trilha sonora de Alexander Desplat não mais evoca os temas encantatórios de John Williams para os primeiros filmes da cinessérie, perceber que a direção de fotografia de Eduardo Serra prioriza tão positivamente as belezas geológicas dos cenários em que Harry, Hermione e Rony se escondem durante a busca pelas Horcruxes perdidas e admirar-se diante da bela cena em que Harry Potter e Hermione Granger dançam ao som de “O Children”, do amargo grupo de ‘rock’ australiano Nick Cave and the Bad Seeds. Os personagens cresceram – por dentro, por fora e também no que diz respeito à condução das expectativas espectatoriais.
Por fim, qualquer pretensa crítica deste filme que se almeje minimamente respeitosa aos apanágios fílmicos (tanto positivos quanto negativos) deve salientar com entusiasmo a entrada em cena do excelente personagem Dobby, um elfo doméstico habituado à taciturnidade ditirâmbica, ou seja, à vocação nata à servidão quase masoquista aos desejos de seus amigos, personagem fantástico que aqui ressurge ainda melhor construído psicologicamente do que sua aparição anterior no fraquíssimo “Harry Potter e a Câmara Secreta” (2002, de Chris Columbus). A fecundidade com que ele faz uso de seus poderes mágicos num calabouço onde os bruxos estavam confinados e a grandiosidade sacrificial de seu falecimento (não tão dramático quanto o do livro, mas ainda assim carregado de emoção) fazem com que Dobby responda pelos momentos mais efetivamente climáticos deste filme, que , mesmo sem inovar no plano narrativo como fora feito por Alfonso Cuaron no ótimo “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (2004), se dá ao luxo de momentos grandiosos de cinema hollywoodiano, como a seqüência animada que explica o subtítulo do filme (“As Relíquias da Morte”), o triste momento em que Hermione é obrigada a apagar a sua própria existência da memória de seus pais “trouxas”, a já citada cena em que Harry e Hermione dançam ao som de uma canção melancólica e o breve funeral de Dobby à beira-mar.
A saturação de efeitos especiais combativos poderia ser evitada nalguns momentos e o inevitável desconforto que se instaura quando o filme é interrompido depois de irregulares 146 minutos de duração ao menos é compensado pela certeza de que a permanência de David Yates enquanto condutor directivo garantirá que a segunda parte deste capítulo final da trajetória profética do bruxo seja dotada de toda a emoção rememorativa e ambígua que pelo menos metade das adaptações cinematográficas dos livros de J. K. Rowling ficou devendo...
Wesley Pereira de Castro.
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terça-feira, 9 de novembro de 2010
A SUPREMA FELICIDADE (Brasil, 2010) Direção: Arnaldo Jabor.
Parte considerável do material de divulgação publicitária relacionado a este filme destaca o fato de que o diretor Arnaldo Jabor, sem realizar um longa-metragem há mais de 10 anos, intentava dotá-lo do mesmo fervor nostálgico que os filmes de Federico Fellini, podendo-se perceber aqui traços de crônica histórico-familiar que lembram remotamente “Amarcord” (1973). Porém, se o cineasta italiano cunhou a expressão “memórias inventadas” para descrever seus filmes absolutamente singulares, em que reminiscências oníricas misturavam-se a reconstituições autobiográficas, Arnaldo Jabor opera numa via reflexiva diametralmente inversa, em que cada seqüência, por mais bem-intencionada que seja no plano da emotividade, soa artificial ou esquemática, muito mais inventada do que necessariamente mnemônica, desperdiçando o rico arcabouço que o cineasta brasileiro erigiu em seu ‘corpus’ fílmico setentista, marcado por extraordinárias adaptações de peças de Nelson Rodrigues e divertidas metáforas sobre a “dialética da malandragem” sob a qual se constitui a representação jocosa do brasileiro típico.
A cena em que o garotinho protagonista (então vivido por Caio Manhete) assiste a um estranho espetáculo circense em que uma anã potencialmente adúltera é ficcionalmente esfaqueada por seu marido ciumento talvez seja a mais bem-sucedida, no plano das idéias, em relação ao contato felliniano, visto que emula não somente um tema característico das obras do diretor italiano como encontra eco também no belo documentário em curta-metragem que Arnaldo Jabor realizou em 1965, sob o título mui objetivo de “O Circo”. De resto, as pressões mercadológicas adotadas na obra estragam consideravelmente a sua espontaneidade emotiva, mas não conseguem impedir de todo que espectadores mais suscetíveis aos efeitos humanos da passagem do tempo derramem algumas lágrimas sinceras por causa da identificação forçosa que, afinal, o filme tanto luta para causar.
O principal fator de impulso para o derramamento salutar destas lágrimas de identificação personalística está no maravilhoso título do filme, esplêndido não somente enquanto expressão utópica unanimemente desejada (nem que seja em nível inconsciente), mas também enquanto possibilidade concomitantemente refutada e ensejada pelo personagem de Marco Nanini, que afirma que “a vida só gosta de quem gosta dela”. Enquanto elaboração enredística, o momento em que o avô Noel descreve o súbito arrebatamento de felicidade que o atingira quando se dirigia até um ponto de ônibus é impregnado das tenções epifânicas de que o filme tanto se beneficiaria se as conseguisse levar a cabo em tempo integral.
A citação de Carlos Drummond de Andrade que antecede os créditos iniciais é igualmente pungente em seu intento emotivo: “as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficarão”. E, com esta citação, vários defeitos estruturais do filme (o vai-e-vem cronológico à frente) são justificados, enquanto que outros (a má condução de atores, por exemplo) permanecem largamente danosos. As horrendas entradas em cena do pornográfico e inverossímil personagem de João Miguel, a estereotipia derramada sobre a prostituta personificada pela ótima Maria Luísa Mendonça, as ridículas ameaças católicas perpetradas pelo personagem paroquial de Ary Fontoura e o péssimo desempenho do casal Dan Stulbach e Mariana Lima, que interpretam os pais do protagonista, são, nesse sentido, os piores defeitos actanciais do filme, que, como tal, solapam muito o resultado final, tornando caricato o que deveria ser minimamente honesto enquanto conjunto de lembranças morais do protagonista Paulo (vivido, em sua fase pós-adolescente, pelo simpático Jayme Matarazzo).
Se a escolha da trilha sonora peca por uma anglofilia reinante (má justificada enquanto fator de época) e a direção de arte está rente à mediania funcional do padrão qualitativo das telenovelas produzidas pela Rede Globo de Televisão, a irregularidade componencial dos personagens não sustenta a beleza que ameaça emanar de várias seqüências, a maior parte delas associada justamente à promiscuidade passional de Paulo, que dota seus arroubos namoratórios por meretrizes de um encanto putativo tão elaborado que estes se tornam anticlimáticos quando interrompidos, da mesma forma que acontece na última cena do filme, tão abruptamente vetada quanto inconclusa. Se a seqüência em que a prostituta vivificada por Majô de Castro morre nua, em decorrência de uma navalhada traiçoeira, consegue ser deslumbrante mesmo quando se artificializa através da hipertrofiada inclusão de uma trilha sonora operística, a dança moribunda do avô Noel sobre um cenário de gafieira, que é posteriormente substituído por uma paisagem tipicamente urbana e atual, possui um sentido crítico que, apesar de discursivamente elaborado por seu diretor-roteirista, não foi suficientemente traduzido em emoção recognoscível para o público.
Por outro lado, a surpreendente e contida atuação de Elke Maravilha e o aproveitamento lúdico da sexualidade dúbia do melhor amigo de Paulo, Cabeção (vivido decentemente por César Cardadeiro), são pontos inequivocamente positivos da produção, ainda que a atmosfera mística à la Jean Genet deste segundo componente roteirístico seja prejudicada pelo excesso de bruma noturna na saída em cena do garoto indutivamente atrelado ao homossexualismo ressentido.
No cômputo avaliativo geral, portanto, a indefinição entre a fotografia em cores, a tonalidade em sépia e o uso do preto-e-branco em “A Suprema Felicidade” serve como corolário prático de um apotegma atribuído ao erudito escritor irlandês George Bernard Shaw, que sugeriu que, assim como um “peixe que precisa botar miríades de ovos de modo que alguns possam chegar à maturidade, o fotógrafo precisa fazer miríades de fotografias para que algumas atinjam uma real qualidade”. O consagrado diretor de fotografia Lauro Escorel tinha uma consciência semelhante em mente, ao passo que o diretor Arnaldo Jabor distancia-se tão violentamente (no sentido negativo) de seus filmes anteriores que o não-reconhecimento dos traços característicos de suas obras mais famosas neste seu mais recente filme denota um lamentável declínio estilístico e uma subsunção vergonhosa aos ditames da homogeneidade cultural de traços capitalistas, no caso, regidos por sua fidelidade contratual à emissora de TV para a qual trabalha.
Se a verve crítica de obras geniais como “A Opinião Pública” (1967), “Toda Nudez Será Castigada” (1973), “Tudo Bem” (1978) e, até mesmo, “Eu Te Amo” (1981) é aqui substituída por um conjunto de clichês familiares da pequena-burguesia carioca das décadas de 1940 e 1950, ao menos sobrevivem os truísmos poéticos de Olavo Bilac de que o personagem de Marco Nanini se serve para proclamar que “só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas”. Porém, no afã por fisgar o espectador com um vigor recordativo similar àquele adotado pelo cineasta italiano que lhe serviu de referência, Arnaldo Jabor deveria se lembrar que Cinema é também linguagem, e não apenas um amontoado de situações tragicômicas, concatenadas a fórceps através de intentos mercadológicos tão assumidos quanto sub-reptícios no turbilhão de ideologias direitistas que o filme embala em seus altos e baixos enredísticos, distribuídos em 121 minutos de projeção. Mas algo deve ser repetido como louvável aqui: a percuciência emotiva do título [na verdade, retirado de uma definição do escritor francês Victor Hugo – constante no livro “Os Miseráveis” (1862) – sobre o reconhecimento justo daquilo que somos] é simplesmente arrebatadora!
Wesley Pereira de Castro.
A cena em que o garotinho protagonista (então vivido por Caio Manhete) assiste a um estranho espetáculo circense em que uma anã potencialmente adúltera é ficcionalmente esfaqueada por seu marido ciumento talvez seja a mais bem-sucedida, no plano das idéias, em relação ao contato felliniano, visto que emula não somente um tema característico das obras do diretor italiano como encontra eco também no belo documentário em curta-metragem que Arnaldo Jabor realizou em 1965, sob o título mui objetivo de “O Circo”. De resto, as pressões mercadológicas adotadas na obra estragam consideravelmente a sua espontaneidade emotiva, mas não conseguem impedir de todo que espectadores mais suscetíveis aos efeitos humanos da passagem do tempo derramem algumas lágrimas sinceras por causa da identificação forçosa que, afinal, o filme tanto luta para causar.
O principal fator de impulso para o derramamento salutar destas lágrimas de identificação personalística está no maravilhoso título do filme, esplêndido não somente enquanto expressão utópica unanimemente desejada (nem que seja em nível inconsciente), mas também enquanto possibilidade concomitantemente refutada e ensejada pelo personagem de Marco Nanini, que afirma que “a vida só gosta de quem gosta dela”. Enquanto elaboração enredística, o momento em que o avô Noel descreve o súbito arrebatamento de felicidade que o atingira quando se dirigia até um ponto de ônibus é impregnado das tenções epifânicas de que o filme tanto se beneficiaria se as conseguisse levar a cabo em tempo integral.
A citação de Carlos Drummond de Andrade que antecede os créditos iniciais é igualmente pungente em seu intento emotivo: “as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficarão”. E, com esta citação, vários defeitos estruturais do filme (o vai-e-vem cronológico à frente) são justificados, enquanto que outros (a má condução de atores, por exemplo) permanecem largamente danosos. As horrendas entradas em cena do pornográfico e inverossímil personagem de João Miguel, a estereotipia derramada sobre a prostituta personificada pela ótima Maria Luísa Mendonça, as ridículas ameaças católicas perpetradas pelo personagem paroquial de Ary Fontoura e o péssimo desempenho do casal Dan Stulbach e Mariana Lima, que interpretam os pais do protagonista, são, nesse sentido, os piores defeitos actanciais do filme, que, como tal, solapam muito o resultado final, tornando caricato o que deveria ser minimamente honesto enquanto conjunto de lembranças morais do protagonista Paulo (vivido, em sua fase pós-adolescente, pelo simpático Jayme Matarazzo).
Se a escolha da trilha sonora peca por uma anglofilia reinante (má justificada enquanto fator de época) e a direção de arte está rente à mediania funcional do padrão qualitativo das telenovelas produzidas pela Rede Globo de Televisão, a irregularidade componencial dos personagens não sustenta a beleza que ameaça emanar de várias seqüências, a maior parte delas associada justamente à promiscuidade passional de Paulo, que dota seus arroubos namoratórios por meretrizes de um encanto putativo tão elaborado que estes se tornam anticlimáticos quando interrompidos, da mesma forma que acontece na última cena do filme, tão abruptamente vetada quanto inconclusa. Se a seqüência em que a prostituta vivificada por Majô de Castro morre nua, em decorrência de uma navalhada traiçoeira, consegue ser deslumbrante mesmo quando se artificializa através da hipertrofiada inclusão de uma trilha sonora operística, a dança moribunda do avô Noel sobre um cenário de gafieira, que é posteriormente substituído por uma paisagem tipicamente urbana e atual, possui um sentido crítico que, apesar de discursivamente elaborado por seu diretor-roteirista, não foi suficientemente traduzido em emoção recognoscível para o público.
Por outro lado, a surpreendente e contida atuação de Elke Maravilha e o aproveitamento lúdico da sexualidade dúbia do melhor amigo de Paulo, Cabeção (vivido decentemente por César Cardadeiro), são pontos inequivocamente positivos da produção, ainda que a atmosfera mística à la Jean Genet deste segundo componente roteirístico seja prejudicada pelo excesso de bruma noturna na saída em cena do garoto indutivamente atrelado ao homossexualismo ressentido.
No cômputo avaliativo geral, portanto, a indefinição entre a fotografia em cores, a tonalidade em sépia e o uso do preto-e-branco em “A Suprema Felicidade” serve como corolário prático de um apotegma atribuído ao erudito escritor irlandês George Bernard Shaw, que sugeriu que, assim como um “peixe que precisa botar miríades de ovos de modo que alguns possam chegar à maturidade, o fotógrafo precisa fazer miríades de fotografias para que algumas atinjam uma real qualidade”. O consagrado diretor de fotografia Lauro Escorel tinha uma consciência semelhante em mente, ao passo que o diretor Arnaldo Jabor distancia-se tão violentamente (no sentido negativo) de seus filmes anteriores que o não-reconhecimento dos traços característicos de suas obras mais famosas neste seu mais recente filme denota um lamentável declínio estilístico e uma subsunção vergonhosa aos ditames da homogeneidade cultural de traços capitalistas, no caso, regidos por sua fidelidade contratual à emissora de TV para a qual trabalha.
Se a verve crítica de obras geniais como “A Opinião Pública” (1967), “Toda Nudez Será Castigada” (1973), “Tudo Bem” (1978) e, até mesmo, “Eu Te Amo” (1981) é aqui substituída por um conjunto de clichês familiares da pequena-burguesia carioca das décadas de 1940 e 1950, ao menos sobrevivem os truísmos poéticos de Olavo Bilac de que o personagem de Marco Nanini se serve para proclamar que “só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas”. Porém, no afã por fisgar o espectador com um vigor recordativo similar àquele adotado pelo cineasta italiano que lhe serviu de referência, Arnaldo Jabor deveria se lembrar que Cinema é também linguagem, e não apenas um amontoado de situações tragicômicas, concatenadas a fórceps através de intentos mercadológicos tão assumidos quanto sub-reptícios no turbilhão de ideologias direitistas que o filme embala em seus altos e baixos enredísticos, distribuídos em 121 minutos de projeção. Mas algo deve ser repetido como louvável aqui: a percuciência emotiva do título [na verdade, retirado de uma definição do escritor francês Victor Hugo – constante no livro “Os Miseráveis” (1862) – sobre o reconhecimento justo daquilo que somos] é simplesmente arrebatadora!
Wesley Pereira de Castro.
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quarta-feira, 20 de outubro de 2010
COMER, REZAR, AMAR ('Eat, Pray, Love') EUA, 2010. Direção; Ryan Murphy
Apesar de ter dirigido um filme estruturalmente desengonçado [“Correndo com Tesouras” (2006)] que recebeu divulgação elogiosa por parte da crítica especializada em razão da boa condução de atores, Ryan Murphy é melhor conhecido como o bem-sucedido criador e roteirista das séries televisivas “Nip/Tuck” e “Glee”, uma com enfoque adulto e a outra direcionada ao público infanto-juvenil. Ambas merecem crédito laudatório pelo êxito estabelecido com determinados públicos-alvo, previamente sujeitos à identificação marginal, no que concerne aos temas-tabus que são discutidos em seus episódios. Tanto uma como a outra série dispuseram de bons pontos de partida enredísticos, mas foram se desgastando à medida que se estenderam por mais de uma temporada, em razão de um aspecto fundamentalmente nocivo: Ryan Murphy, enquanto criador e roteirista, não demonstra pulso forte no que tange à fidelidade conceptual de suas personagens, concentrando sua vocação espectatorial na hipnose decorrente da exposição tentadora de estratagemas de consumo. É nesse contexto que “Comer, Rezar, Amar” surge, enquanto uma conjunção de práticas tão pormenorizadamente estudadas que os três verbos do título poderiam ser simplesmente substituídos por “comprar” ou “gastar”.
Dizendo de outra forma: este tipo de filme, cada vez mais comum na onda “femininista” hollywoodiana atual (ou seja: retroalimentadora de papéis convencionais de feminilidade) torna irrelevante um julgamento avaliativo/qualitativo depurado, visto que ele se pretende mais funcional ou psicologicamente remediador do que necessariamente artístico, estabelecendo-se como a panacéia espúria de uma crise estabelecida pelo próprio sistema capitalista que monopoliza as ações dos personagens, mas que nunca é efetivamente questionado enquanto implementador dos problemas de relacionamento familiar e social abordados.
Senão, vejamos: ainda na primeira cena do filme, quando somos apresentados à protagonista Liz Gilbert, interpretada por Julia Roberts a partir de uma estória de vida real, ouvimo-la comentar sobre o trabalho de uma amiga, que realiza atividades de assistência social com imigrantes cambojanos. Destacando que estes imigrantes ilegais enfrentaram sofrimentos variados em seu país de origem, desde perseguições políticas até miséria e efeitos de guerra civil propriamente ditos, a protagonista se antecipa em dizer que, para além de todas estas compreensíveis reclamações, quando os mesmos vão listar seus problemas no consultório de sua amiga, as desilusões amorosas são os principais assuntos de seus depoimentos lamentosos. Ou seja, numa paráfrase possível das palavras da protagonista, por mais que soframos num sentido macrológico, tudo é esquecível diante de problemas amorosos, conclusão esta que autoriza que uma amiga dela ateste que redecorar a cozinha ou entoar um mantra religioso “correspondem à mesma coisa, variando apenas em relação às culturas nacionais de que fazem parte”. Com isso, é estabelecido um ponto nodal de caracterização classista em relação ao discurso fílmico, que invalidaria a identificação genérica com o público (principalmente feminino) de vários países subdesenvolvidos e/ou culturalmente colonizados, mas este estigma de classe é prontamente diluído pelos estratagemas globalizados do enredo, que mantêm o espectador entretido com chavões depressivos e relações superficiais de coleguismo entre a protagonista e alguns habitantes da Itália, da Índia e da Indonésia.
Não por acaso, nos três países que ela visita, as motivações pessoais da protagonista para comportar-se de um dado modo são proporcionadas justamente pelas condições aquisitivas superiores de que ela dispõe, o que justifica a ridícula montagem entre a comemoração de um gol numa partida de futebol na Itália e a tentativa da personagem principal em vestir uma calça apertada, o oportuno encontro, durante uma “obrigação filantrópica”, entre ela e uma rapariga hindu prometida em casamento a um desconhecido, que fala inglês fluentemente e deseja se graduar em Psicologia, e o mutirão de cheques que ajudam uma curandeira balinesa a construir uma casa com os azulejos azuis que a filha pequena desejava.
Por mais que Liz Gilbert realmente tenha sucesso em sua jornada programada de alimentação meridional, meditação oriental e progressão aritmética namoratória, o dinheiro que ela investe em restaurantes e butiques napolitanas, nos jarros com efígies de entidades hinduístas que ela compra na Índia e na rejeição vernal do questionamento recorrente sobre conhecer um homem rico em Bali é que ditam as verdadeiras intenções – ao mesmo tempo, explícitas e sob-reptícias – do filme, no sentido mais oximórico da crise formal e empresarial que ele metonimiza.
Apesar de ser protagonizado por uma das maiores representantes atuais do ‘star system’ hollywoodiano, “Comer, Rezar, Amar” escancara um desrespeito formal aos cânones do ‘studio system’ a que este estivera atrelado noutras eras mais notórias. O que isso quer dizer? Implica em afirmar que a derivação literária de auto-ajuda do roteiro, os renitentes ‘travellings’ paisagísticos do diretor e a mediania actancial do elenco secundário não categorizam este filme como merecedor de uma avaliação positivamente cinematográfica, mas têm a intenção conjunta e prioritária de disfarçar seus cacoetes televisivos e suas dimensões publicitárias. É neste sentido que as inconvenientes declarações matrimoniais da assistente do xamã Ketut Liyer (estereotipadamente vivido por Hadi Suniyanto), a agradável trilha sonora acompanhante de Dario Marianelli e a dedicação do roqueiro Eddie Vedder na composição e interpretação da bonita canção que é executada durante os créditos finais (“Better Days”) são muito mais extensões clicherosas e formulaicas do subgênero romântico da cultura de massa do que ostensivas características deste filme em particular, que, para além de todos os seus defeitos, merece elogios por ao menos dois aspectos: o uso eficiente de ‘flashbacks’ e a ausência de julgamentos morais sobre as constantes substituições da protagonista no que tange aos três principais interesses amorosos que se manifestam no filme. Se, no primeiro caso, o melhor exemplo de efetividade está quando a protagonista lembra, sem rancor ou nostalgia impotente, das músicas que dançou em sua cerimônia de casamento, no segundo caso, as ótimas participações – e, vale a pena frisar: firmes composições personalísticas – de Billy Crudup e James Franco antecipam com elogiável dignidade a entrada em cena de Javier Bardem, menos inspirado como o brasileiro Felipe.
Tal qual acontece com “Sex and the City – O Filme” (2008, de Michael Patrick King) ou “Nosso Lar” (2010, de Wagner de Assis), para ficar apenas em dois exemplos aparentemente contrastantes, “Comer, Rezar, Amar” será lembrando menos pelo que oferece em matéria de material cinematográfico e mais, bem mais, pela funcionalidade arrebatadora no que diz respeito aos anseios evasivos da platéia, que são levados a ignorar lacunas cabais de composição discursiva intra-fílmica, como a cena em que Liz é flagrada utilizando um ‘laptop’ antes de deparar-se com o elefante que fugira de um circo na Índia ou quando a câmera focaliza em ‘close-up’ a quantidade de rúpias que ela precisa desembolsar para comprar um adesivo que designe a sua subsunção a um voto de silêncio na seita hinduísta a que se filia provisoriamente, em que a “caverna de meditação” apresentada aos turistas compõe-se na verdade, de um aposento com vários sofás, paredes de vidro e um aparelho de ar condicionado. Na pior das hipóteses, este filme é um bom retrato oficial de como os detentores do poder e de influência capitalista enxergam a globalização ao redor do mundo.
Wesley Pereira de Castro.
Dizendo de outra forma: este tipo de filme, cada vez mais comum na onda “femininista” hollywoodiana atual (ou seja: retroalimentadora de papéis convencionais de feminilidade) torna irrelevante um julgamento avaliativo/qualitativo depurado, visto que ele se pretende mais funcional ou psicologicamente remediador do que necessariamente artístico, estabelecendo-se como a panacéia espúria de uma crise estabelecida pelo próprio sistema capitalista que monopoliza as ações dos personagens, mas que nunca é efetivamente questionado enquanto implementador dos problemas de relacionamento familiar e social abordados.
Senão, vejamos: ainda na primeira cena do filme, quando somos apresentados à protagonista Liz Gilbert, interpretada por Julia Roberts a partir de uma estória de vida real, ouvimo-la comentar sobre o trabalho de uma amiga, que realiza atividades de assistência social com imigrantes cambojanos. Destacando que estes imigrantes ilegais enfrentaram sofrimentos variados em seu país de origem, desde perseguições políticas até miséria e efeitos de guerra civil propriamente ditos, a protagonista se antecipa em dizer que, para além de todas estas compreensíveis reclamações, quando os mesmos vão listar seus problemas no consultório de sua amiga, as desilusões amorosas são os principais assuntos de seus depoimentos lamentosos. Ou seja, numa paráfrase possível das palavras da protagonista, por mais que soframos num sentido macrológico, tudo é esquecível diante de problemas amorosos, conclusão esta que autoriza que uma amiga dela ateste que redecorar a cozinha ou entoar um mantra religioso “correspondem à mesma coisa, variando apenas em relação às culturas nacionais de que fazem parte”. Com isso, é estabelecido um ponto nodal de caracterização classista em relação ao discurso fílmico, que invalidaria a identificação genérica com o público (principalmente feminino) de vários países subdesenvolvidos e/ou culturalmente colonizados, mas este estigma de classe é prontamente diluído pelos estratagemas globalizados do enredo, que mantêm o espectador entretido com chavões depressivos e relações superficiais de coleguismo entre a protagonista e alguns habitantes da Itália, da Índia e da Indonésia.
Não por acaso, nos três países que ela visita, as motivações pessoais da protagonista para comportar-se de um dado modo são proporcionadas justamente pelas condições aquisitivas superiores de que ela dispõe, o que justifica a ridícula montagem entre a comemoração de um gol numa partida de futebol na Itália e a tentativa da personagem principal em vestir uma calça apertada, o oportuno encontro, durante uma “obrigação filantrópica”, entre ela e uma rapariga hindu prometida em casamento a um desconhecido, que fala inglês fluentemente e deseja se graduar em Psicologia, e o mutirão de cheques que ajudam uma curandeira balinesa a construir uma casa com os azulejos azuis que a filha pequena desejava.
Por mais que Liz Gilbert realmente tenha sucesso em sua jornada programada de alimentação meridional, meditação oriental e progressão aritmética namoratória, o dinheiro que ela investe em restaurantes e butiques napolitanas, nos jarros com efígies de entidades hinduístas que ela compra na Índia e na rejeição vernal do questionamento recorrente sobre conhecer um homem rico em Bali é que ditam as verdadeiras intenções – ao mesmo tempo, explícitas e sob-reptícias – do filme, no sentido mais oximórico da crise formal e empresarial que ele metonimiza.
Apesar de ser protagonizado por uma das maiores representantes atuais do ‘star system’ hollywoodiano, “Comer, Rezar, Amar” escancara um desrespeito formal aos cânones do ‘studio system’ a que este estivera atrelado noutras eras mais notórias. O que isso quer dizer? Implica em afirmar que a derivação literária de auto-ajuda do roteiro, os renitentes ‘travellings’ paisagísticos do diretor e a mediania actancial do elenco secundário não categorizam este filme como merecedor de uma avaliação positivamente cinematográfica, mas têm a intenção conjunta e prioritária de disfarçar seus cacoetes televisivos e suas dimensões publicitárias. É neste sentido que as inconvenientes declarações matrimoniais da assistente do xamã Ketut Liyer (estereotipadamente vivido por Hadi Suniyanto), a agradável trilha sonora acompanhante de Dario Marianelli e a dedicação do roqueiro Eddie Vedder na composição e interpretação da bonita canção que é executada durante os créditos finais (“Better Days”) são muito mais extensões clicherosas e formulaicas do subgênero romântico da cultura de massa do que ostensivas características deste filme em particular, que, para além de todos os seus defeitos, merece elogios por ao menos dois aspectos: o uso eficiente de ‘flashbacks’ e a ausência de julgamentos morais sobre as constantes substituições da protagonista no que tange aos três principais interesses amorosos que se manifestam no filme. Se, no primeiro caso, o melhor exemplo de efetividade está quando a protagonista lembra, sem rancor ou nostalgia impotente, das músicas que dançou em sua cerimônia de casamento, no segundo caso, as ótimas participações – e, vale a pena frisar: firmes composições personalísticas – de Billy Crudup e James Franco antecipam com elogiável dignidade a entrada em cena de Javier Bardem, menos inspirado como o brasileiro Felipe.
Tal qual acontece com “Sex and the City – O Filme” (2008, de Michael Patrick King) ou “Nosso Lar” (2010, de Wagner de Assis), para ficar apenas em dois exemplos aparentemente contrastantes, “Comer, Rezar, Amar” será lembrando menos pelo que oferece em matéria de material cinematográfico e mais, bem mais, pela funcionalidade arrebatadora no que diz respeito aos anseios evasivos da platéia, que são levados a ignorar lacunas cabais de composição discursiva intra-fílmica, como a cena em que Liz é flagrada utilizando um ‘laptop’ antes de deparar-se com o elefante que fugira de um circo na Índia ou quando a câmera focaliza em ‘close-up’ a quantidade de rúpias que ela precisa desembolsar para comprar um adesivo que designe a sua subsunção a um voto de silêncio na seita hinduísta a que se filia provisoriamente, em que a “caverna de meditação” apresentada aos turistas compõe-se na verdade, de um aposento com vários sofás, paredes de vidro e um aparelho de ar condicionado. Na pior das hipóteses, este filme é um bom retrato oficial de como os detentores do poder e de influência capitalista enxergam a globalização ao redor do mundo.
Wesley Pereira de Castro.
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
TROPA DE ELITE 2 - O INIMIGO AGORA É OUTRO (Brasil, 2010) Direção: José Padilha
Num antológico artigo de 1964, em que vocifera contra a hermenêutica em prol do que chamou de “erótica da arte”, a ensaísta norte-americana Susan Sontag assevera que “nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria, quando a arte não precisava de justificativa, quando ninguém perguntava o que uma obra de arte dizia porque sabia (ou pensava que sabia) o que ela realizava”. Com isto, ela quer dizer que lamenta a pletora atual de interpretações sobre obras de arte, que estão demasiado focadas em tentativas de explicação acerca de seus conteúdos, mas desdenhando as possibilidades essencialmente formais das mesmas. 46 anos depois, o mesmo texto pode ser bastante elucidativo em qualquer apreciação analítica do que representa o filme “Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro”, sujeito às mais multiformes interpretações a depender do arcabouço teórico a que seus potenciais exegetas desejem se filiar. Instaura-se, portanto, uma dificuldade inicial: para além de suas inequívocas qualidades cinematográficas, este filme possui diatribes ideológicas que podem variar de tom a depender do viés interpretativo adotado.
Optando-se inicialmente pela perspectiva narratológica, duas grandes perguntas-chave destacam-se ainda nos minutos iniciais: 1 - a narração onisciente do protagonista – o capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro) Roberto Nascimento, extraordinariamente encarnado por Wagner Moura – confunde-se com o ponto de vista discursivo defendido pela equipe técnica do filme ou a instância narrativa em pauta goza apenas de uma liberdade subjetiva hipertrofiada?; 2 – a renitente propensão do protagonista em referir-se a um potencial interlocutor como “parceiro” é uma mera interpelação fática ou corresponde a uma tentativa de convencimento mais generalizada acerca do ponto de vista anteriormente questionado?
Independentemente de estas respostas conseguirem ou não ser respondidas, o filme merece ser classificado como ótimo e impetuosamente fecundo, dado que realmente ousa ao amplificar os problemas organizacionais, políticos, administrativos e policiais abordados no primeiro filme a um patamar tão gritante de corrupção e de perene ameaça aos direitos básicos do cidadão que dois diferentes tipos de cotejo com outras produções cinematográficas merecem ser evidenciados.
O primeiro destes dois tipos de cotejo diz respeito a uma comparação com as próprias obras dirigidas por José Padilha: se no primo e perturbador documentário “Ônibus 174” (2002), o que mais chamava a atenção era a abertura da temática francamente sociológica a entrevistas com vozes dissonantes, respeitando em igual medida diferentes testemunhas/participantes da sociedade civil (de policiais a transeuntes, de meninos de rua a assistentes sociais, de escritores a professores universitários especializados na obra de Michel Foucault) e em “Tropa de Elite” (2007), o que mais era elogiado (e simultaneamente criticado por alguns) era o eloqüente raciocínio julgador da narração em primeira pessoa do atormentado capitão Nascimento, em “Garapa” (2009), o diretor e roteirista denotou que não é muito bem-sucedido na apresentação de problemas característicos das classes sociais menos aquisitivas.
Neste mais recente filme, porém, o diretor José Padilha demonstra-se muito mais maduro em sua averiguação pormenorizada dos fluxogramas do crime organizado, analisando a influência disseminada dos protótipos organizacionais e institucionais, brilhantemente retratados através de suas variegadas estruturas de poder, em diálogos genéricos que sempre se referem ao ‘sistema’ como sendo um inimigo abstrato e indestrutível e em cenas sutis e inteligentemente construídas como quando uma ordem do capitão Fábio (Milhem Cortaz) é renegada por um policial iracundo com o argumento de que ele apenas obedece a ordens superiores, o que pode ser imediatamente verificado através da observação da quantidade de bustos de autoridades que são fotografadas nos quadros pendurados em seu escritório. O segundo tipo de cotejo, por sua vez, diz respeito à já comentada estrutura enredística onisciente, que traz à tona situações apresentadas nos clássicos “Z” (1969, de Costa-Gravas) e “Cassino” (1995, de Martin Scorsese). Se, no primeiro destes filmes, o que há de comum com “Tropa de Elite 2 – o Inimigo Agora é Outro” é o controle pleno da amostragem de eventos que cerceiam e fundamentam o crime organizado e a sua posterior investigação, bem-sucedida no filme, mas fracassada na não-coincidente vida real, no segundo, o ‘modus operandi’ mui particular de Martin Scorsese acerca do quão interferentes são as angústias e insatisfações amorosas de outrem em seus atos profissionais revela-se, quando instaurado no filme mais recente, maravilhosamente exemplar, justificando no bom roteiro de Bráulio Mantovani e Paulo Padilha a crescente irritação mútua, tendente à inevitável colaboração empregatícia, entre o capitão Nascimento e seu arquiinimigo ideológico, o ativista dos direitos humanos Diogo Fraga (convencionalmente vivido por Irandhir Santos).
Só por estas duas menções referenciais, este filme já disporia de suficientes elementos para ser considerado uma peça elogiável da cinematografia brasileira contemporânea, mas o debate de idéias que ele fomenta permite que esbocemos novas considerações sobre seus intentos extra-mercadológicos.
Indo de encontro às admoestações ferrenhas de Susan Sontag, que acrescenta que a interpretação conteudística viola a arte, no sentido de que torna a mesma “um artigo de uso, a ser encaixado num esquema mental de categorias”, convém acrescentar que, se o roteirista Bráulio Mantovani e seu parceiro Paulo Padilha não são necessariamente originais em sua abordagem ousada das tramóias administrativas e institucionais de um organograma longevamente marcado pela corrupção consuetudinária, há de se levar em consideração que este tipo de pungente denúncia contra os conchavos malévolos dos dirigentes políticos brasileiros é inusual no tipo de filme destinado às grandes bilheterias deste país, conforme é evidenciado pela presença da Globo Filmes entre os co-produtores. Pergunta-se: que interesses estariam por detrás desta súbita revelação, em comparação com uma cena-chave do filme, em que um estereotipado deputado e apresentador televisivo (André Mattos, numa atuação realmente verossímil) critica outro deputado por estar realizando investigações em ano eleitoral, quando este filme foi lançado e divulgado justamente no mês-chave para a decisão da campanha presidencial no Brasil? A descoberta de algum tipo escuso de interesses invalidaria as qualidades intrínsecas e valorativamente denuncistas da obra? Talvez não.
Isso porque, da mesma forma que acontece nos exemplos de onisciência narrativa emulados, José Padilha serve-se de um compêndio de recursos pragmático-formais, levado a cabo tanto por Costa-Gravas quanto por Martin Scorsese, em que a montagem frenética, o contraponto imagético-antitético de ações personalísticas e as comparações de efeito no viés político-partidário são particularmente funcionais, conforme bem demonstram as atuações homogêneas do bom corpo actancial (elogio à parte para a breve e intimidadora caracterização de Seu Jorge como um líder narcotraficante), a montagem sempre eficiente de Daniel Rezende (sem duvida, o maior especialista brasileiro contemporâneo no tipo de efeito sensorialmente perturbador pelo qual o filme anseia) e, venhamos e convenhamos, pela narração ferozmente íntima de Wagner Moura, que não somente justifica muito bem a impotência resolutiva infelizmente associada ao subtítulo do filme como também abre espaço para que uma mui relevante discussão entre a abolição/determinação das fronteiras entre os ditames públicos e particulares das causas profissionais sejam levadas em consideração quando posta em prática um dada investigação, o que, por sua vez, é talentosamente metonimizado em seqüências como aquela em que ele é tachado de moralista quando fica enraivecido ao descobrir que seu filho fora preso com uma grande quantidade de maconha ou quando ele é indiciado por grampear sem autorização o telefone do deputado que calha de ser também marido de sua ex-mulher, sendo ele acusado de manter seus interesses policiais em segundo plano diante da alegação de que ele estaria enciumado.
Ao final do filme, portanto, há uma desmistificação do discurso verbalmente desgastado em prol das falácias democráticas, visto que o ficcional e corrompido governador do Rio de Janeiro é mostrado comemorando mais quatro anos de mandato eleitoral, as acusações do ativista Diogo Fraga contra um secretário ostensivamente mal-intencionado são subjugadas pelas condições “democráticas” do escrutínio do mesmo e as oportunistas imagens do Congresso Nacional em Brasília-DF, na seqüência que antecede o final insistem em advertir o espectador de que os fomentadores da corrupção em escala macrológica são de alta relevância política, o que explica por que “entra governo e sai governo, o sistema continua invencível, articulando-se em novas frentes e submetendo-se a novos interesses”.
Quando, portanto, a montagem do filme alinha uma série de assassinatos, “queimas de arquivo” e exonerações tangenciais no que diz respeito às novas articulações de poder condenadas pelo Capitão Nascimento, para mostrar, em seguida, este mesmo personagem comemorando tensamente o despertar de seu filho adolescente, que fora baleado gravemente nos rins e encontrava-se internado na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital, a mensagem do filme, torna bastante evidente: “haja o que houver, faça a sua parte”. Tal mensagem, aliás, é ainda mais legitimada pela letra do ‘funk’ que MC Leonardo compõe e interpreta durante os créditos finais, em que, sob o título “Tá Tudo Errado”, ele arrazoa: “Sinceramente não tenho a saída de como devia tal ciclo parar/ Mas do jeito que estão nos tratando, só estão ajudando esse mal a se alastrar/ Morre polícia, morre vagabundo e, no mesmo segundo, outro vem ocupar/ (...)/ Agora amigo, o papo é contigo, só um aviso pra finalizar: o futuro da favela depende do fruto que tu for plantar”. Não somente da favela, acrescenta José Padilha, demonstrando que todos nós temos um infinitésimo, porém definitivo, papel enquanto retroalimentadores do sistema de violência e corrupção denunciado numa cena inicial pelo professor de História Diogo Fraga, que, apesar de seus atropelos estatísticos e de seus desvios aplicativos dos Direitos Humanos Universais, insistentemente criticados por seu rival ideológico Roberto Nascimento, tem razão quando contesta o elogio armamentista aos assassinatos justiceiros que está embutido no símbolo e no jargão atacante do BOPE, que “mata um, mata geral”, conforme está dubiamente contido no refrão do sinistro tema cantado na abertura do filme pela desenxabida banda de ‘rock’ Tihuana. E, por mais que as críticas sobre este filme tendam muito mais a demonstrarem o que ele significa do que o que ele formalmente representa, o recado é dado: cada opção de pôr a câmera num determinado lugar e não noutro ou de mostrar um personagem falando algo e não outro é provida de sentido e interesses difusos.
Cabe ao receptor audiovisual destas mensagens fazer a sua parte na divulgação debatedora de seus pontos de vista éticos, políticos ou puramente hermenêuticos. Por mais inócuo que isto pareça dentro da catastrófica situação apresentada pelo protagonista ou do abrangente organograma criminal que se descortina diante de nossas sensibilidades espectatoriais, Cinema é também uma potente – e mui perigosa, em mãos e mentes desonestas – ferramenta de (re/des)construção moral!
Wesley Pereira de Castro.
Optando-se inicialmente pela perspectiva narratológica, duas grandes perguntas-chave destacam-se ainda nos minutos iniciais: 1 - a narração onisciente do protagonista – o capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro) Roberto Nascimento, extraordinariamente encarnado por Wagner Moura – confunde-se com o ponto de vista discursivo defendido pela equipe técnica do filme ou a instância narrativa em pauta goza apenas de uma liberdade subjetiva hipertrofiada?; 2 – a renitente propensão do protagonista em referir-se a um potencial interlocutor como “parceiro” é uma mera interpelação fática ou corresponde a uma tentativa de convencimento mais generalizada acerca do ponto de vista anteriormente questionado?
Independentemente de estas respostas conseguirem ou não ser respondidas, o filme merece ser classificado como ótimo e impetuosamente fecundo, dado que realmente ousa ao amplificar os problemas organizacionais, políticos, administrativos e policiais abordados no primeiro filme a um patamar tão gritante de corrupção e de perene ameaça aos direitos básicos do cidadão que dois diferentes tipos de cotejo com outras produções cinematográficas merecem ser evidenciados.
O primeiro destes dois tipos de cotejo diz respeito a uma comparação com as próprias obras dirigidas por José Padilha: se no primo e perturbador documentário “Ônibus 174” (2002), o que mais chamava a atenção era a abertura da temática francamente sociológica a entrevistas com vozes dissonantes, respeitando em igual medida diferentes testemunhas/participantes da sociedade civil (de policiais a transeuntes, de meninos de rua a assistentes sociais, de escritores a professores universitários especializados na obra de Michel Foucault) e em “Tropa de Elite” (2007), o que mais era elogiado (e simultaneamente criticado por alguns) era o eloqüente raciocínio julgador da narração em primeira pessoa do atormentado capitão Nascimento, em “Garapa” (2009), o diretor e roteirista denotou que não é muito bem-sucedido na apresentação de problemas característicos das classes sociais menos aquisitivas.
Neste mais recente filme, porém, o diretor José Padilha demonstra-se muito mais maduro em sua averiguação pormenorizada dos fluxogramas do crime organizado, analisando a influência disseminada dos protótipos organizacionais e institucionais, brilhantemente retratados através de suas variegadas estruturas de poder, em diálogos genéricos que sempre se referem ao ‘sistema’ como sendo um inimigo abstrato e indestrutível e em cenas sutis e inteligentemente construídas como quando uma ordem do capitão Fábio (Milhem Cortaz) é renegada por um policial iracundo com o argumento de que ele apenas obedece a ordens superiores, o que pode ser imediatamente verificado através da observação da quantidade de bustos de autoridades que são fotografadas nos quadros pendurados em seu escritório. O segundo tipo de cotejo, por sua vez, diz respeito à já comentada estrutura enredística onisciente, que traz à tona situações apresentadas nos clássicos “Z” (1969, de Costa-Gravas) e “Cassino” (1995, de Martin Scorsese). Se, no primeiro destes filmes, o que há de comum com “Tropa de Elite 2 – o Inimigo Agora é Outro” é o controle pleno da amostragem de eventos que cerceiam e fundamentam o crime organizado e a sua posterior investigação, bem-sucedida no filme, mas fracassada na não-coincidente vida real, no segundo, o ‘modus operandi’ mui particular de Martin Scorsese acerca do quão interferentes são as angústias e insatisfações amorosas de outrem em seus atos profissionais revela-se, quando instaurado no filme mais recente, maravilhosamente exemplar, justificando no bom roteiro de Bráulio Mantovani e Paulo Padilha a crescente irritação mútua, tendente à inevitável colaboração empregatícia, entre o capitão Nascimento e seu arquiinimigo ideológico, o ativista dos direitos humanos Diogo Fraga (convencionalmente vivido por Irandhir Santos).
Só por estas duas menções referenciais, este filme já disporia de suficientes elementos para ser considerado uma peça elogiável da cinematografia brasileira contemporânea, mas o debate de idéias que ele fomenta permite que esbocemos novas considerações sobre seus intentos extra-mercadológicos.
Indo de encontro às admoestações ferrenhas de Susan Sontag, que acrescenta que a interpretação conteudística viola a arte, no sentido de que torna a mesma “um artigo de uso, a ser encaixado num esquema mental de categorias”, convém acrescentar que, se o roteirista Bráulio Mantovani e seu parceiro Paulo Padilha não são necessariamente originais em sua abordagem ousada das tramóias administrativas e institucionais de um organograma longevamente marcado pela corrupção consuetudinária, há de se levar em consideração que este tipo de pungente denúncia contra os conchavos malévolos dos dirigentes políticos brasileiros é inusual no tipo de filme destinado às grandes bilheterias deste país, conforme é evidenciado pela presença da Globo Filmes entre os co-produtores. Pergunta-se: que interesses estariam por detrás desta súbita revelação, em comparação com uma cena-chave do filme, em que um estereotipado deputado e apresentador televisivo (André Mattos, numa atuação realmente verossímil) critica outro deputado por estar realizando investigações em ano eleitoral, quando este filme foi lançado e divulgado justamente no mês-chave para a decisão da campanha presidencial no Brasil? A descoberta de algum tipo escuso de interesses invalidaria as qualidades intrínsecas e valorativamente denuncistas da obra? Talvez não.
Isso porque, da mesma forma que acontece nos exemplos de onisciência narrativa emulados, José Padilha serve-se de um compêndio de recursos pragmático-formais, levado a cabo tanto por Costa-Gravas quanto por Martin Scorsese, em que a montagem frenética, o contraponto imagético-antitético de ações personalísticas e as comparações de efeito no viés político-partidário são particularmente funcionais, conforme bem demonstram as atuações homogêneas do bom corpo actancial (elogio à parte para a breve e intimidadora caracterização de Seu Jorge como um líder narcotraficante), a montagem sempre eficiente de Daniel Rezende (sem duvida, o maior especialista brasileiro contemporâneo no tipo de efeito sensorialmente perturbador pelo qual o filme anseia) e, venhamos e convenhamos, pela narração ferozmente íntima de Wagner Moura, que não somente justifica muito bem a impotência resolutiva infelizmente associada ao subtítulo do filme como também abre espaço para que uma mui relevante discussão entre a abolição/determinação das fronteiras entre os ditames públicos e particulares das causas profissionais sejam levadas em consideração quando posta em prática um dada investigação, o que, por sua vez, é talentosamente metonimizado em seqüências como aquela em que ele é tachado de moralista quando fica enraivecido ao descobrir que seu filho fora preso com uma grande quantidade de maconha ou quando ele é indiciado por grampear sem autorização o telefone do deputado que calha de ser também marido de sua ex-mulher, sendo ele acusado de manter seus interesses policiais em segundo plano diante da alegação de que ele estaria enciumado.
Ao final do filme, portanto, há uma desmistificação do discurso verbalmente desgastado em prol das falácias democráticas, visto que o ficcional e corrompido governador do Rio de Janeiro é mostrado comemorando mais quatro anos de mandato eleitoral, as acusações do ativista Diogo Fraga contra um secretário ostensivamente mal-intencionado são subjugadas pelas condições “democráticas” do escrutínio do mesmo e as oportunistas imagens do Congresso Nacional em Brasília-DF, na seqüência que antecede o final insistem em advertir o espectador de que os fomentadores da corrupção em escala macrológica são de alta relevância política, o que explica por que “entra governo e sai governo, o sistema continua invencível, articulando-se em novas frentes e submetendo-se a novos interesses”.
Quando, portanto, a montagem do filme alinha uma série de assassinatos, “queimas de arquivo” e exonerações tangenciais no que diz respeito às novas articulações de poder condenadas pelo Capitão Nascimento, para mostrar, em seguida, este mesmo personagem comemorando tensamente o despertar de seu filho adolescente, que fora baleado gravemente nos rins e encontrava-se internado na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital, a mensagem do filme, torna bastante evidente: “haja o que houver, faça a sua parte”. Tal mensagem, aliás, é ainda mais legitimada pela letra do ‘funk’ que MC Leonardo compõe e interpreta durante os créditos finais, em que, sob o título “Tá Tudo Errado”, ele arrazoa: “Sinceramente não tenho a saída de como devia tal ciclo parar/ Mas do jeito que estão nos tratando, só estão ajudando esse mal a se alastrar/ Morre polícia, morre vagabundo e, no mesmo segundo, outro vem ocupar/ (...)/ Agora amigo, o papo é contigo, só um aviso pra finalizar: o futuro da favela depende do fruto que tu for plantar”. Não somente da favela, acrescenta José Padilha, demonstrando que todos nós temos um infinitésimo, porém definitivo, papel enquanto retroalimentadores do sistema de violência e corrupção denunciado numa cena inicial pelo professor de História Diogo Fraga, que, apesar de seus atropelos estatísticos e de seus desvios aplicativos dos Direitos Humanos Universais, insistentemente criticados por seu rival ideológico Roberto Nascimento, tem razão quando contesta o elogio armamentista aos assassinatos justiceiros que está embutido no símbolo e no jargão atacante do BOPE, que “mata um, mata geral”, conforme está dubiamente contido no refrão do sinistro tema cantado na abertura do filme pela desenxabida banda de ‘rock’ Tihuana. E, por mais que as críticas sobre este filme tendam muito mais a demonstrarem o que ele significa do que o que ele formalmente representa, o recado é dado: cada opção de pôr a câmera num determinado lugar e não noutro ou de mostrar um personagem falando algo e não outro é provida de sentido e interesses difusos.
Cabe ao receptor audiovisual destas mensagens fazer a sua parte na divulgação debatedora de seus pontos de vista éticos, políticos ou puramente hermenêuticos. Por mais inócuo que isto pareça dentro da catastrófica situação apresentada pelo protagonista ou do abrangente organograma criminal que se descortina diante de nossas sensibilidades espectatoriais, Cinema é também uma potente – e mui perigosa, em mãos e mentes desonestas – ferramenta de (re/des)construção moral!
Wesley Pereira de Castro.
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quinta-feira, 7 de outubro de 2010
GENTE GRANDE ('Grown Ups') EUA, 2010. Direção: Dennis Dugan
Se John Hughes ainda estivesse vivo e realizasse um filme sobre a maturidade etária de seus personagens, como seria o tipo de humor adotado nesta produção hipotética? O interessantíssimo roteiro de Fred Wolf e do protagonista Adam Sandler responde muito bem a esta pergunta, contando com atuações surpreendentemente maduras de um elenco acostumado a um estilo humorístico tão escatológico quanto epidérmico. Em “Gente Grande”, para nosso sobressalto, as poucas limitações actanciais ficam a cargo de David Spade, que está irritante como o solteirão Marcus Higgins, o que talvez seja um efeito proposital, que dignifica minimamente a sua função contrastante à seriedade inaudita e benfazeja dos ótimos personagens de Adam Sandler (Lenny), Chris Rock (Kurt), Kevin James (Eric) e, principalmente, Rob Schneider (Rob), que tinha tudo para recair numa interpretação caricata, mas dota seu personagem de uma verossimilhança escandalosa.
Não é por acaso, portanto, que, graças a um insulto descontrolado deste último personagem que a ótima Joyce van Patten (intérprete de Gloria, sua esposa hiponga e envelhecida) profere aquela que talvez seja a moral do filme: “do amor, vem a hostilidade”, apelo delicado à tolerância e às concessões maritais que encontra eco na convencional seqüência do jogo de basquete, que surpreende por inverter positivamente esta moral (ou seja, da hostilidade, também pode vir o entendimento) ao mostrar o protagonista errando de propósito uma enterrada a fim de permitir que seus rivais socialmente desintegrados possam ganhar ao menos um jogo em suas vidas. Quando perguntado por sua esposa sobre o porquê de ter feito isso, a resposta é taxativa: “eles precisavam ganhar ao menos uma vez. E nossa família tem que aprender a perder um pouco”. Tal qual acontecia nos bons tempos hughesianos, Hollywood voltou a enfrentar com delicadeza indisfarçada a inevitável luta de classes travestida em nostalgia. Ao final da sessão, portanto, mesmo estando diante de uma comédia que beira o pastelão, o espectador que beira os trinta anos de idade se sente tentado a derramar uma ou duas lágrimas de identificação...
A fim de que a dramaticidade elogiosa do filme pudesse ser efetivada, alguns aspectos também caros ao estilo hughesiano foram de vital importância, como o flerte com subgêneros cômicos consagrados, a observação percuciente dos costumes tipicamente norte-americanos e a trilha sonora coerente. Com exceção do pleonástico acompanhamento sonoro de Rupert Gregson-Williams, a seleção de canções deste filme é composta primordialmente por faixas setentistas ou oitentistas de bandas de ‘rock’ que, com certeza, eram apreciadas pelos personagens, merecendo destaque as execuções mui pertinentes de “Escape (The Piña Colada Song)” (de Rupert Holmes, clássico ‘kitsch’ que é reproduzido quando as belas filhas de Rob entram em cena) e de “Stan the Man” (composta e emocionalmente interpretada pelo próprio Adam Sandler durante os créditos finais, e cuja letra emula bem o clima consolador do filme).
No que tange à observação minuciosa da configuração hodierna e internamente problemática do ‘american way of life’, não somente esta última canção citada é pertinente, como a descrição de algumas cenas esquematicamente críticas e comicamente bem-sucedidas: a apresentação da abastada família Feder, quando vemos os filhos de Lenny enviarem torpedos de celular à babá da família, pedindo que a mesma traga-lhes chocolate quente; as reações de espanto que tomam os personagens sempre que o caçula da família Lamonsoff insiste em mamar no peito de sua mãe, aos quatro anos de idade; o riso não-contido quando Rob canta “Ave Maria” de forma histriônica no funeral de seu treinador de basquetebol; a graciosa seqüência em que a rica e hispânica Roxanne Chase-Feder (Salma Hayek) desiste de viajar para a Itália quando percebe que seus filhos estão a brincar no lago pela primeira vez; e o hilário momento em que os cinco amigos de adolescência são flagrados urinando numa piscina. Porém, a análise estendida de duas outras seqüências é ainda mais relevante no plano defensável da sinceridade enredística e micro-sociológica deste filme.
Num momento central do reencontro entre os amigos, eles resolvem participar de um jogo que consiste em atirar uma flecha para cima e depois verificar quem permaneceria por mais tempo no local em que a mesma iria cair. Enquanto o personagem de Rob Schneider queda-se no centro, orando, os demais personagens correm em várias direções, em câmera lenta e, aos poucos, passam a ser vitimados por quedas espalhafatosas (um deles bate num tronco, outro cai de cabeça num amontoado de fezes, etc.), sendo que a flecha finalmente atinge o pé do personagem que permanecera parado, ao passo em que o espectador era conduzido a se preocupar com um cachorro abandonado entre os cinco amigos. Apesar de ser destinada a provocar gargalhadas de um público acostumado a este tipo de riso humilhante, esta seqüência demorada extravasa a dificuldade em manter-se fiel a uma dada tendência genérica no atabalhoado cinema atual. Num momento posterior, vemos os personagens estendendo uma bandeira estadunidense à contraluz (afinal, é 4 de julho!) e o personagem de Adam Sandler aproveita a oportunidade para pedir à sua filha que liberte um pássaro convalescente, dizendo que este seria o momento ideal para celebrar a liberdade do mesmo, discurso este que não soa de todo pedante, ao contrário do que sói acontecer com qualquer citação democrática no cinema após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Com apenas estas duas seqüências-chave, “Gente Grande” promulgaria um regresso benévolo à simplicidade temática dos velhos tempos, mas ele é ainda mais agradável e comovente em seus 102 minutos de projeção...
Apesar de seus evidentes defeitos (a saber, a já citada trilha sonora redundante de Rupert Gregson-Williams, a forçação de barra envolvendo a doçura da pequena Alexys Nycole Sanchez e a incômoda presença em cena, intra e extra-diegeticamente, de David Spade), “Gente Grande” possui virtudes tão efetivas e em franco e lamentável desaparecimento no atual gênero cômico hollywoodiano que o diretor Dennis Dugan merece ser aqui redimido dos péssimos exemplos morais que levara a cabo em filmes como “O Pestinha” (1990), “Um Maluco no Golfe” (1996) ou “O Paizão” (1999) e ser merecedor de atenção redobrada em filmes sinopticamente espirituosos – mas ainda não-vistos – como “Mulher Infernal” (2001), “Eu os Declaro Marido e... Larry” (2007) e “Zohan – O Agente Bom de Corte” (2008).
Um elogio sincero e repetido deve ser direcionado ao roteiro, que evita os clichês do gênero com louvor (tudo bem, os flatos e infecções podológicas da sogra do personagem de Kurt são uma exceção!) e consegue emocionar o espectador de forma inesperada, num filme que, se olharmos bem, é até discreto diante da responsabilidade grandiloqüente a que se submeteu: retratar os ‘kidults’ como sendo conseqüências de um contexto socioeconômico irregularmente bem-sucedido, que tem na própria configuração sistemática e empresarial deste tipo de filme – do qual o protagonista é mais do que um simples alter-ego – um dos principais culpados.
Wesley Pereira de Castro.
Não é por acaso, portanto, que, graças a um insulto descontrolado deste último personagem que a ótima Joyce van Patten (intérprete de Gloria, sua esposa hiponga e envelhecida) profere aquela que talvez seja a moral do filme: “do amor, vem a hostilidade”, apelo delicado à tolerância e às concessões maritais que encontra eco na convencional seqüência do jogo de basquete, que surpreende por inverter positivamente esta moral (ou seja, da hostilidade, também pode vir o entendimento) ao mostrar o protagonista errando de propósito uma enterrada a fim de permitir que seus rivais socialmente desintegrados possam ganhar ao menos um jogo em suas vidas. Quando perguntado por sua esposa sobre o porquê de ter feito isso, a resposta é taxativa: “eles precisavam ganhar ao menos uma vez. E nossa família tem que aprender a perder um pouco”. Tal qual acontecia nos bons tempos hughesianos, Hollywood voltou a enfrentar com delicadeza indisfarçada a inevitável luta de classes travestida em nostalgia. Ao final da sessão, portanto, mesmo estando diante de uma comédia que beira o pastelão, o espectador que beira os trinta anos de idade se sente tentado a derramar uma ou duas lágrimas de identificação...
A fim de que a dramaticidade elogiosa do filme pudesse ser efetivada, alguns aspectos também caros ao estilo hughesiano foram de vital importância, como o flerte com subgêneros cômicos consagrados, a observação percuciente dos costumes tipicamente norte-americanos e a trilha sonora coerente. Com exceção do pleonástico acompanhamento sonoro de Rupert Gregson-Williams, a seleção de canções deste filme é composta primordialmente por faixas setentistas ou oitentistas de bandas de ‘rock’ que, com certeza, eram apreciadas pelos personagens, merecendo destaque as execuções mui pertinentes de “Escape (The Piña Colada Song)” (de Rupert Holmes, clássico ‘kitsch’ que é reproduzido quando as belas filhas de Rob entram em cena) e de “Stan the Man” (composta e emocionalmente interpretada pelo próprio Adam Sandler durante os créditos finais, e cuja letra emula bem o clima consolador do filme).
No que tange à observação minuciosa da configuração hodierna e internamente problemática do ‘american way of life’, não somente esta última canção citada é pertinente, como a descrição de algumas cenas esquematicamente críticas e comicamente bem-sucedidas: a apresentação da abastada família Feder, quando vemos os filhos de Lenny enviarem torpedos de celular à babá da família, pedindo que a mesma traga-lhes chocolate quente; as reações de espanto que tomam os personagens sempre que o caçula da família Lamonsoff insiste em mamar no peito de sua mãe, aos quatro anos de idade; o riso não-contido quando Rob canta “Ave Maria” de forma histriônica no funeral de seu treinador de basquetebol; a graciosa seqüência em que a rica e hispânica Roxanne Chase-Feder (Salma Hayek) desiste de viajar para a Itália quando percebe que seus filhos estão a brincar no lago pela primeira vez; e o hilário momento em que os cinco amigos de adolescência são flagrados urinando numa piscina. Porém, a análise estendida de duas outras seqüências é ainda mais relevante no plano defensável da sinceridade enredística e micro-sociológica deste filme.
Num momento central do reencontro entre os amigos, eles resolvem participar de um jogo que consiste em atirar uma flecha para cima e depois verificar quem permaneceria por mais tempo no local em que a mesma iria cair. Enquanto o personagem de Rob Schneider queda-se no centro, orando, os demais personagens correm em várias direções, em câmera lenta e, aos poucos, passam a ser vitimados por quedas espalhafatosas (um deles bate num tronco, outro cai de cabeça num amontoado de fezes, etc.), sendo que a flecha finalmente atinge o pé do personagem que permanecera parado, ao passo em que o espectador era conduzido a se preocupar com um cachorro abandonado entre os cinco amigos. Apesar de ser destinada a provocar gargalhadas de um público acostumado a este tipo de riso humilhante, esta seqüência demorada extravasa a dificuldade em manter-se fiel a uma dada tendência genérica no atabalhoado cinema atual. Num momento posterior, vemos os personagens estendendo uma bandeira estadunidense à contraluz (afinal, é 4 de julho!) e o personagem de Adam Sandler aproveita a oportunidade para pedir à sua filha que liberte um pássaro convalescente, dizendo que este seria o momento ideal para celebrar a liberdade do mesmo, discurso este que não soa de todo pedante, ao contrário do que sói acontecer com qualquer citação democrática no cinema após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Com apenas estas duas seqüências-chave, “Gente Grande” promulgaria um regresso benévolo à simplicidade temática dos velhos tempos, mas ele é ainda mais agradável e comovente em seus 102 minutos de projeção...
Apesar de seus evidentes defeitos (a saber, a já citada trilha sonora redundante de Rupert Gregson-Williams, a forçação de barra envolvendo a doçura da pequena Alexys Nycole Sanchez e a incômoda presença em cena, intra e extra-diegeticamente, de David Spade), “Gente Grande” possui virtudes tão efetivas e em franco e lamentável desaparecimento no atual gênero cômico hollywoodiano que o diretor Dennis Dugan merece ser aqui redimido dos péssimos exemplos morais que levara a cabo em filmes como “O Pestinha” (1990), “Um Maluco no Golfe” (1996) ou “O Paizão” (1999) e ser merecedor de atenção redobrada em filmes sinopticamente espirituosos – mas ainda não-vistos – como “Mulher Infernal” (2001), “Eu os Declaro Marido e... Larry” (2007) e “Zohan – O Agente Bom de Corte” (2008).
Um elogio sincero e repetido deve ser direcionado ao roteiro, que evita os clichês do gênero com louvor (tudo bem, os flatos e infecções podológicas da sogra do personagem de Kurt são uma exceção!) e consegue emocionar o espectador de forma inesperada, num filme que, se olharmos bem, é até discreto diante da responsabilidade grandiloqüente a que se submeteu: retratar os ‘kidults’ como sendo conseqüências de um contexto socioeconômico irregularmente bem-sucedido, que tem na própria configuração sistemática e empresarial deste tipo de filme – do qual o protagonista é mais do que um simples alter-ego – um dos principais culpados.
Wesley Pereira de Castro.
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quarta-feira, 6 de outubro de 2010
NOSSO LAR. Brasil, 2010. Direção: Wagner de Assis.
Existe uma crônica de Akira Kurosawa em que este conceituado diretor japonês vale-se das especulações de seu neto infantil sobre a similaridade do cachorro da família com vários animais (mas que, afinal de contas, parece mesmo com um cachorro!) para defender que, apesar de mesclar características concernentes às demais artes, cinema é sempre Cinema, por mais tautológica que esta (in)definição pareça.
Pois bem, diante de “Nosso Lar”, os questionamentos advindos de tal confusão conceptual assumem a gravidade de um oxímoro: o que é realmente um filme? Onde termina um aspecto fílmico e começa o discurso religioso propagandístico? É lícito adotar este tipo de questionamento numa crítica cinematográfica genérica? Um cotejo imediato com experiências mais gritantes no plano ideológico-discursivo – a saber, o cinema socialista soviético das décadas de 1920 e 1930 e os filmes anti-semitas produzidos sob o jugo do ministro alemão Joseph Goebbels – possibilita que identifiquemos nesta mais recente superprodução da Globo Filmes um grave déficit técnico-narrativo: se aqueles beneficiavam-se de ricas experiências envolvendo montagem de fotogramas ou decodificação simbólica de metáforas preconceituosas, respectivamente, este peca pela completa subsunção à doutrina kardecista, repleta de contradições discursivas que, para além de serem credíveis ou não, esbarram na acepção mais essencialmente bíblica do termo dogma, entendido como sendo uma explicação mitológica para as dúvidas eternas da Existência, ostensivamente embasada em lacunas incapazes de serem julgadas pelos esquemas científicos tradicionais.
Em outras palavras: “Nosso Lar” é um filme que vai de encontro a ideais pretensamente analíticos de apreciação cinematográfica, relacionados ao arcabouço referencial do espectador e à sua disponibilidade em acompanhar uma simples estória humana, e depende justamente da apreciação subjetiva e aderente do mesmo aos caracteres dogmáticos ali apresentados. Não quer ser filme, quer ser doutrina. E isto é, definitivamente, um problema!
No plano narrativo primário, “Nosso Lar” conta a história real (ou assim apresentada como tal) do médico André Luiz (Renato Prieto), que falece devido a complicações cardíacas e acorda num umbral para pecadores, onde é submetido a todo tipo de provações e sofrimentos, até ser resgatado por figuras iluminadas, que o conduzem ao recanto curativo do título, um paliativo celestial em que as almas dos falecidos aguardam o momento de reencarnarem na Terra, enquanto amadurecem seus desígnios morais e aprendem a esquecer as pendências de vidas passadas.
Se o roteiro do próprio diretor, baseado num livro comercialmente bem-sucedido psicografado pelo médium Chico Xavier, estivesse efetivamente focado nesta condução tramática, o filme seria assaz interessante e entretido, mas, no plano narrativo secundário (e dominante), frases de efeito enaltecendo o kardecismo são despejadas segundo após segundo, muitas vezes associadas a contradições gritantes e racionalmente inaceitáveis. Senão, vejamos: se as almas que estão voluntariamente confinadas no paraíso reconstituído no filme abandonam quaisquer resquícios de suas vidas anteriores, porque permanecem com seus formatos terrenos no local representado?
Se a vida na Terra é que é uma “cópia” daquele lugar, porque os hospitais precisam ser identificados com placas que indicam o número da ala em que os internos se encontram? Se, oficialmente, o conhecimento teológico é onisciente e a bondade é universalmente disseminada, qual a necessidade de tantos sub-ministérios ou de tantas minúcias burocráticas no retorno para a Terra ou na comunicação com os parentes mortos ou ainda vivos? Talvez estas respostas dependam de uma profissão de fé que transcende – e muito! – as especificidades desta resenha.
Apesar de a direção de arte ser um digno chamariz e de a trilha sonora de Philip Glass adotar os acordes ‘in crescendo’ que o tornaram célebre e atrelado a um estilo facilmente reconhecível de composição erudita, a direção do filme é frouxa, o roteiro é infiel aos seus próprios parâmetros e o elenco é ruim, não porque os atores assim também o sejam, mas porque estes mais recitam uma planilha moralizante do que efetivamente atuam, visto que eles comportam-se como se estivessem num púlpito midiático e não num cenário cinematográfico.
No que tange à demonstração destes defeitos, um exemplo singular permite a fácil constatação: quando André Luiz chega a Nosso Lar, ele é obrigado a ficar completamente dependente das respostas e admoestações concedidas pelo diligente Lísias (Fernando Alves Pinto, numa das poucas interpretações inicialmente convincentes do filme), bastante firme em suas pregações, aliás, mas, quando a mãe deste último (vivida por Ana Rosa, convincente como de costume) emigra novamente para a Terra, é ele quem depende do auxilio consolador e aconselhador de André.
Porém, vários são os clichês bem-aventurados que saturam este filme, dado que podemos enumerar também: a pletora suspeita, oportunista e não necessariamente inclusiva, de ícones religiosos na sala do Governador (Othon Bastos), a estereotipia indumentária dos judeus que chegam a Nosso Lar depois que são mortos por causa da II Guerra Mundial, a impostação supra-caridosa e xaroposa que satura os pronunciamentos vocais dos personagens e a montagem um tanto equivocada – em razão de seu pretenso julgamento avaliativo de caráter – entre os vários estágios da(s) vida(s) de André Luiz.
Para além, portanto, da modorra ou do bem-estar de recepção narrativa que este filme possa causar a diferentes tipos de espectadores, é patente no mesmo o desejo de convertê-los ao espiritismo e não somente mantê-lo entretido por 102 minutos. Ou seja, apesar de ser virtuoso em mais de um aspecto relacionado à sua própria constituição cinematográfica (fotografia, linearidade enredística, trilha sonora), “Nosso Lar” não ultrapassa seus direcionamentos hagiográficos forçosos e, como tal, soçobra esteticamente em razão de sua assunção extremada de propósitos. Pena... Mas, definitivamente, é mui válido (e carente de observação cuidadosa) enquanto tentativa!
Wesley Pereira de Castro.
Pois bem, diante de “Nosso Lar”, os questionamentos advindos de tal confusão conceptual assumem a gravidade de um oxímoro: o que é realmente um filme? Onde termina um aspecto fílmico e começa o discurso religioso propagandístico? É lícito adotar este tipo de questionamento numa crítica cinematográfica genérica? Um cotejo imediato com experiências mais gritantes no plano ideológico-discursivo – a saber, o cinema socialista soviético das décadas de 1920 e 1930 e os filmes anti-semitas produzidos sob o jugo do ministro alemão Joseph Goebbels – possibilita que identifiquemos nesta mais recente superprodução da Globo Filmes um grave déficit técnico-narrativo: se aqueles beneficiavam-se de ricas experiências envolvendo montagem de fotogramas ou decodificação simbólica de metáforas preconceituosas, respectivamente, este peca pela completa subsunção à doutrina kardecista, repleta de contradições discursivas que, para além de serem credíveis ou não, esbarram na acepção mais essencialmente bíblica do termo dogma, entendido como sendo uma explicação mitológica para as dúvidas eternas da Existência, ostensivamente embasada em lacunas incapazes de serem julgadas pelos esquemas científicos tradicionais.
Em outras palavras: “Nosso Lar” é um filme que vai de encontro a ideais pretensamente analíticos de apreciação cinematográfica, relacionados ao arcabouço referencial do espectador e à sua disponibilidade em acompanhar uma simples estória humana, e depende justamente da apreciação subjetiva e aderente do mesmo aos caracteres dogmáticos ali apresentados. Não quer ser filme, quer ser doutrina. E isto é, definitivamente, um problema!
No plano narrativo primário, “Nosso Lar” conta a história real (ou assim apresentada como tal) do médico André Luiz (Renato Prieto), que falece devido a complicações cardíacas e acorda num umbral para pecadores, onde é submetido a todo tipo de provações e sofrimentos, até ser resgatado por figuras iluminadas, que o conduzem ao recanto curativo do título, um paliativo celestial em que as almas dos falecidos aguardam o momento de reencarnarem na Terra, enquanto amadurecem seus desígnios morais e aprendem a esquecer as pendências de vidas passadas.
Se o roteiro do próprio diretor, baseado num livro comercialmente bem-sucedido psicografado pelo médium Chico Xavier, estivesse efetivamente focado nesta condução tramática, o filme seria assaz interessante e entretido, mas, no plano narrativo secundário (e dominante), frases de efeito enaltecendo o kardecismo são despejadas segundo após segundo, muitas vezes associadas a contradições gritantes e racionalmente inaceitáveis. Senão, vejamos: se as almas que estão voluntariamente confinadas no paraíso reconstituído no filme abandonam quaisquer resquícios de suas vidas anteriores, porque permanecem com seus formatos terrenos no local representado?
Se a vida na Terra é que é uma “cópia” daquele lugar, porque os hospitais precisam ser identificados com placas que indicam o número da ala em que os internos se encontram? Se, oficialmente, o conhecimento teológico é onisciente e a bondade é universalmente disseminada, qual a necessidade de tantos sub-ministérios ou de tantas minúcias burocráticas no retorno para a Terra ou na comunicação com os parentes mortos ou ainda vivos? Talvez estas respostas dependam de uma profissão de fé que transcende – e muito! – as especificidades desta resenha.
Apesar de a direção de arte ser um digno chamariz e de a trilha sonora de Philip Glass adotar os acordes ‘in crescendo’ que o tornaram célebre e atrelado a um estilo facilmente reconhecível de composição erudita, a direção do filme é frouxa, o roteiro é infiel aos seus próprios parâmetros e o elenco é ruim, não porque os atores assim também o sejam, mas porque estes mais recitam uma planilha moralizante do que efetivamente atuam, visto que eles comportam-se como se estivessem num púlpito midiático e não num cenário cinematográfico.
No que tange à demonstração destes defeitos, um exemplo singular permite a fácil constatação: quando André Luiz chega a Nosso Lar, ele é obrigado a ficar completamente dependente das respostas e admoestações concedidas pelo diligente Lísias (Fernando Alves Pinto, numa das poucas interpretações inicialmente convincentes do filme), bastante firme em suas pregações, aliás, mas, quando a mãe deste último (vivida por Ana Rosa, convincente como de costume) emigra novamente para a Terra, é ele quem depende do auxilio consolador e aconselhador de André.
Porém, vários são os clichês bem-aventurados que saturam este filme, dado que podemos enumerar também: a pletora suspeita, oportunista e não necessariamente inclusiva, de ícones religiosos na sala do Governador (Othon Bastos), a estereotipia indumentária dos judeus que chegam a Nosso Lar depois que são mortos por causa da II Guerra Mundial, a impostação supra-caridosa e xaroposa que satura os pronunciamentos vocais dos personagens e a montagem um tanto equivocada – em razão de seu pretenso julgamento avaliativo de caráter – entre os vários estágios da(s) vida(s) de André Luiz.
Para além, portanto, da modorra ou do bem-estar de recepção narrativa que este filme possa causar a diferentes tipos de espectadores, é patente no mesmo o desejo de convertê-los ao espiritismo e não somente mantê-lo entretido por 102 minutos. Ou seja, apesar de ser virtuoso em mais de um aspecto relacionado à sua própria constituição cinematográfica (fotografia, linearidade enredística, trilha sonora), “Nosso Lar” não ultrapassa seus direcionamentos hagiográficos forçosos e, como tal, soçobra esteticamente em razão de sua assunção extremada de propósitos. Pena... Mas, definitivamente, é mui válido (e carente de observação cuidadosa) enquanto tentativa!
Wesley Pereira de Castro.
sábado, 2 de outubro de 2010
O ÚLTIMO EXORCISMO ('The Lst Exorcism') EUA, 2010. Direção: Daniel Stamm
Para além de ser um filme bom ou ruim (e ele é quase unanimemente péssimo), “O Último Exorcismo” é um filme que escancara uma crise. Uma crise que, na verdade, é um somatório de várias crises globalizadas e manifesta-se no cinema enquanto estertor ideológico, tendo em “A Vila” (2004, de M. Night Shyamalan) o seu pólo positivo e neste filme mais recente o nadir decadente. Dizendo de outra forma: ambos os filmes abordam um tema similar, os questionamentos metalingüísticos acerca da necessidade que alguns indivíduos demonstram no que tange à retroalimentação de um medo sentido por algo que, oficialmente, não deve causar medo, por ser esquemático e artificial, mas, ainda assim, não somente causa como é também repassado a outrem. E, por desafiar até mesmo as convenções mais descaradas da irracionalidade, este medo estimulado com base em artifícios devidamente anunciados serve a interesses específicos de uma classe em voga ou de algum indivíduo em posição de poder, que assim visa manter a sua superioridade simbólica embasada no terror.
Se, em “A Vila”, a manutenção deste poderio simbólico estava atrelado aos anseios de uma comunidade de intelectuais traumatizados com o excesso de violência urbana que, como tal, forjam a existência de violentas entidades que circunvizinhavam o vilarejo propositalmente anacrônico em que residiam a fim de impedir que as gerações futuras desvendem a farsa utópica que engendrou a construção do reduto, em “O Último Exorcismo”, as intenções são bem menos nobres. São vergonhosamente oportunistas, aliás, tanto na forma quanto no conteúdo, o que torna imprescindível uma avaliação mais detida e, pelo caráter avassaladoramente formulaico do filme, paralelamente dispensável.
Tal qual acontecera em sucessos recentes de bilheteria como “A Bruxa de Blair” (1999, de Daniel Myrick & Eduardo Sánchez), “Mar Aberto” (2005, de Chris Kentis), “[REC]” (2007, de Jaume Balagueró & Paco Plaza) e “Atividade Paranormal” (2007, de Olen Peli), para ficar em apenas quatro exemplos conhecidos, “O Último Exorcismo” pretende extrair seu charme da simulação aterrorizante de que as imagens videográficas apresentadas enquanto filme seriam reais. Ao contrário dos quatro exemplos mais célebres, porém, “O Último Exorcismo” é uma lamentável coleção de equívocos. Para começar, a opção por ceder a “narração” do filme a um religioso que duvida de sua própria fé, transmitida para ele através de gerações, faz com que suspeitemos de imediato dos intentos anticlericais tendenciosos do roteiro, que, à medida que se aproxima do final, mostra-se mais e mais crédulo e subserviente aos ditames supersticiosos que fingiu combater no início, ao caracterizar o exorcista como sendo um homem espirituoso e com habilidades de prestidigitador, sendo que a evidenciação de alguns destes truques durante o processo de catarse psicológica das farsas exorcizantes revelam-se como alguns dos aspectos mais contraditórios e efetivamente falhos do filme. Contraditórios porque abrem espaço para o absoluto desbunde narrativo que se manifesta na meia-hora final, e efetivamente falhos porque, apesar de se mostrarem uma ótima idéia no momento em que o revoltado Caleb (Caleb Landry Jones) percebe que o reverendo Cotton Marcus (Patrick Fabian) pusera alguma substância que fez a água de uma bacia ferver quando entra em contato com os pés da suposta endemoniada Nell (Ashley Bell), chafurdam na inverossimilhança (leia-se traição) formal do próprio estilo supra-realista a que o filme pretendia se vincular. Afinal de contas, se o filme primava pela fidedignidade videográfica, para que a montagem esquemática entre causasefeitos e a execrável trilha sonora climática de Nathan Barr se dispuseram à sabotagem exibicionista constatada em cenas-chave desta obra ridiculamente desleixada? Para quê?!
Ainda que as atuações do elenco soem bastante firmes – com exceção da pusilânime Iris (Iris Bahr) – a equipe técnica de “O Último Exorcismo” recicla/plagia da pior forma possível os estratagemas já clicherosos deste tipo de produção, conforme se percebe em cenas simplesmente inverossímeis e vergonhosas como aquela em que Iris é freneticamente perseguida pela câmera quando corre no motel em que Nell repentinamente aparece ou toda a visualmente impressiva seqüência final (ponto para a fotografia de Zoltan Honti!), que imputa chavões ritualísticos/premonitórios de clássicos do cinema como “O Bebê de Rosemary” (1968, de Roman Polanski) ou “A Profecia” (1976, de Richard Donner). Além disso, a cena em que Iris doa suas botas vermelhas estilosas para a retraída Nell, a lascívia pretensamente demoníaca (e lésbica) que Nell demonstra quando surge no quarto de motel e a entrevista com “um rapaz obviamente ‘gay’”, acusado de engravidar a rapariga possuída, são mais alguns dos momentos desagradáveis e ideologicamente suspeitos deste filme ostensivamente partidário, que seja ao cúmulo de inserir o símbolo da anarquia entre os ícones satânicos que são pintados nas paredes da residência da família Sweetzer.
Em linhas gerais, portanto, “O Último Exorcismo”, francamente desinteressante enquanto cinema, revela-se (mas não necessariamente assume-se) como uma tentativa mentirosa e monetifágica de Hollywood em estrebuchar genericamente a fim de manter cativa e voluntariamente aliciada a fatia juvenil de seu público-alvo amplificado e desmemoriado no que diz respeito ao abarrotamento de fórmulas enredísticas entupidas de gritos e acordes musicais agudos, fatia de público esta que chega a se demonstrar incomodada quando é surpreendida por alguma reviravolta mais inventiva, contentando-se apenas com os sobressaltos somáticos dos sustos fáceis.
Exposta a consciência deste incômodo, fica aqui um dilema irresolvível: a culpa estaria somente nas mãos de técnicos politicamente medíocres como este tal de Daniel Stamm ou dos roteiristas Huck Botko & Andrew Gurland ou é impossível atribuir a culpa a alguém, dada a situação calamitosa do contexto aluído de produção e recepção pretensamente hipodérmica das ramificações incontroláveis do que conhecemos como Indústria Cultural? Eu que não me atrevo mais a aprisionar-me nesta falácia interrogativa de conformismo apocalíptico!
Wesley Pereira de Castro.
Se, em “A Vila”, a manutenção deste poderio simbólico estava atrelado aos anseios de uma comunidade de intelectuais traumatizados com o excesso de violência urbana que, como tal, forjam a existência de violentas entidades que circunvizinhavam o vilarejo propositalmente anacrônico em que residiam a fim de impedir que as gerações futuras desvendem a farsa utópica que engendrou a construção do reduto, em “O Último Exorcismo”, as intenções são bem menos nobres. São vergonhosamente oportunistas, aliás, tanto na forma quanto no conteúdo, o que torna imprescindível uma avaliação mais detida e, pelo caráter avassaladoramente formulaico do filme, paralelamente dispensável.
Tal qual acontecera em sucessos recentes de bilheteria como “A Bruxa de Blair” (1999, de Daniel Myrick & Eduardo Sánchez), “Mar Aberto” (2005, de Chris Kentis), “[REC]” (2007, de Jaume Balagueró & Paco Plaza) e “Atividade Paranormal” (2007, de Olen Peli), para ficar em apenas quatro exemplos conhecidos, “O Último Exorcismo” pretende extrair seu charme da simulação aterrorizante de que as imagens videográficas apresentadas enquanto filme seriam reais. Ao contrário dos quatro exemplos mais célebres, porém, “O Último Exorcismo” é uma lamentável coleção de equívocos. Para começar, a opção por ceder a “narração” do filme a um religioso que duvida de sua própria fé, transmitida para ele através de gerações, faz com que suspeitemos de imediato dos intentos anticlericais tendenciosos do roteiro, que, à medida que se aproxima do final, mostra-se mais e mais crédulo e subserviente aos ditames supersticiosos que fingiu combater no início, ao caracterizar o exorcista como sendo um homem espirituoso e com habilidades de prestidigitador, sendo que a evidenciação de alguns destes truques durante o processo de catarse psicológica das farsas exorcizantes revelam-se como alguns dos aspectos mais contraditórios e efetivamente falhos do filme. Contraditórios porque abrem espaço para o absoluto desbunde narrativo que se manifesta na meia-hora final, e efetivamente falhos porque, apesar de se mostrarem uma ótima idéia no momento em que o revoltado Caleb (Caleb Landry Jones) percebe que o reverendo Cotton Marcus (Patrick Fabian) pusera alguma substância que fez a água de uma bacia ferver quando entra em contato com os pés da suposta endemoniada Nell (Ashley Bell), chafurdam na inverossimilhança (leia-se traição) formal do próprio estilo supra-realista a que o filme pretendia se vincular. Afinal de contas, se o filme primava pela fidedignidade videográfica, para que a montagem esquemática entre causasefeitos e a execrável trilha sonora climática de Nathan Barr se dispuseram à sabotagem exibicionista constatada em cenas-chave desta obra ridiculamente desleixada? Para quê?!
Ainda que as atuações do elenco soem bastante firmes – com exceção da pusilânime Iris (Iris Bahr) – a equipe técnica de “O Último Exorcismo” recicla/plagia da pior forma possível os estratagemas já clicherosos deste tipo de produção, conforme se percebe em cenas simplesmente inverossímeis e vergonhosas como aquela em que Iris é freneticamente perseguida pela câmera quando corre no motel em que Nell repentinamente aparece ou toda a visualmente impressiva seqüência final (ponto para a fotografia de Zoltan Honti!), que imputa chavões ritualísticos/premonitórios de clássicos do cinema como “O Bebê de Rosemary” (1968, de Roman Polanski) ou “A Profecia” (1976, de Richard Donner). Além disso, a cena em que Iris doa suas botas vermelhas estilosas para a retraída Nell, a lascívia pretensamente demoníaca (e lésbica) que Nell demonstra quando surge no quarto de motel e a entrevista com “um rapaz obviamente ‘gay’”, acusado de engravidar a rapariga possuída, são mais alguns dos momentos desagradáveis e ideologicamente suspeitos deste filme ostensivamente partidário, que seja ao cúmulo de inserir o símbolo da anarquia entre os ícones satânicos que são pintados nas paredes da residência da família Sweetzer.
Em linhas gerais, portanto, “O Último Exorcismo”, francamente desinteressante enquanto cinema, revela-se (mas não necessariamente assume-se) como uma tentativa mentirosa e monetifágica de Hollywood em estrebuchar genericamente a fim de manter cativa e voluntariamente aliciada a fatia juvenil de seu público-alvo amplificado e desmemoriado no que diz respeito ao abarrotamento de fórmulas enredísticas entupidas de gritos e acordes musicais agudos, fatia de público esta que chega a se demonstrar incomodada quando é surpreendida por alguma reviravolta mais inventiva, contentando-se apenas com os sobressaltos somáticos dos sustos fáceis.
Exposta a consciência deste incômodo, fica aqui um dilema irresolvível: a culpa estaria somente nas mãos de técnicos politicamente medíocres como este tal de Daniel Stamm ou dos roteiristas Huck Botko & Andrew Gurland ou é impossível atribuir a culpa a alguém, dada a situação calamitosa do contexto aluído de produção e recepção pretensamente hipodérmica das ramificações incontroláveis do que conhecemos como Indústria Cultural? Eu que não me atrevo mais a aprisionar-me nesta falácia interrogativa de conformismo apocalíptico!
Wesley Pereira de Castro.
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terça-feira, 10 de agosto de 2010
A ORIGEM ('Inception') EUA/Inglaterra, 2010. Direção: Christopher Nolan.
A construção de um roteiro pontuado incessantemente por termos técnicos de acentuado hermetismo profissional e a adoção de uma montagem excessivamente elíptica que finge linearidade através de uma trilha sonora contínua entre seqüências passadas em ambientes espaço-temporais distintos são os dois principais estratagemas de Christopher Nolan para fisgar os espectadores, que não raro saem das sessões de seus filmes sentindo-se atordoados, tendendo a confundirem o sobejo de informações fílmicas ainda não processadas pelo cérebro e/ou pelos sentidos com a recepção de uma suposta genialidade directiva.
Neste filme, o diretor-roteirista não age diferente de como agiu noutras obras, mas o que se distingue aqui é uma maior assunção destes componentes fundamentais de seu presunçoso estilo, assunção esta que não chega a interferir na recepção estupefata daqueles que já se programaram para saírem assim da sessão. Ou seja, “A Origem” está repleto de “atos falhos” propositais, minuciosamente condizentes com o pretendido clima onírico e metalingüístico do filme, que é novamente evocado nos créditos finais, quando a canção interpretada por Edith Piaf que é convertida em “chute” para que os dormentes acordem de seus sonhos provocados é convenientemente executada, de forma a “trazer de volta à realidade” o público pagante deste filme.
Dentre os “atos falhos” supracitados, a trilha sonora de Hans Zimmer é o aspecto que mais se destaca, não necessariamente por sua qualidade musical (muito boa, como de praxe), mas por se configurar como um elemento amplamente sabotador do clima onírico, no sentido de que, até onde se sabe, não existe trilha sonora em sonhos. Assim sendo, a coesão entre imagens perpetrada pelos acordes ‘in crescendo’ de Hans Zimmer nos clímaxes do filme torna-se um elemento negativo do mesmo, deixando evidente o que ele tem de mais problemático: as cenas de ação incessante, que tendem a desperdiçar o rigor elaborativo da direção de arte, tanto no interior da diegese quanto fora dela. Em outras palavras: a entrada em cena da personagem Ariadne (interpretada com o desdém característico e convincente de Ellen Page) é deveras funcional tanto como pretexto especializado para justificar as concepções superlativas de engenharia de que o filme se vale como enquanto elemento instaurador de uma leiguice forçada por parte do espectador, que assim deslumbrar-se-á mais facilmente com o imediatismo e celeridade com que os diálogos entre a equipe do Sr. Cobb (Leonardo DiCaprio, correto apenas) serão travados.
A utilização pertinaz do termo funcional, inclusive, deixa entrever que, neste filme, o diretor e roteirista é ainda mais explícito em sua rejeição dos caracteres filosófico-existenciais possivelmente associados ao tema da extração e/ou infiltração de sonhos e fia-se no utilitarismo empregatício dos aperfeiçoamentos técnicos levados a cabo pelos personagens, o que explica o porquê da ausência de qualquer conflito ideológico, político ou moral sobre o emprego destas técnicas na disputa de interesses mercadológicos ansiada por Saito (Ken Watanabe). Convém ao Sr. Cobb apenas realizar com destreza o serviço para o qual foi contratado e ao espectador apenas desejar que ele consiga realizar o sonho de penetrar novamente nos EUA e rever seus filhos. A confusão mental indiciada pelo personagem de Cillian Murphy na cena do desembarque do avião é irrelevante para os interesses do filme.
A ausência de julgamentos morais sobre o comércio de idéias implantadas em mentes alheias denota um decréscimo qualitativo no que tange à coerência até então demonstrada pelo roteirista Christopher Nolan no que se refere à construção psicológica de seus personagens, aqui apresentados de forma mecânica, ao contrário do vigor criminal ou proto-religioso que pululava em obras interessantíssimas como “Amnésia” (2000), “Insônia” (2002) e, venhamos e convenhamos, “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008). Os únicos personagens no filme que são dotados de um rigor construtivo melhor esboçado são o transmutador Eames (Tom Hardy) e o quase onipresente Arthur (Joseph Gordon-Levitt), cujos talentos estão em flagrante competição e correspondem, sem dúvida, ao melhor atributo humano do filme. A gradual revelação da loucura de Mal (Marion Cotillard, caricata), ao contrário, é o aspecto mais clicheroso e desenxabido do roteiro, que peca ao adotar uma contestação chinfrim do conceito de realidade numa trama em que o mesmo é sublocado de forma tão potencialmente intelectual. Nesse sentido, a longa seqüência alternada entre um veículo que cai no rio em câmera lenta, a diligência de Arthur em proteger seus companheiros adormecidos de equipe num contexto agravitacional e os dois subníveis oníricos em que Cobb e Ariadne se infiltram a fim de penetrarem mais a fundo no subconsciente do milionário Robert Fischer merece encômios pelo modo como consegue fisgar o espectador (no sentido mais hitchcockiano do termo), mas, ainda assim, faz com que sejam patentes os defeitos tipicamente hollywoodianos anteriormente destacados.
Comparando-se “A Origem” com a pletora de filmes descerebrados de ação que são lançados anualmente por Hollywood, há de se convir que Christopher Nolan deve ser destacado pela sagacidade tramática e por suas habilidades firmes enquanto condutor cinematográfico, mas o que falta neste filme constitui um atestado deletério de suas intenções entreguistas, rigorosamente coadunados com os propósitos empresariais hodiernos, que ostentam de forma tão sedutora as suas realizações e assim obtêm êxito na supressão de seus rejeitos poluentes.
No caso do filme em pauta, elenco, diretor/roteirista, montador, músico e demais componentes da equipe técnica destacam-se com louvor na aplicação funcional de suas proezas pragmáticas, mas, subjacente à boa sensação de deslumbramento de sentidos que o filme instaura, ele é acrítico em relação aos questionamentos que provoca, antecipando uma nova demarcação genérica da ficção científica contemporânea [em que “Matrix” (1999, de Andy & Larry Wachowski) e “Avatar” (2009, de James Cameron) seriam os exemplos mais famosos], na qual os favorecimentos da inoculação informativa imediata de informações cerebrais seriam louvados no enfrentamento de embates falaciosos entre antagonistas incapazes de serem definidos como “maus” ou “bons”. E isto é sempre algo com que devemos não apenas nos preocupar, mas, principalmente, nos defender...
Wesley Pereira de Castro.
Neste filme, o diretor-roteirista não age diferente de como agiu noutras obras, mas o que se distingue aqui é uma maior assunção destes componentes fundamentais de seu presunçoso estilo, assunção esta que não chega a interferir na recepção estupefata daqueles que já se programaram para saírem assim da sessão. Ou seja, “A Origem” está repleto de “atos falhos” propositais, minuciosamente condizentes com o pretendido clima onírico e metalingüístico do filme, que é novamente evocado nos créditos finais, quando a canção interpretada por Edith Piaf que é convertida em “chute” para que os dormentes acordem de seus sonhos provocados é convenientemente executada, de forma a “trazer de volta à realidade” o público pagante deste filme.
Dentre os “atos falhos” supracitados, a trilha sonora de Hans Zimmer é o aspecto que mais se destaca, não necessariamente por sua qualidade musical (muito boa, como de praxe), mas por se configurar como um elemento amplamente sabotador do clima onírico, no sentido de que, até onde se sabe, não existe trilha sonora em sonhos. Assim sendo, a coesão entre imagens perpetrada pelos acordes ‘in crescendo’ de Hans Zimmer nos clímaxes do filme torna-se um elemento negativo do mesmo, deixando evidente o que ele tem de mais problemático: as cenas de ação incessante, que tendem a desperdiçar o rigor elaborativo da direção de arte, tanto no interior da diegese quanto fora dela. Em outras palavras: a entrada em cena da personagem Ariadne (interpretada com o desdém característico e convincente de Ellen Page) é deveras funcional tanto como pretexto especializado para justificar as concepções superlativas de engenharia de que o filme se vale como enquanto elemento instaurador de uma leiguice forçada por parte do espectador, que assim deslumbrar-se-á mais facilmente com o imediatismo e celeridade com que os diálogos entre a equipe do Sr. Cobb (Leonardo DiCaprio, correto apenas) serão travados.
A utilização pertinaz do termo funcional, inclusive, deixa entrever que, neste filme, o diretor e roteirista é ainda mais explícito em sua rejeição dos caracteres filosófico-existenciais possivelmente associados ao tema da extração e/ou infiltração de sonhos e fia-se no utilitarismo empregatício dos aperfeiçoamentos técnicos levados a cabo pelos personagens, o que explica o porquê da ausência de qualquer conflito ideológico, político ou moral sobre o emprego destas técnicas na disputa de interesses mercadológicos ansiada por Saito (Ken Watanabe). Convém ao Sr. Cobb apenas realizar com destreza o serviço para o qual foi contratado e ao espectador apenas desejar que ele consiga realizar o sonho de penetrar novamente nos EUA e rever seus filhos. A confusão mental indiciada pelo personagem de Cillian Murphy na cena do desembarque do avião é irrelevante para os interesses do filme.
A ausência de julgamentos morais sobre o comércio de idéias implantadas em mentes alheias denota um decréscimo qualitativo no que tange à coerência até então demonstrada pelo roteirista Christopher Nolan no que se refere à construção psicológica de seus personagens, aqui apresentados de forma mecânica, ao contrário do vigor criminal ou proto-religioso que pululava em obras interessantíssimas como “Amnésia” (2000), “Insônia” (2002) e, venhamos e convenhamos, “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008). Os únicos personagens no filme que são dotados de um rigor construtivo melhor esboçado são o transmutador Eames (Tom Hardy) e o quase onipresente Arthur (Joseph Gordon-Levitt), cujos talentos estão em flagrante competição e correspondem, sem dúvida, ao melhor atributo humano do filme. A gradual revelação da loucura de Mal (Marion Cotillard, caricata), ao contrário, é o aspecto mais clicheroso e desenxabido do roteiro, que peca ao adotar uma contestação chinfrim do conceito de realidade numa trama em que o mesmo é sublocado de forma tão potencialmente intelectual. Nesse sentido, a longa seqüência alternada entre um veículo que cai no rio em câmera lenta, a diligência de Arthur em proteger seus companheiros adormecidos de equipe num contexto agravitacional e os dois subníveis oníricos em que Cobb e Ariadne se infiltram a fim de penetrarem mais a fundo no subconsciente do milionário Robert Fischer merece encômios pelo modo como consegue fisgar o espectador (no sentido mais hitchcockiano do termo), mas, ainda assim, faz com que sejam patentes os defeitos tipicamente hollywoodianos anteriormente destacados.
Comparando-se “A Origem” com a pletora de filmes descerebrados de ação que são lançados anualmente por Hollywood, há de se convir que Christopher Nolan deve ser destacado pela sagacidade tramática e por suas habilidades firmes enquanto condutor cinematográfico, mas o que falta neste filme constitui um atestado deletério de suas intenções entreguistas, rigorosamente coadunados com os propósitos empresariais hodiernos, que ostentam de forma tão sedutora as suas realizações e assim obtêm êxito na supressão de seus rejeitos poluentes.
No caso do filme em pauta, elenco, diretor/roteirista, montador, músico e demais componentes da equipe técnica destacam-se com louvor na aplicação funcional de suas proezas pragmáticas, mas, subjacente à boa sensação de deslumbramento de sentidos que o filme instaura, ele é acrítico em relação aos questionamentos que provoca, antecipando uma nova demarcação genérica da ficção científica contemporânea [em que “Matrix” (1999, de Andy & Larry Wachowski) e “Avatar” (2009, de James Cameron) seriam os exemplos mais famosos], na qual os favorecimentos da inoculação informativa imediata de informações cerebrais seriam louvados no enfrentamento de embates falaciosos entre antagonistas incapazes de serem definidos como “maus” ou “bons”. E isto é sempre algo com que devemos não apenas nos preocupar, mas, principalmente, nos defender...
Wesley Pereira de Castro.
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sexta-feira, 25 de junho de 2010
O GOLPISTA DO ANO ('I Love You, Phillip Morris') EUA, 2009. Direção: Glenn Ficarra & John Requa
“Papai Noel às Avessas” (2003, de Terry Zwigoff), filme anteriormente roteirizado pelos diretores-roteiristas do filme ora analisado, apresenta o mesmo problema dominante que este em relação à sua apreciação receptiva/distributiva: a indefinição do tom moral que se sobrepõe à narrativa. Ou seja, se naquele filme havia um personagem voluntariamente marginalizado que, obrigado a enfrentar situações humanitariamente dignificantes, é privado pelo roteiro de sua propensão à regenerabilidade, o mesmo acontece neste filme mais recente, em que o personagem real biografado é anunciado como terminantemente confinado numa prisão durante os letreiros que antecedem os créditos finais. Entretanto, em relação ao filme dirigido por Terry Zwigoff, a estréia como diretores de Glenn Ficarra & John Requa beneficia-se de um detalhe qualitativo basilar, maravilhosamente destacado no título original do filme: a coerência emocional que permeia toda a trajetória de erros do protagonista.
Ou seja, por mais que as várias facetas de Steven Russell fossem pautadas pela execução progressiva de mentiras, conforme reclama o remetente Philip Morris, ele realmente amava este personagem e, como tal, o filme se sobressai como uma das mais inusitadas e irreverentes declarações de amor do cinema atual. O fato de esta declaração de amor ser correspondente a um romance homossexual é um detalhe brilhantemente normalizado pelo roteiro, que se beneficia de três estratégias geniais: primeiro, fazer questão de frisar que, não obstante haver uma radical mudança de comportamentos por parte do protagonista em relação à sua transmutação de marido heterossexual para golpista “bicha”, esta mudança comportamental é motivada bem mais pela assunção de uma tendência sexualista demonstrada desde a infância do que necessariamente por um pantim retratador; segundo, construir as práticas sexuais do protagonista e seus eventuais parceiros como sendo deveras naturalizadas, até mesmo em situações consideradas ofensivas para o público comum, como associar a ingestão de esperma depois de uma felação a uma declaração de afeto; e, terceiro, dissociar a estereotipia crível de alguns personagens da tendenciosa legitimação de preconceitos que pode ocorrer através do humor, visto que os roteiristas eram não somente plenamente cônscios de que isso poderia acontecer, como são plenamente fiéis à representação dos personagens, no sentido de que é plenamente sabido que a afetação exacerbada é, de fato, a característica mais perceptível na postura de alguns ‘gays’.
A inteligência sobressalente da seqüência que deixa explícito este terceiro estratagema merece uma descrição pormenorizada, em virtude não somente de seus potenciais narrativos básicos, mas também porque é a maior ferramenta discursiva contra espectadores precipitadamente acríticos que tendem a tachar o filme de “homofóbico”, quando ele opera justamente pela lógica inversa: a normalização impressionante dos comportamentos sexuais supostamente pervertidos dos personagens. Se eles são julgados como desviantes, isso se deve a rupturas legislativas bem mais amplas, que trazem novamente à tona a indefinição de tom moral destacada no início deste texto e que voltará na conclusão do mesmo.
Mas, antes, regressemos à descrição da cena que se configura como a mais importante para a interpretação discursivamente laudatória deste filme: num dado momento, o protagonista Steven Russell, já trabalhando como consultor financeiro de uma grande empresa, conta a uma secretária um chiste anedótico envolvendo um advogado qualquer que cobra uma grande quantia para que seu cliente possa-lhe fazer três perguntas, sendo este último lesado até mesmo neste direito numérico básico. Em seguida, vemos a mesma piada ser recontada por diversos outros personagens figurantes, até que, após várias versões levemente modificadas da mesma piada, vemos Steven Russell ouvir a mesma estrutura cômica que difundira ser-lhe devolvida pelo patrão com uma diferença crucial: os dois interlocutores da piada eram agora um negro e um judeu, ambos tipos humanos caracteristicamente vitimados por preconceitos humorísticos alheios. Detalhe: depois que acompanhamos este longo processo de demonstração de como o humor aparentemente inofensivo serve para ofender determinadas configurações humanas, descobrimos que a transmissão inicial desta blague tinha uma função deveras pragmática: distrair a secretária que a ouvia para que, assim, Steven Russell pudesse usurpar um carimbo que lhe seria bastante útil em suas futuras tramóias. Perfeito! Só esta cena preciosa justificaria todo o bem-estar intelectivo que o filme causa, mas ele é bem mais (e também menos) do que isso...
Como intérprete do protagonista real e inicialmente incredível em sua concepção, Jim Carrey não oferece uma atuação necessariamente ruim ou careteira (como estão a reclamar em alguns artigos). O maior problema de sua interpretação é um desgaste natural da figura do ator, que parece mais velho do que o personagem em diversos momentos, mas, mesmo assim, ele é bastante elogiável tanto nas cenas que amontoam inúmeros de seus golpes surpreendentes quanto naquelas em que ele evidencia o amor que sente por seu antigo companheiro de prisão. Rodrigo Santoro (que vive o antigo namorado aidético do protagonista, Jimmy) e Leslie Mann (que interpreta sua ex-esposa histericamente religiosa Debbie) têm desempenhos exagerados, mas também condizentes com o clima concomitantemente esquizofrênico e verossímil que permeia o filme, onde Ewan McGregor destaca-se pela construção detalhada, minuciosa e louvável do objeto frasal titular, Phillip Morris, numa atuação não somente ótima como também contrastante, no melhor sentido do termo, com a euforia reinante no enredo. A timidez de seu personagem, portanto, funciona como um bálsamo bem-vindo ao frenesi típico da presença em cena do dinâmico Jim Carrey, chegando ao píncaro da eficiência compositiva no empertigado percurso que ele enfrenta a fim de se despedir de seu namorado ao som de “To Love Somebody” (cantada na voz sofrida de Nina Simone), numa cena que emociona qualquer um que tenha se deixado levar pela sinceridade redentora do envolvimento romântico entre os dois.
Np plano técnico, portanto, direção, roteiro, trilha sonora, fotografia e montagem coligam-se muito bem no afã por divertir o público, ao mesmo tempo em que apresenta uma fábula amoral tipicamente contemporânea, realmente impressionante para ser verídica, conforme os letreiros de abertura fazem questão de frisar. Entretanto, conforme já foi anunciado, há um problema de tom geral sobre os juízos de valor destinados ao protagonista, que prejudica a sua apreensão relaxada enquanto um mero filme.
Se, por um lado, o decisivo julgamento do protagonista, aquele que o manteve peremptoriamente preso por pelos menos 23 horas diárias a uma cela, é criticado como sendo dominando por interesses vergonhosos pessoais de membros do júri, a separação física definitiva dos dois apaixonados ganha ares socialmente preventivos demasiado oportunistas, o que impede que, mais do que classificar este filme num dado gênero distributivo específico, não saibamos se ele serve mais aos ímpetos libertinos do cinema independente ou ao conservadorismo pseudo-embaçado por breves concessões temáticas que impera no dominante cinema de estúdios. Este pode parecer um problema menor – e é até interessante que assim pareça – mas limita os vôos ideológicos mais arrojados que este filme poderia alçar, mas deve-se ficar bem claro que isto não é um empecilho para o inusitado bem-estar que ele causa, tanto no plano do entretimento quanto da dignidade personalística: por mais estranho que pareça, as pessoas aqui retratadas são mostradas como reais, até mesmo em situações absurdas ou socialmente proibitivas. E, num contexto em que qualquer simples ato cômico pode retroalimentar um preconceito, isto é digno de menção elogiosa extra-filmica!
Wesley Pereira de Castro.
Ou seja, por mais que as várias facetas de Steven Russell fossem pautadas pela execução progressiva de mentiras, conforme reclama o remetente Philip Morris, ele realmente amava este personagem e, como tal, o filme se sobressai como uma das mais inusitadas e irreverentes declarações de amor do cinema atual. O fato de esta declaração de amor ser correspondente a um romance homossexual é um detalhe brilhantemente normalizado pelo roteiro, que se beneficia de três estratégias geniais: primeiro, fazer questão de frisar que, não obstante haver uma radical mudança de comportamentos por parte do protagonista em relação à sua transmutação de marido heterossexual para golpista “bicha”, esta mudança comportamental é motivada bem mais pela assunção de uma tendência sexualista demonstrada desde a infância do que necessariamente por um pantim retratador; segundo, construir as práticas sexuais do protagonista e seus eventuais parceiros como sendo deveras naturalizadas, até mesmo em situações consideradas ofensivas para o público comum, como associar a ingestão de esperma depois de uma felação a uma declaração de afeto; e, terceiro, dissociar a estereotipia crível de alguns personagens da tendenciosa legitimação de preconceitos que pode ocorrer através do humor, visto que os roteiristas eram não somente plenamente cônscios de que isso poderia acontecer, como são plenamente fiéis à representação dos personagens, no sentido de que é plenamente sabido que a afetação exacerbada é, de fato, a característica mais perceptível na postura de alguns ‘gays’.
A inteligência sobressalente da seqüência que deixa explícito este terceiro estratagema merece uma descrição pormenorizada, em virtude não somente de seus potenciais narrativos básicos, mas também porque é a maior ferramenta discursiva contra espectadores precipitadamente acríticos que tendem a tachar o filme de “homofóbico”, quando ele opera justamente pela lógica inversa: a normalização impressionante dos comportamentos sexuais supostamente pervertidos dos personagens. Se eles são julgados como desviantes, isso se deve a rupturas legislativas bem mais amplas, que trazem novamente à tona a indefinição de tom moral destacada no início deste texto e que voltará na conclusão do mesmo.
Mas, antes, regressemos à descrição da cena que se configura como a mais importante para a interpretação discursivamente laudatória deste filme: num dado momento, o protagonista Steven Russell, já trabalhando como consultor financeiro de uma grande empresa, conta a uma secretária um chiste anedótico envolvendo um advogado qualquer que cobra uma grande quantia para que seu cliente possa-lhe fazer três perguntas, sendo este último lesado até mesmo neste direito numérico básico. Em seguida, vemos a mesma piada ser recontada por diversos outros personagens figurantes, até que, após várias versões levemente modificadas da mesma piada, vemos Steven Russell ouvir a mesma estrutura cômica que difundira ser-lhe devolvida pelo patrão com uma diferença crucial: os dois interlocutores da piada eram agora um negro e um judeu, ambos tipos humanos caracteristicamente vitimados por preconceitos humorísticos alheios. Detalhe: depois que acompanhamos este longo processo de demonstração de como o humor aparentemente inofensivo serve para ofender determinadas configurações humanas, descobrimos que a transmissão inicial desta blague tinha uma função deveras pragmática: distrair a secretária que a ouvia para que, assim, Steven Russell pudesse usurpar um carimbo que lhe seria bastante útil em suas futuras tramóias. Perfeito! Só esta cena preciosa justificaria todo o bem-estar intelectivo que o filme causa, mas ele é bem mais (e também menos) do que isso...
Como intérprete do protagonista real e inicialmente incredível em sua concepção, Jim Carrey não oferece uma atuação necessariamente ruim ou careteira (como estão a reclamar em alguns artigos). O maior problema de sua interpretação é um desgaste natural da figura do ator, que parece mais velho do que o personagem em diversos momentos, mas, mesmo assim, ele é bastante elogiável tanto nas cenas que amontoam inúmeros de seus golpes surpreendentes quanto naquelas em que ele evidencia o amor que sente por seu antigo companheiro de prisão. Rodrigo Santoro (que vive o antigo namorado aidético do protagonista, Jimmy) e Leslie Mann (que interpreta sua ex-esposa histericamente religiosa Debbie) têm desempenhos exagerados, mas também condizentes com o clima concomitantemente esquizofrênico e verossímil que permeia o filme, onde Ewan McGregor destaca-se pela construção detalhada, minuciosa e louvável do objeto frasal titular, Phillip Morris, numa atuação não somente ótima como também contrastante, no melhor sentido do termo, com a euforia reinante no enredo. A timidez de seu personagem, portanto, funciona como um bálsamo bem-vindo ao frenesi típico da presença em cena do dinâmico Jim Carrey, chegando ao píncaro da eficiência compositiva no empertigado percurso que ele enfrenta a fim de se despedir de seu namorado ao som de “To Love Somebody” (cantada na voz sofrida de Nina Simone), numa cena que emociona qualquer um que tenha se deixado levar pela sinceridade redentora do envolvimento romântico entre os dois.
Np plano técnico, portanto, direção, roteiro, trilha sonora, fotografia e montagem coligam-se muito bem no afã por divertir o público, ao mesmo tempo em que apresenta uma fábula amoral tipicamente contemporânea, realmente impressionante para ser verídica, conforme os letreiros de abertura fazem questão de frisar. Entretanto, conforme já foi anunciado, há um problema de tom geral sobre os juízos de valor destinados ao protagonista, que prejudica a sua apreensão relaxada enquanto um mero filme.
Se, por um lado, o decisivo julgamento do protagonista, aquele que o manteve peremptoriamente preso por pelos menos 23 horas diárias a uma cela, é criticado como sendo dominando por interesses vergonhosos pessoais de membros do júri, a separação física definitiva dos dois apaixonados ganha ares socialmente preventivos demasiado oportunistas, o que impede que, mais do que classificar este filme num dado gênero distributivo específico, não saibamos se ele serve mais aos ímpetos libertinos do cinema independente ou ao conservadorismo pseudo-embaçado por breves concessões temáticas que impera no dominante cinema de estúdios. Este pode parecer um problema menor – e é até interessante que assim pareça – mas limita os vôos ideológicos mais arrojados que este filme poderia alçar, mas deve-se ficar bem claro que isto não é um empecilho para o inusitado bem-estar que ele causa, tanto no plano do entretimento quanto da dignidade personalística: por mais estranho que pareça, as pessoas aqui retratadas são mostradas como reais, até mesmo em situações absurdas ou socialmente proibitivas. E, num contexto em que qualquer simples ato cômico pode retroalimentar um preconceito, isto é digno de menção elogiosa extra-filmica!
Wesley Pereira de Castro.
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domingo, 20 de junho de 2010
O ESCRITOR FANTASMA ('The Ghost Writer' - Alemanha/França/Inglaterra, 2010) Direção: Roman Polasnki
Num dos primeiros encontros que trava com o personagem real que ajudará a autobiografar, o protagonista afirma que, em sua narração, este deve destacar os fatos mais românticos de sua vida, visto que “os leitores se identificam com situações que evocam o coração”. Ao se pensar na biografia do diretor Roman Polanski, esta dramaticidade pretendida não tem como ficar em segundo plano: perseguido pelos nazistas durante a infância, testemunha do assassinato público de sua esposa grávida em 1969, acusado de pedofilia no final da década de 1970 e preso na Suíça em 2009 por este mesmo crime do passado, a vida pessoal do diretor polonês é sempre permeada pela polêmica e pela necessidade de fuga, o que explica os temas recorrentes do confinamento ostensivo e da claustrofobia instituída em sua obra absolutamente autoral.
Cada um de seus filmes, seja ele de qualquer gênero ou produzido em qualquer época, traz no bojo um protagonista perseguido pela culpa, não necessariamente comprovada, que, como tal, precisa executar medidas extremas para declarar sua inocência ou permanecer íntegro diante de situações-limite. No filme ora analisado, muito superior em qualidade e autenticidade ao longa-metragem anterior do diretor [“Oliver Twist” (2005)], o que mais surpreende é como o roteiro, escrito pelo próprio diretor e por Robert Harris (autor do livro que deu origem ao filme), mescla com sagacidade denuncista elementos que já foram trabalhados em obras como “O Inquilino” (1976), “Busca Frenética” (1988) e “O Último Portal” (1999), a fim de metaforizar emoções persecutórias que têm a ver com o mal-estar público do cineasta. Nesse sentido, as opressões xenofóbicas tangenciais, o perene desconforto advindo da constatação de que não se pode mais confiar em ninguém e as ambíguas exigências profissionais da carreira de escritor são circunstâncias fílmicas que só dignificam esta obra, asfixiante ao extremo, que deposita no espectador uma impressão de desconforto pretendido tão eficaz quanto aquela que pulula nas obras-primas literárias escritas pelo tcheco Franz Kafka. Comparando-se, portanto, os componentes tramáticos do filme com as fortes divergências hermenêuticas envolvendo o julgamento do diretor acerca do crime que cometera há mais de 30 anos, não tem como não se perguntar: diante dos interesses oportunistas de políticos corruptos e influentes, ainda é possível depositar confiança nas representações estatais de poder?
No plano directivo, Roman Polanski é digno de elogios pela agilidade que instaura no ritmo frenético do filme, de maneira que, se por vezes ele parece mais extenso do que os 128 minutos de sua duração, isso se dá justamente pelo efeito bem-sucedido de dilatação temporal decorrente da sensação de perseguição que acomete o protagonista durante toda a sua estada na ilha em que se passa o enredo, sensação esta que manifesta-se tanto no coincidente disparar de alarmes na cena em que o protagonista tenta descobrir a senha que protege o conteúdo de um arquivo de computador quanto na observação dos automóveis à espreita quando ele se locomove de um local para outro, passando também pelos estranhos contatos que ele trava com a população local, como os empregados chineses da residência de seu patrão britânico, a atendente solitária do hotel em que se instala e o velhinho (magnificamente interpretado pelo lendário Eli Wallach) que lhe confessa as incongruências de um assassinato encoberto sabe-se lá por quem.
O único desvio rítmico digno de destaque no filme diz respeito justamente ao final, que parece um tanto precipitado, tamanha a cautela com que foram construídos os eventos prévios à sua execução. Algo soa forçado na bazófia vingativa do protagonista quando este escreve um bilhete para Ruth Lang (Olivia Williams, muito mais imponente do que de costume), anunciando que descobrira um importante acróstico preparado por seu antecessor empregatício, e logo é atropelado quando tentava fugir com o manuscrito original das memórias do ex-primeiro-ministro inglês, a fim de descobrir novos mistérios escondidos em códigos de escrita naquelas páginas. Talvez o filme não precisasse desta cena de impacto fácil para se manter significativo em seu potencial de suspense, como efetivamente já o fazia até então. Mas, venhamos e convenhamos, até este é um mal menor.
No plano técnico, merecem destaque a extraordinária trilha sonora de Alexandre Desplat, que pontua muito bem o estado contínuo de aflição do protagonista, e a direção de fotografia eficiente do colaborador habitual dos filmes recentes do cineasta, Pawel Edelman. Encabeçando o elenco, Ewan McGregor oferece uma atuação contida muito condizente com os anseios de discrição do personagem, enquanto Pierce Brosnan desempenha o seu papel com perdoável estardalhaço, Kim Cattrall o faz com firmeza engenhosidade de coadjuvante e Tom Wilkinson impõe-se nos poucos minutos em que contracena como o enigmático professor universitário Paul Emmett. Algumas das cenas mais intrigantes do filme, porém, dão-se entre o protagonista e Olivia Williams(que interpreta a esposa do ex-primeiro-ministro), personagens que fazem sexo num contexto atribulado e muito tenso, depois de travarem um contundente diálogo em que, quando ele pergunta a ela porque a mesma nunca foi uma candidata política de verdade, ela retruca, imponentemente: “e tu, por que nunca foste um escritor de verdade?”. A ele, só resta apenas emitir uma interjeição de descontentamento impotente e permitir que a mesma divida a cama com ele.
Analisando-se o filme como portador de mensagens subliminares em relação às insatisfações do diretor e de seus fãs ao modo como são conduzidos os inquéritos de acusação contra ele, pode-se dizer que o mesmo é deveras exitoso em seus intentos. Não somente “O Escritor Fantasma” diverte bastante enquanto ‘thriller’ e enquanto filme político, como o mesmo pode ser interpretado por vários vieses para quem conhece a fundo as idiossincrasias e obsessões temáticas do seu realizador, que, conforme visto, sabe lidar muito bem, no plano artístico, com a tragicidade ostensiva de sua vida real. As divergências de princípios morais entre o protagonista e seus empregadores numa das seqüências iniciais, o mistério crescente das motivações políticas dos personagens que transitam em torno do ex-primeiro-ministro Jack Lang (Pierce Brosnan), a própria assunção do mesmo em relação aos crimes de guerra que cometera e as tramóias militares que emergem à medida que a trama se desenvolve são elementos que deixam a nu os intentos questionadores e críticos do filme, que vão muito além de sua argúcia genérica no patamar cinematográfico, o que, seja dito novamente, o filme faz com presteza admirável. Tanto é que só se percebe que o protagonista é inomeado depois que o filme acaba e ele supostamente está morto.
No auge de seus 76 anos de idade e enfrentando fortes restrições no seu direito de ir e vir, Roman Polanski, realiza, portanto, um arrojado filme de autor no costumeiramente formulaico panorama anglofílico hodierno de cinema. Que venham outros!
Wesley Pereira de Castro.
Cada um de seus filmes, seja ele de qualquer gênero ou produzido em qualquer época, traz no bojo um protagonista perseguido pela culpa, não necessariamente comprovada, que, como tal, precisa executar medidas extremas para declarar sua inocência ou permanecer íntegro diante de situações-limite. No filme ora analisado, muito superior em qualidade e autenticidade ao longa-metragem anterior do diretor [“Oliver Twist” (2005)], o que mais surpreende é como o roteiro, escrito pelo próprio diretor e por Robert Harris (autor do livro que deu origem ao filme), mescla com sagacidade denuncista elementos que já foram trabalhados em obras como “O Inquilino” (1976), “Busca Frenética” (1988) e “O Último Portal” (1999), a fim de metaforizar emoções persecutórias que têm a ver com o mal-estar público do cineasta. Nesse sentido, as opressões xenofóbicas tangenciais, o perene desconforto advindo da constatação de que não se pode mais confiar em ninguém e as ambíguas exigências profissionais da carreira de escritor são circunstâncias fílmicas que só dignificam esta obra, asfixiante ao extremo, que deposita no espectador uma impressão de desconforto pretendido tão eficaz quanto aquela que pulula nas obras-primas literárias escritas pelo tcheco Franz Kafka. Comparando-se, portanto, os componentes tramáticos do filme com as fortes divergências hermenêuticas envolvendo o julgamento do diretor acerca do crime que cometera há mais de 30 anos, não tem como não se perguntar: diante dos interesses oportunistas de políticos corruptos e influentes, ainda é possível depositar confiança nas representações estatais de poder?
No plano directivo, Roman Polanski é digno de elogios pela agilidade que instaura no ritmo frenético do filme, de maneira que, se por vezes ele parece mais extenso do que os 128 minutos de sua duração, isso se dá justamente pelo efeito bem-sucedido de dilatação temporal decorrente da sensação de perseguição que acomete o protagonista durante toda a sua estada na ilha em que se passa o enredo, sensação esta que manifesta-se tanto no coincidente disparar de alarmes na cena em que o protagonista tenta descobrir a senha que protege o conteúdo de um arquivo de computador quanto na observação dos automóveis à espreita quando ele se locomove de um local para outro, passando também pelos estranhos contatos que ele trava com a população local, como os empregados chineses da residência de seu patrão britânico, a atendente solitária do hotel em que se instala e o velhinho (magnificamente interpretado pelo lendário Eli Wallach) que lhe confessa as incongruências de um assassinato encoberto sabe-se lá por quem.
O único desvio rítmico digno de destaque no filme diz respeito justamente ao final, que parece um tanto precipitado, tamanha a cautela com que foram construídos os eventos prévios à sua execução. Algo soa forçado na bazófia vingativa do protagonista quando este escreve um bilhete para Ruth Lang (Olivia Williams, muito mais imponente do que de costume), anunciando que descobrira um importante acróstico preparado por seu antecessor empregatício, e logo é atropelado quando tentava fugir com o manuscrito original das memórias do ex-primeiro-ministro inglês, a fim de descobrir novos mistérios escondidos em códigos de escrita naquelas páginas. Talvez o filme não precisasse desta cena de impacto fácil para se manter significativo em seu potencial de suspense, como efetivamente já o fazia até então. Mas, venhamos e convenhamos, até este é um mal menor.
No plano técnico, merecem destaque a extraordinária trilha sonora de Alexandre Desplat, que pontua muito bem o estado contínuo de aflição do protagonista, e a direção de fotografia eficiente do colaborador habitual dos filmes recentes do cineasta, Pawel Edelman. Encabeçando o elenco, Ewan McGregor oferece uma atuação contida muito condizente com os anseios de discrição do personagem, enquanto Pierce Brosnan desempenha o seu papel com perdoável estardalhaço, Kim Cattrall o faz com firmeza engenhosidade de coadjuvante e Tom Wilkinson impõe-se nos poucos minutos em que contracena como o enigmático professor universitário Paul Emmett. Algumas das cenas mais intrigantes do filme, porém, dão-se entre o protagonista e Olivia Williams(que interpreta a esposa do ex-primeiro-ministro), personagens que fazem sexo num contexto atribulado e muito tenso, depois de travarem um contundente diálogo em que, quando ele pergunta a ela porque a mesma nunca foi uma candidata política de verdade, ela retruca, imponentemente: “e tu, por que nunca foste um escritor de verdade?”. A ele, só resta apenas emitir uma interjeição de descontentamento impotente e permitir que a mesma divida a cama com ele.
Analisando-se o filme como portador de mensagens subliminares em relação às insatisfações do diretor e de seus fãs ao modo como são conduzidos os inquéritos de acusação contra ele, pode-se dizer que o mesmo é deveras exitoso em seus intentos. Não somente “O Escritor Fantasma” diverte bastante enquanto ‘thriller’ e enquanto filme político, como o mesmo pode ser interpretado por vários vieses para quem conhece a fundo as idiossincrasias e obsessões temáticas do seu realizador, que, conforme visto, sabe lidar muito bem, no plano artístico, com a tragicidade ostensiva de sua vida real. As divergências de princípios morais entre o protagonista e seus empregadores numa das seqüências iniciais, o mistério crescente das motivações políticas dos personagens que transitam em torno do ex-primeiro-ministro Jack Lang (Pierce Brosnan), a própria assunção do mesmo em relação aos crimes de guerra que cometera e as tramóias militares que emergem à medida que a trama se desenvolve são elementos que deixam a nu os intentos questionadores e críticos do filme, que vão muito além de sua argúcia genérica no patamar cinematográfico, o que, seja dito novamente, o filme faz com presteza admirável. Tanto é que só se percebe que o protagonista é inomeado depois que o filme acaba e ele supostamente está morto.
No auge de seus 76 anos de idade e enfrentando fortes restrições no seu direito de ir e vir, Roman Polanski, realiza, portanto, um arrojado filme de autor no costumeiramente formulaico panorama anglofílico hodierno de cinema. Que venham outros!
Wesley Pereira de Castro.
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