sábado, 31 de outubro de 2020

A ESTAÇÃO DE TREM (2000, de Sergei Loznitsa)


 

Para quem já testemunhara a crueza estilística deste diretor no longa-metragem ficcional de estréia "Minha Felicidade" (2010) ou no ótimo episódio que se destaca em "As Pontes de Sarajevo" (2014), regressar às suas raízes documentais é uma tarefa imperativa. O modo como ele capta a beleza dos pequenos instantes nos intervalos das rotinas atribuladas de trabalho faz com que redimensionemos o flagrante pessimismo de suas obras mais recentes. Porém, as chagas desoladoras do cotidiano sempre estiveram lá!




Conferir "A Estação de Trem" após ter dormido mal é uma tarefa inglória porém sintomática: os vinte e quatro minutos de duração parecem durar bem mais. E o sono que induz não é letárgico, mas denuncista, fatalista. Uma tentação perigosa em relação a um descanso interditado: o sono surge como epítome da exaustão, nas esperas imensas em não-lugares de encontro, como alguns catalogam sociologicamente o cenário explicitado desde o título.




No curta-metragem, fotografado e montado como uma versão ‘flou’ de alguma produção do Chris Marker [1921-2012], vemos várias pessoas dormindo enquanto esperam os seus respectivos trens. Camponeses, em sua maioria. Trabalhadores. Malfadados herdeiros da dissolução trágica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Não obstante ter nascido na Bielo-Rússia, foi na Ucrânia que o diretor se estabeleceu. No filme, é toda uma nação que dorme, provisoriamente inativa, após a dilaceração de jornadas sucessivas de labuta, enquanto aguarda o veículo que os conduzirá a outro lugar, outro momento histórico. Insetos zuem, enquanto as locomotivas não aproximam-se. A imobilidade acabará nalgum momento? O despertar individual corresponde a um levante nacional? Quem sabe algumas respostas sejam encontradas nos curtas-metragens posteriores do diretor…



Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP 2020: AS VEIAS DO MUNDO (2020, de Byambasuren Davaa)


     Apesar de filmado numa região inóspita da Mongólia, o que mais chama a atenção nesta obra mui singela é a naturalidade com que aborda um tema caro às filmografias orientais, o conflito entre tradição e modernidade assimétrica. Sem precisar recorrer aos discursos politicamente redundantes, a diretora atinge méritos altissonantes em sua profissão mui orgânica de valores ecológicos: no desfecho, a canção que justifica o título do filme emociona-nos sobremaneira. Há uma denúncia contundente sendo realizada, em meio ao estratagema da simples estória de amadurecimento filial... 


    O protagonista do filme é um garotinho de doze anos de idade, magnificamente vivido pelo carismático Bat-Ireedui Batmunkh: chamado Amra, seu cotidiano é bastante parecido com os de seus colegas de escola. Vive numa região rural, com uma família de origem nômade. Passa boa parte do tempo brincando com seu telefone celular, o que faz com que temam que ele fique com a "vista quadrada". Sua mãe prepara queijos e seu pai envolve-se comumente em querelas contra a exploração mineradora na planície onde habita. O sonho de Amra é participar de um concurso local de talentos. Até que ele obtenha êxito, novos desafios surgirão... 


    O roteiro destaca-se pela naturalidade com que aborda as situações: a rotina da família Erdene, as reuniões de moradores, as atividades escolares, tudo isso é apresentado de maneira cúmplice, como se a diretora não apenas fizesse parte daquele contexto rural, mas fizesse questão de compartilhar aquela quietude conosco, a fim de que militemos conjuntamente contra a destruição ambiental perpetrada pela exploração capitalista. A letra da canção que Amra canta, em homenagem ao seu pai, é exemplar neste sentido: insiste que "o ouro só traz sofrimento". As veias do mundo seguem abertas! 


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

SOL ALEGRIA (2018, de Tavinho Teixeira & Mariah Teixeira)


 

      Numa das cenas iniciais, uma locução radiofônica apresenta-nos à voz do pastor Tirésias, figura política recém-eleita na distopia brasileira viajada através do filme. Quando o protagonista – interpretado pelo co-diretor – consegue reunir todos os membros de sua família marginal, o político evangélico é assassinado, numa tentativa corrupta de viagem aérea. Aparece o logotipo titular da obra, enquanto os seus personagens fogem alucinados pelas paisagens paraibanas. O principal refúgio é um convento assaz heterodoxo, onde cultiva-se maconha e energia anal. Estão alicerçados os parâmetros discursivos de um dos filmes brasileiros mais anárquicos dos últimos tempos.


    Emulando bastante o cinema brasileiro setentista – apelidado justamente de “cinema marginal” ou “pós-novo” - este filme posiciona-se frontalmente contra os determinismos conservadores que instalaram-se hodiernamente no cenário político do Brasil. Com a ascensão da direita ao poder, as ameaças de censura cultural reinstalam o pavor associado à ditadura militar que erigiu-se através de um golpe de Estado, em 1964. Um forte moralismo convertido em justificativa-chave para emendas legislativas faz com que o cenário político brasileiro esteja atualmente regido pelo signo do regresso, do atraso, da condenação traiçoeira destinada a qualquer manifestação de originalidade subversiva. E é contra tudo isso que o cineasta paraibano Tavinho Teixeira investe vigorosamente.



           Por motivos óbvios, este filme é abundante em cenas de nudez e sexualidade incontida. Desafia ostensivamente os clamores censórios hodiernos e possui ecos paródicos de inúmeras obras cinematográficas, musicais e televisivas. Como é praxe na curta mas eloqüente filmografia teixeiriana, as referências metalingüísticas são exacerbadas, bem como as homenagens discursivas: impossível não pensar no clássico espanhol “Maus Hábitos” (1983, de Pedro Almodóvar). Mas as intenções do brasileiro são diferentes: o inimigo que ele expõe está imponentemente vivo nos tempos atuais, e beneficia-se absurdamente das brechas de atenção desencadeadas pelo agendamento jornalístico. A obnubilação pretendida pelo acúmulo de impropérios presidenciais tem a ver com as medidas de protofascismo aprovadas sorrateiramente. E, com isso, o meio ambiente, a previdência social e os preceitos educacionais são devastados enquanto discutimos sobre a vilania intrínseca ao conservadorismo neo-ditatorial. Tempos difíceis nós vivemos!


    Voltando a “Sol Alegria”: no afã por deixar em aberto o elogio a este filmaço: desenhado como um “filme de estrada”, não há necessariamente uma trama, mas um percurso. O pai (interpretado pelo próprio Tavinho Teixeira) apresenta-se de maneira circense como um ex-fascista, como um “cidadão de bem” de outrora, agora liberto de seus ditames persecutórios; a mãe (Joana Medeiros) é uma ativista que entoa celebremente versos da cantora argentina Mercedes Sosa; o filho (Mauro Soares) aparece nu ao longo de quase todo o filme, veste uma jaqueta de couro à la Kenneth Anger, e confronta o pai em pleno espetáculo de assunção de princípios; a filha (interpretada por Mariah Teixeira, co-diretora e filha do diretor na vida real) é descrita como “a última mulher fértil do mundo”; e, além destes, há um agregado de nome Toreba (interpretado por um ator com a mesma alcunha), frenético e efusivo, espécie de mentor espiritual da família em pauta. Seus interesses: a deflagração de um caos que restaure a ordem da liberdade de expressão. O maior empecilho: a surrupiação distributiva que o filme vem sofrendo. Nossa missão, enquanto espectadores críticos: divulgar a pujança emergencial desta obra de puro alvitre revolucionário. Imperfeito sim, mas radicalmente contrário à hipocrisia dos Aparelhos Ideológicos de Estado!



Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP: #EAGORAOQUE (2020, de Rubens Rewald & Jean-Claude Bernardet)


 

     No auge de seus 83 anos de idade, o crítico Jean-Claude Bernardet hoje prefere atuar em filmes que escrever sobre eles. Em razão de uma acentuada perda da visão, ele precisou redefinir a sua relação com o cinema. Apesar de compartilhar a direção do filme com Rubens Rewald e de utilizar seu próprio nome no filme, não interpreta a si próprio, mas a uma caricatura de si mesmo. Idem para o filósofo Vladimir Safatle, que chega a utilizar imagens suas em entrevistas antigas e canta e discute ao lado de sua filha, Valentina Ghiorzi. Ele também se auto-interpreta sob o signo da caricatura, quase como se estivesse a zombar de sua tendência à retórica política…



    Construído de maneira excessivamente fragmentada, como se fosse uma retrospectiva televisiva de final de ano, este filme deixa evidente a sua ironia autocrítica desde o título, onde insere uma “hashtag” pré-interrogativa, demarcando o que pode ser compreendido como uma audiência de “bolha”. Nas vinhetas que compõem o filme, a pergunta titular surge em distintos contextos, como indicativo de ausência de uma resolução concreta para os problemas apresentados. Conforme lido num artigo de jornal, no início do filme, “a esquerda só sabe reagir, e não propor”. Os diferentes embates do personagem de Vladimir Safatle, ao longo da narrativa, comprovam esta falibilidade estrutural do pensamento acadêmico: ele evita responder a uma pergunta do saudoso provocador Antônio Abujmara [1932-2015], quando é-lhe questionado se ele “fala a língua do povo”; queda paralisado na representação de uma discussão de interesses com o pernambucano Valmir do Côco; e tem as suas boas intenções organizacionais dispensadas enquanto signo histórico da colonização branca, num debate com os militantes de uma favela paulistana.



    Bastante barato, de termos de orçamento, o filme possui seqüências comprometidas por questões de direitos autorais, no caso de um vindouro lançamento cinematográfico: o personagem Vladimir é interpelado numa peça teatral de José Celso Martinez Corrêa e possui um rol gigantesco de coadjuvantes importantes, que vai de Mano Brown a Carmem Silva e Guilherme Boulos, em imagens de arquivo. A atriz negra Palomaris Martins surge como um terceiro vértice do elenco, no papel da gerente de um banco comunitário, que realiza empréstimos aos moradores usando uma moeda específica, o Sampaio. Insistindo que há, sim, a possibilidade de concatenar empreendedorismo e comunidade, ela é mais uma das personagens a realizar o questionamento titular ao personagem safatleano. O filme, portanto, não se propõe a responder nada, mas justamente ao viés contrário: acumula perguntas, assumindo o caráter de chiste discursivamente masturbatório.



    Há cenas de relativo impacto, como quando Bernardet corta o próprio peito com uma faca e depois exibe-se para a sua empregada doméstica, numa conversa sobre o alto preço dos produtos alimentícios; o recital de uma canção de Patti Smith por Safatle e sua filha; e o momento em que Bernardet canta a “Internacional Socialista” durante o banho. Mas é um filme que apenas gira em torno de si mesmo, como muitas das reuniões políticas hodiernas. Cumpre a sua função enquanto exacerbação metalingüística, portanto.  



Wesley Pereira de Castro. 


* Mostra SP 2020: DIAS (2020, de Tsai Ming-Liang)


     Conhecido por suas obsessões em relação à incomunicabilidade humana, o cineasta malaio Tsai Ming-Liang concebe um dos maiores paradoxos em relação ao tema, no filme que estende suas marcas registradas a píncaros extremados: apesar de suas mais de duas horas de duração, "Dias" foi lançado internacionalmente sem legendas, visto que, para fins publicitários, é um filme sem diálogos. Porém, é justamente o filme do diretor em que seus personagens mais conversam, mais interagem positivamente...



    Na trama que se descortina mui lentamente, há apenas dois personagens: o recorrente Hsiao-Kang (interpretado por Lee Kang-Sheng, que protagoniza os filmes do diretor há décadas) e o belo garoto de programa Non (vivido pelo estreante laosense Anong Houngheuangsy). O segundo é um imigrante que sobrevive fazendo massagens eróticas para homens solitários; o primeiro, é um homem que envelheceu diante das câmeras, nos diversos filmes do diretor. Aqui, ele está às voltas com a dor no pescoço que o aflige desde "O Rio" (1997). Agora, lida com os seus anseios homossexuais com mais sobriedade, ainda que isso o angustie bastante. 



    O encontro entre os mencionados personagens dá-se após seqüências minuciosamente delineadas, vinhetas cinematográficas que expõem o cotidiano silencioso de ambos os homens: o mais jovem deles aprecia cozinhar, sendo muito higiênico quanto à lavagem dos vegetais que adquire, bem como em relação à limpeza de seu próprio corpo; o mais velho esforça-se para conter uma dor que progride para todos os órgãos. Numa mui demorada sessão de massagem, Hsiao-Kang e Non transam, mediante pagamento. Mas isso não oblitera a possibilidade de diálogo entre eles. Abraçam-se. Comem juntos. Pensam um no outro. Mas a tristeza pós-coito é implacável! 



    No primeiro enquadramento, o elemento central de toda a filmografia ming-lianguiana é abundante: a presença da água. Enquanto contempla a chuva torrencial, Hsiao-Kang deixa um copo cheio de água ao seu lado. Noutro lugar, Non lava coentro, alface e cebolinhas em seu banheiro, onde a água é também onipresente. Para quem já admirava o cinema deste diretor, encontra aqui o supra-sumo de seus interesses, a quintessência de suas persecuções. Uma obra-prima, em suma. 




    Intencionalmente vagaroso, "Dias" não tematiza o enfado. Pelo contrário, aliás: nas seqüências longas, pausadas e cotidianas, há muito a ser visto e (re)interpretado a partir dos rituais diuturnos levados a cabo pelos personagens, no enfrentamento de seus abandonos hodiernos. Não se sabe o que eles estão fazendo na Tailândia, mas compreende-se em seus silêncios o desamparo que é sentido por eles. A confluência entre eles é desejada, em múltiplos sentidos - conforme já aconteceu em várias obras do diretor, permeadas pelo erotismo inaudito. Este filme, portanto, torna-se, entre múltiplos aspectos, uma reflexão magnânima sobre a velhice. Trata-se de uma obra-prima, insistimos! 



Wesley Pereira de Castro. 



terça-feira, 27 de outubro de 2020

TARTUFO (1925, de F. W. Murnau)


 

Dentre os cineastas expressionistas, F. W. Murnau [1888-1931] destacava-se pelo modo como conciliava os enredos lúgubres, característicos da situação do país à época, com a inventividade formal concernente ao movimento enquanto vanguarda artística. Sendo assim, ele atinge êxito ao transmutar a pujança anti-hipócrita da peça original de Molière através de soluções visuais bastante pertinentes, como sombras que deambulam através de espaços diversificados, graças à fotografia tipicamente contrastada de Karl Freund.



Numa determinada seqüência, uma mulher seduzida pergunta ao personagem-título: “é pecado o que estamos fazendo?”. Ao que ele responde: quando se peca escondido, não se peca de fato”. Com isto, fica evidente o quanto ele beneficia-se dos engodos levados a cabo por falsos puritanos que anseiam por usurpar as fortunas (materiais ou não) das pessoas que se submetem à sua influência...



De acordo com o exegeta Siegfried Kracauer, o filme era também “tartufiano”, pois mantinha em estado de deleite “uma platéia ansiosa para manter intocado o que estava escondido”. Por isso, ele considerava desnecessária a estória-moldura contemporânea, em que vemos um velhinho ser explorado e lentamente envenenando por sua cobiçosa governanta. Porém, ela justifica o questionamento ousadamente direcionado ao espectador, num intertítulo: “tu sabes quem está ao teu lado?”.



Conforme demonstram filme e peça, os “tartufos” estão em todos os lugares, a maioria deles ocupando cargos políticos que autorizam que suas deformações ideológicas sejam perpetuadas ao longo dos tempos e tão aceitas quanto a limpeza equivocada que o velho interpretado por Hermann Picha cria encontrar em sua casa...



Wesley Pereira de Castro. 

FAZ SOL LÁ SIM (2018, de Claufe Rodrigues)

 

Ainda nas seqüências iniciais, quando o documentário apresenta-nos ao município alagoano de Marechal Deodoro, alguns depoimentos chamam a nossa atenção: num deles, um senhor comenta que em cada rua da cidade há pelo menos um músico; noutro, dois atores compartilham uma tradição local. Segundo eles, quando nasce uma criança na redondeza, os pais jogam um pouco de barro na parede. "Se cair, ele será pescador; se ficar grudado, ele será músico". A depender do que é mostrado no filme, muito barro deve ter ficado grudado nas paredes... 


Analisando de maneira bastante divertida os métodos de ensino - e, por extensão, de convivência social - utilizados pelas sociedades filarmônicas da cidade, o documentário estabelece de maneira sensível as diferenças entre cada uma delas: há a que não tem receio de incorporar músicas contemporâneas ao acervo; há a mais tradicional, em que até mesmo os cabelos dos partícipes são supervisionados e quem tiver tatuagem não pode participar; há aquela em que o maestro leva os seus protegidos em casa... Cada qual à sua maneira, essas organizações musicais amparam os jovens nordestinos, que vivem numa das regiões litorâneas mais bonitas do País. O que, infelizmente, não assegura-lhe melhores condições de trabalho ou oportunidades rentáveis: o sonho da maioria deles é ingressar na banda da Polícia Militar, mas pouquíssimos conseguem atingir este objetivo. Os casamentos precoces surgem como provedores de certo alento, para quem não consegue evadir-se da cidade ou progredir musicalmente... 


Num estratagema acertado, o diretor - com formação jornalística e experiência consagrada na emissora GloboNews - concede direito de voz aos mais diversos personagens, desde o maestro que confronta o depoimento de um colega, que alega que não mais haver rivalidade entre os músicos, em sua maioria adolescentes, até o senhor aposentado que afirma não ter enriquecido, mas agradece sorridentemente pela vida que a Música concedeu-lhe, malgrado a sua intensa rotina de trabalho. No terço final, o filme entrevista o fundador da banda de pífanos Esquenta Muié (que, infelizmente, falece durante o processo de finalização do documentário) e o célebre Nelson da Rabeca, que chegou a receber uma estátua, em sua homenagem, numa praça central de Marechal Deodoro. Porém, esta é comumente vandalizada. Por qual motivo? Talvez, porque ele e sua esposa não sejam nascidos naquela cidade e tiveram uma trajetória bastante nômade, "vivendo como ciganos", como ela afirma. O que não diminui a valorização de seus méritos culturais, reconhecidos até mesmo internacionalmente, como ele faz questão de frisar. 



Por causa do currículo profissional do seu realizador, o documentário possui um caráter de reportagem estendida, na maior parte de sua extensão. Mas é sempre agradável de ser visto, ainda que alguns relatos comovam-nos por sua dramaticidade inevitável: a despeito de sua riqueza musical, o município é lancinado por privações governamentais e pelas dificuldades socioeconômicas inerentes à região. Isso explica o porquê de muitos de seus moradores eventualmente confundirem tradição com moralismo excessivo, sendo comuns as censuras ao comportamento das mulheres nas falas captadas. Um ex-militar reclama que, naquela lugar, "as meninas costumam perder-se muito cedo". O simpático marido de uma maestrina, por sua vez, declara que ela é uma excelente jogadora de futebol, mas "não fica bem para uma mulher casada continuar divertindo-se dessa maneira". Não obstante a temática musical ser anunciada desde o seu título espirituoso e poético, "Faz Sol Lá Sim" serve também como radiografia de apanágios históricos do Nordeste. É um registro sincero, portanto - e contagiante! 



Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP: SOBRADINHO (2020, de Cláudio Marques & Marília Hughes)


 

A filmografia dessa dupla de cineastas radicados na Bahia é demarcada pela juventude: seja enquanto tema direto de seus filmes, seja pelo arrojo estilístico que permeia as suas narrativas revoltosas. No quarto longa-metragem que realizam, com enfoque assumidamente documental, a perspectiva geracional é diferente: acompanhando-se as lembranças da espirituosa Dona Pequenita, idosa que vive sozinha na cidade parcialmente inundada de Pilão Arcado, é promovido um reencontro com três assistentes sociais que voltam ao local, a convite dos realizadores. Estas participaram do processo de remanejamento habitacional dos moradores que viviam nos municípios alagados durante a construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, no início da década de 1970…



Retomando um assunto que forma uma trilogia indireta com o curta-metragem "Desterro" (2012) e com o longa semificcional "A Cidade do Futuro" (2016), os diretores contrastam o que é narrado por Dona Pequenita aos cinejornais da CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco, aos documentários efusivos da Rede Globo de Televisão e a apropriação melodramática da situação sertaneja numa telenovela de Janete Clair, “Fogo Sobre Terra”, lançada em 1974. Nas imagens em preto e branco, Juca de Oliveira e Regina Duarte formam um casal afetado diretamente pelos planos de uma empresa hidrelétrica, que planeja alagar a cidade em que vivem. Durante a produção, a telenovela sofreu muita censura, por parte do Governo Militar, pois temia-se que ela incitasse os espectadores a posicionarem-se de maneira contrária à construção da represa de Itaipú, então em curso naquele período. Hoje, todos sabem que tipo de ideologia a atriz supracitada apregoa…



No documentário, as assistentes sociais confessam que não compreendiam adequadamente as conseqüências do que faziam. Insistem que agiram com as melhores intenções e que não sabiam muito sobre o jugo da ditadura militar, pois viviam “soltas na buraqueira”. Eram recém-concursadas, jovens e motivadas por ideais de edificação nacional, conforme veiculado pelas campanhas publicitárias governamentais do período, amplamente falaciosas. Ao reverem as fotografias e filmagens realizadas durante o período de transporte das famílias para cidades construídas às pressas para recebê-los, elas exibem uma conscientização temporã acerca das agruras para as quais contribuíram. Uma delas, chora. Dona Pequenita, por sua vez, prefere cantar as marchinhas de Carnaval de que ainda se lembra. “Quem veve na beira do rio é tranquio”, repete ela, mais de uma vez, sorrindo.



Neste filme mais recente, os diretores demonstram que a juventude a que tanto vinculam-se não tem a ver exatamente com faixa etária. Conforme dito pelo co-diretor, em depoimento pessoal sobre a sua parceria com Marília Hughes: “temos muita paixão, energia e desejo de nos comunicar. Estou envelhecendo, mas ainda não perdi isso. Quero fazer as coisas com mais calma”. Está explicada a mudança de ritmo em "Sobradinho", portanto. As imagens e sons captadas por ele são mui acolhedoras!



Wesley Pereira de Castro. 



domingo, 25 de outubro de 2020

* Mostra SP: SIBERIA (2020, de Abel Ferrara)


     Extremamente católico, Abel Ferrara é um cineasta demarcado pelas contradições que se coadunam: ao realizar um filme atípico, realiza também um dos mais sintéticos de sua filmografia. E, ao escolher, mais uma vez, Willem Defoe como colaborador actancial, consegue que ele interprete de maneira um tanto automática e, ao mesmo tempo, esteja cada vez mais parecido com o que vislumbra para os seus personagens (numa comparação consigo mesmo), além de demonstrar o sumo talento de um dos melhores e mais prolíficos atores norte-americanos... 



    Não obstante o título bem definido deste filme, a geografia adotada pelo cineasta é emocional, mesclando diversos países numa mesma região, a do surrealismo eminentemente masculino. Em seu roteiro repleto de idas e vindas por traumas relacionais mal administrados, Abel Ferrara compartilha com o espectador psicoses que são suas, o que justifica o hermetismo inicial da trama. Pouco a pouco, vamos identificando os elementos, percebendo as recorrências temáticas (a associação entre sexualidade e maternidade, em destaque) e notando o quão incrível é a transmutação do protagonista em diversos personagens, como se o alter-ego-mor se subdividisse em vários outros, que - literalmente - carregam um mesmo código genético. A carga paterna é sobressalente: a filha do próprio diretor interpreta o filho do protagonista, que, enquanto personagem, é também o artífice postural de seu pai, a quem os médicos disseram estar morto. Como sói acontecer em vários de seus filmes - mais uma vez, numa aplicação de um dogma católico central - os filhos pagam pelos pecados de seus progenitores. Família é reduto de amor, mas também de aflição hereditária!



    Num dos diálogos mais elogiáveis (e reconhecíveis), o protagonista Clint comenta: "o meu maior pecado foi te amar demais - e tu sabes disso". Sua ex-esposa aparece em memórias, requerendo um acerto de contas, que dispersa-se em múltiplos massacres. Frases em vietnamita, russo, inuíte e hebraico, entre outros idiomas, dão a tônica da narrativa circunloquial, típica de um pesadelo, mas que revela-se um percurso possível de redenção. No desfecho, a empatia que Abel Ferrara tanto esforça-se para que sintamos em relação ao protagonista - variação de si mesmo - é alcançada. Musicalmente, o perdão é atingido. "Enquanto eu ando, eu me pergunto/ O que deu errado com nosso amor?/ Um amor tão forte...", canta Del Shannon. Em reação, Willem Defoe dança freneticamente!



    Servindo-se até mesmo de imagens telescópicas, a fim de transladar imageticamente os estágios emocionais do protagonista, este filme possui um ritmo lento e impregnado de contrição. Os encontros são fugidios, nem sempre imediatamente inteligíveis, mas todos acrescentam algo ao périplo existencial do protagonista. No desfecho, a narração de abertura - sobre as pescarias com o pai - e a leitura nietzscheana que surge numa das lembranças são assimiladas intimamente: tudo faz sentido! É um filme deveras pessoal, mas que não refuta o diálogo coletivo: deseja-o compulsivamente, aliás. O problema é que, entre o ato de ferir e a reação aos golpes infligidos, há algo que confunde as palavras, dificulta a equanimidade comunicacional: os gritos de dor!



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 24 de outubro de 2020

* Mostra SP: PILATOS (2019, de Linda Dombrovszky)


 

    Quando deparamo-nos com a sinopse deste filme, a primeira referência que salta aos olhos é "Sonata de Outono" (1978, de Ingmar Bergman), por causa das tensões que envolvem a convivência súbita entre mãe e filha. Mas o contexto é radicalmente distinto: aqui, a figura autoritária é a filha, que deseja controlar minuciosamente todos os passos de sua genitora. O apelo enredístico precisa do romance original para fazer sentido: “os mortos não respondem”, escreve Magda Szabó [1917-2007], uma das mais importantes autoras húngaras…


    No enredo, são inúmeros os bloqueios emocionais de mãe e filha: logo no começo, sabemos que o marido da protagonista falece de câncer. Sua filha, que é médica, vende a casa onde a mãe conviveu por tanto anos com o homem que amava, sem mesmo consultá-la. Ela sente falta até menos das notícias que ele lia, não por serem eram importantes, mas porque deliciava-se com a sua voz. Sua filha, entretanto, é pragmática: não quer lembranças desnecessárias ou móveis antigos. Sufoca a sua mãe com presentes desnecessários, ao passo em que deixa malograr o seu relacionamento recente com um psicólogo. É um filme curtíssimo, mas que existe bastante carga existencial por parte do espectador.


    Dividido em quatro capítulos relacionados aos elementos naturais, ele inicia-se com a Terra, onde conhecemos os baluartes relacionais de ambas as personagens; segue-se o Fogo, onde os conflitos instalam-se; tenta-se um novo estabelecimento de interesses com a Água; e o Ar é o suspiro que resta… Tal qual o clássico bergamaniano supracitado, os diálogos são intensos e sufocados. Em chave invertida, as brigas desencadeiam um cotejo violento com as lembranças familiares dos espectadores. Trata-se de um telefilme muito elogiável, que recebeu prêmios de interpretação em vários festivais: a veterana Ildikó Hámori está excelente no papel principal, mesclando a fragilidade submissa de sua personagem com a infelicidade despótica da personagem de Anna Györgyi. Palmas para a excelente direção feminina – também premiada – e para as interpretações de ambas!


Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP: PARI (2020, de Siamak Etemadi)


 Não é nada casual que, num dos encontros fundamentais que trava na Grécia, alguém peça para a protagonista (muito bem defendida por Melika Foroutan) explicar o significado de seu nome. "Pari significa algo com asas...". "Um anjo?", interrogam-lhe. Somente muito tempo depois, ela encontrará a palavra correta: "uma fada"! E isso aplica-se ao filme como um todo, visto que a narrativa transita entre o pasticho militante e o percurso feérico, com forte elã feminista. 



A despeito de alguns elementos narrativos pouco verossímeis que permeiam a chegada dos pais do estudante Babak à Grécia, estes são reinterpretados sob a chave da incomunicabilidade cultural: por mais carinhoso que seja Ahmadi (Bijan Daneshmand) em relação à sua esposa, ele carrega até mesmo em sua efígie os traços nacionais de opressão. Vamos descobrindo que ele age de forma até abnegada em relação a ela - visto que o filho que ela tanto busca sequer é dele! - mas inevitavelmente a aprisiona, conforme fica evidente em toda a seqüência do aeroporto, em que o vislumbre de uma porta deslizante que se abre metonimiza, no olhar de Pari, o quanto ela deseja fugir... 



Na abertura, a protagonista recita os versos enômanos do poeta afegão Rumi [1207-1273], que encontra posteriormente espalhados - e traduzidos para o inglês - no quarto onde morou Babak. Com isso, o roteiro antecipa a correspondência de caracteres entre ela e o filho: ambos desejam vagar pelo mundo, ambos possuem fascínio pelo comportamento típico dos dervixes. Por ser homem e jovem, ele consegue. Ela deseja, busca, mas sucumbe às necessidades matrimoniais, muito exigentes em seus país natal. Na Grécia, após mais de um mês de confinamento forçado, ela emancipar-se-á: a derradeira seqüência do filme, em que a protagonista é mostrada, de costas, contemplando o mar, é absolutamente sublime!



Os indícios que reforçam o comportamento desejoso de Pari são abundantes na trama: além dos já mencionados, o instante em que seu chador incendeia-se, durante uma manifestação, é deveras sintomático. É ela que possui a alma ígnea, não sendo mais capaz de conter a verve incendiária de seus anseios. Dessa maneira, a busca insaciável pelo filho converte-se no ato de encontrar-se comigo mesma, enquanto processo de transferência simbólica: os 'flashbacks' que mostram-na amamentando o pequeno Babak emulam o mesmo tom libertário dos poemas de Rumi e da anarquista que beija Pari, repentinamente. A protagonista é muito maior que o filme, portanto: por ela, todos os equívocos do irregular itinerário roteirístico justificam-se! 



Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: NOVA ORDEM (2020, de Michel Franco)


 Durante e após a sessão, são abundantes os conceitos foucaultianos que aplicam-se à análise deste filme. Expressões como "microfísica do poder" e "sociedade da vigilância" são apenas algumas que precisam ser obrigatoriamente mencionadas, dada a rigorosa aplicação nesta obra poderosamente distópica, que é lançada num momento em que a extrema-direita política foi eleita em inúmeros países. Por vias democráticas, a perda constitucional de direitos foi aplicada: chegamos a um momento histórico em que os absurdos da realidade superam a mais apavorante ficção... É o caso deste filme!


Antes do 'tour de force' directivo aplicado na longa seqüência do casamento, há um despejo de imagens estranhamente coloridas, em que pessoas nuas são cobertas de tinta verde e sinais de violência física - em larga escala - são detectados. A evacuação súbita de um hospital induz-nos a desesperadas interpretações, até que somos apresentados aos personagens centrais, pertencentes a uma riquíssima família da alta sociedade mexicana. A filha mais nova, Marianne (Naian Gonzalez Norvind), é a noiva. Ela será seqüestrada, o que desencadeará eventos acachapantes... 


Um dos grandes méritos do filme é a sua ambivalência moral: não obstante os aquisitivamente favorecidos serem comumente noticiados como os vilões da corrupção nacional, não importa qual seja o País, a protagonista é extremamente carismática e benevolente, o que aumenta o impacto das agressões que ela sofre. Porém, toda a frenética movimentação exordial é atravessada por questionamentos de lógica narrativa. Afinal, quem ousaria pedir tanto dinheiro a um patrão na cerimônia de casamento de um de seus filhos? Quem teria a audácia de se casar luxuosamente em plena erupção de um levante urbano? Como os manifestantes puderam escalar tão facilmente os muros (incrivelmente baixos) daquela mansão? As respostas a estes questionamentos não resvalam em defeitos de verossimilhança, mas em adesão prévias às convenções alegóricas. Conforme dito anteriormente, malgrado o realismo supremo do filme, trata-se de uma abordagem distópica, potencialmente aplicável a um futuro bem próximo... 



Fazendo excelente uso dos sons em 'off', a magistral direção de Michel Franco mantém-nos em pleno escândalo: independente de quem esteja sendo espancado, as táticas de tortura e chantagem são insuportáveis, sem contar os reiterados estupros sexuais, a fim de desestabilizar por completo os reféns, de ambos os sexos. Nalguns momentos, vê-se que os empregados das pessoas ricas colaboram com o seqüestro e com os assassinatos em massa, o que retroalimenta a contínua desconfiança entre classes. O roteiro leva a crise do Capitalismo ao seu píncaro, visto que não há união de uma classe contra outra, mas pobres X pobres, pobres X ricos, ricos X ricos, todo mundo X todo mundo. Numa conjuntura de corrupção escalonada, não há qualquer tipo possível de união, exceto quando provisória e oportunista, permeada por inúmeras mentiras. Em seu corolário extremado das noções de vigilância e punição estudadas por Michel Foucault [1926-1984], o filme serve como uma advertência equânime a todos os espectadores, para além de suas condições classistas: é isso o que o fascismo e a monetifagia fazem com as pessoas!



Se, sociologicamente, o filme é intencional e inevitavelmente lacunar, em termos narrativos ele é primoroso: cumpre as suas funções advertentes da maneira exacerbada pelo qual o diretor é conhecido, sendo ele um polemista acostumado às diatribes e polemismos, nem sempre no melhor sentido destas palavras. Aqui, ele conta com um elenco extremamente afiado e com uma equipe que obtém êxito na implantação de efeitos documentais e parajornalísticos à apresentação dos fatos: é difícil quedar emocionalmente incólume ao final da sessão. Seria essa mais uma confirmação da índole questionável de seu diretor, conforme reclamam os seus detratores? Toda e qualquer interpretação é válida diante do medo. Eis o real perigo. Atentemo-nos à realidade! 



Wesley Pereira e Castro. 

* Mostra SP 2020: MOSQUITO (2020, de João Nunes Pinto)


     A cartela que, nos créditos finais, anuncia que este filme foi livremente inspirado numa história verdadeira, é quase redundante: são amplamente conhecidas as versões similares de brutalização associada à guerra, que trazem à tona o que os homens têm de pior diante daqueles que deveriam ser reconhecidos como os seus semelhantes. E, não obstante ter como referência a I Guerra Mundial, as imagens de batalha que aparecem neste filme explicitam sobretudo as conseqüências de conflitos interiores... 


    Iniciado em 1917, o roteiro apresenta-nos ao jovem Zacarias, que chega em Moçambique, a fim de defender a nação portuguesa. Enquanto soldados matavam-se na Europa, este garoto, com apenas 17 anos de idade, testemunhará mazelas traumatizantes. Do mesmo modo que o protagonista de "Vá e Veja" (1985, de Elem Klimov), ele envelhecerá mui precocemente, sendo vital para a transposição fílmica deste efeito a completa entrega do jovem João Nunes Monteiro à sua interpretação. Sendo quase dez anos mais velho que ele, traduz em olhares aflitos e abandonados todo o estupor de seu personagem, que tem qualquer vestígio de inocência dilacerado pelas múltiplas guerras que enfrenta. Desde a guerra inicial contra a autoridade paterna, relatada numa carta, que o levou a alistar-se no Exército, até a guerra vilanaz de colonização na África, que maltrata de maneira inclemente pessoas completamente alheias à disputa das grandes potências nacionais. A submissão dos moçambicanos, que carregam os soldados portugueses nas costas durante um desembarque, escandaliza-nos desde o começo: é um filme sobre o Mal, naturalizado por seres humanos que apregoam a equivocada superioridade de uma raça sobre outras. 


    Inicialmente absorto, Zacarias esforça-se para compreender as regras de respeito hierárquico que balizam o relacionamento entre os soldados. É ensinado a tratar os seus servos africanos como inferiores a animais de carga, meras coisas que se movem em benefício do homem branco. Tem a sua virgindade sexual questionada, e é orientado a logo "enfiar a minhoca na terra preta", numa piada de alto teor machista, que revela a falta de caráter dos seus comandantes. Até que ele vê-se abandonado em meio à selva...



     Daí para a frente, o filme obedece a um percurso deveras assemelhado ao de "Aguirre, a Cólera dos Deuses" (1972, de Werner Herzog): Zacarias age com bazófia quanto a tudo com o que se depara, mas logo sucumbirá ao desespero de rezas culpadas, em que pede perdão "por ter pecado em pensamentos, palavras, atos e omissões", conforme foi ensinado, sem necessariamente acreditar. Seus monólogos de autodescoberta contagiam a banda sonora, bem como as frases de efeito proferidas por um ermitão que o resgata: "devemos andar na Música, e não na Matemática. A primeira foi concedida por Deus aos homens, enquanto a segunda foi criada pelos homens para tentar explicar Deus". A convivência forçada que mantém com alguns africanos, após ser capturado por uma tribo composta apenas por mulheres, o obrigará a amadurecer.  Zacarias sobrevive, foge... Até que um novo encontro o induz, mais uma vez, a gabar-se de uma autoridade que não possui. E que não se sustentará nem mesmo com o exercício da força, do poder de matar via empunhamento de uma metralhadora!



    Muitos dos efeitos alucinantes deste filme devem-se à perfeita confluência entre seus elementos técnicos: a magnífica fotografia de Adolpho Veloso, eventualmente embaçada nas laterais, e o esplêndido desenho de som tornam-nos cúmplices dos sentimentos atordoados de Zacarias, que vaga entre o embasbacamento ecológico e o ódio imputado por seu treinamento bélico. A trilha musical utiliza sons eletrônicos que reforçam o caráter transeúnico da imersão do personagem num ambiente sobremaneira inaudito. Até que ele constata, escandalizado, que a guerra para a qual foi convocado acabou...



     No desfecho, o filme é quase tautológico na exposição desumanizadora, que, conforme percebemos, poupou Zacarias, em comparação com outrem. Seu comandante diz que ele não viu o suficiente da brutalidade da guerra e que, por causa disso, seria incapaz de compreender o que os demais soldados enfrentaram, tentando explicar assim a malevolência de seus atos cotidianos, já em contexto "oficial" de paz. Fotografias reais da colonização de Moçambique por Portugal aparecem na tela, situando historicamente os eventos e forçando-nos a admitir que aquilo ainda continua a acontecer... As guerras não acabam: são apenas narrativamente transferidas! 



Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: LIMIAR (2020, de Rouzbeh Akhbari & Felix Kalmenson)


 

    A abertura remete a "Nostalgia" (1983, de Andrei Tarkovski): o ambiente iluminado por velas, a “Ave Maria” schubertiana na trilha musical, o plano longo e contemplativo, onde encontramos o protagonista num ambiente nevado, a observar a conversão geológica do infinito. Mas logo o filme muda de perspectiva: após os créditos iniciais, instala-se uma busca que será desenrolada até o último fotograma, cuja resolução é indistinta, em meio à neblina…


    A despeito do flerte inicial com a espiritualidade, a perquirição levada a cabo pelo protagonista é telúrica, profissional: é difícil identificar o que está sendo mostrado, mas, de acordo com a sinopse, acompanhamos um diretor de cinema, que percorre espaços ermos em busca de locações para seu próximo filme. O tema do mesmo é assaz pretensioso: uma investigação sobre o Universo, a partir da consciência do Homem enquanto força organizadora. A fim de compreender aquilo com que se depara, o diretor tenta aprender o idioma local enquanto come, aprecia as canções que ouve no rádio. Mas perder-se-á no vazio da incomunicabilidade


    Como era de se esperar, a fotografia do filme é deslumbrante. Ruínas históricas – identificadas como do século XI – são percorridas pelo cineasta, que é impregnado pela aura religiosa dos ambientes. Mas a espiritualidade é interditada, de modo que, em sua amplitude solitária, o filme parece advogar a misantropia. No afã por compará-lo a algum título semelhante, podemos encontrar alguns pontos de contato com o longa-metragem brasileiro "Fendas" (2019, de Carlos Segundo), sobre uma professora de Física quântica que, quanto mais mergulha em sua esotérica pesquisa, mais descobre sobre si mesma, deparando-se até mesmo com um inusitado pretendente romântico. Na pesquisa do personagem armênio, o que manifesta-se é desencontro e vazio. Os ruídos provavelmente balísticos que ouvimos na seqüência derradeira confirmam: não haverá a redenção prometida na abertura. Exceto, talvez, enquanto (re)interpretação pós-fílmica!


Wesley Pereira de Castro. 

SELFIE (2019, de Agostino Ferrente)


 

Em razão da franca acessibilidade digital – mais técnica que lingüística –, estão sendo abolidas muitas das convenções outrora exigidas nos produtos audiovisuais: é cada vez mais freqüente, por exemplo, que os telejornais insiram entre as suas manchetes anúncios de “notícias” captadas amadoramente, por pessoas comuns que tiveram a sorte de possuir um celular com câmera no momento em que algo inusitado acontece…


No cinema, isso ocorre há mais tempo: imagens trêmulas, fora de foco e com áudio pouco compreensível são consideradas adequadas à narrativa cinematográfica, para além das diatribes ensaiadas de alguns cineastas dogmáticos. A saturação deste formato chegou a tal ponto que é difícil distinguir produtos que prezam pela sinceridade na captação informal de imagens. "Selfie" é, neste sentido, uma grata exceção: o registro de uma amizade atravessada pelas pressões destrutivas das condições sociais periféricas. O anúncio de uma separação, portanto.


No projeto, os amigos Pietro e Alessandro recebem celulares potentes, a fim de registrarem as situações de seu cotidiano. Ambos têm 16 anos de idade, e vivem num distrito napolitano onde, há algum tempo, um adolescente foi injustamente assassinado pela Polícia, e a vinculação à Camorra surge como coerção onipresente. Eles resistem, ao manifestarem uma inocência atípica para a sua idade: o primeiro insiste em filmar as situações deprimentes de sua vizinhança, enquanto o segundo lida com o inevitável desamparo.


Formalmente, o filme abusa do recurso fotográfico em que os portadores dos celulares focalizam a si mesmos, em enquadramentos rudimentares, com vistas ao enfoque facial. Mas é justamente esse o grande mérito do filme: ainda que a montagem tenha sido realizada por alguém de fora, tudo o que é mostrado vem de dentro, é permeado pela esperança intermitente de quem diverte-se e trabalha nas condições disponíveis. Resta o consolo das típicas canções melodramáticas, que acompanham-nos por muito tempo após a enternecedora sessão…


Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP 2020: PANQUIACO (2020, de Ana Elena Tijera)


 Visualmente, o filme é arrebatador. Mas esta característica traz consigo um problema diretamente relacionado: ele é "posado" demais, às vezes soa inautêntico, a despeito de sua fotografia irrepreensível. Em termos narrativos, por sua vez, este semidocumentário segue um percurso tão errático quanto o do personagem retratado, Cebaldo, um panamenho que vive há muitos anos em Portugal. Lá, ele trabalha num mercado de peixe e, por mais saudades que sinta de sua terra natal, torna-se cada vez mais aculturado. Tanto que, quando despe-se ao lado de um parente indígena, até mesmo sua pele parece esbranquiçada... 


Sobrepondo poemas e anedotas de quando os europeus conquistaram as Américas, de maneira violenta e invasiva, o roteiro do filme acompanha Cebaldo durante o seu retorno ao Panamá, a fim de enterrar alguém de sua família. Percorre os locais onde fôra criado e parece não mais reconhecer o que vê: estranha um pássaro que voa com um caranguejo no bico e carece banhar-se numa espécie de chá de ervas, a fim de retomar os seus vínculos espirituais. Neste sentido, o filme impressiona, compreende o deslocamento físico e anímico do personagem. Porém, estetiza demais, limita as epifanias concomitantes à realidade.


No Panamá, Cebaldo participa ativamente de uma festividade que celebra uma insurreição local: os moradores da cidade recriam as lutas com os invasores espanhóis e as mulheres cantam hinos. O olhar do protagonista é distante, como se tivesse esquecido o significado daquela cerimônia. Na tela, os versos que explicam o título do filme: Panquiaco foi um homem indígena que ensinou ao explorador espanhol Balboa o caminho para o Oceano Pacífico, em relação ao qual este proclamou-se descobridor. A Panquiaco, coube o sentimento involuntário de traição. Tudo isso aparece no filme, em alguma medida, mas o conjunto nem sempre é coeso. Beleza, por si mesma, não sustenta um bom filme! 


Wesley Pereira de Castro. 

EM NOME DE CRISTO (1993, de Roger Gnoan M'Bala)


 

Servindo-se de uma premissa alegórica para denunciar os interesses escusos de falsas religiões, o roteiro de "Em Nome de Cristo" apresenta-nos a um cuidador de porcos que, ao fugir de uma acusação de roubo, tem uma alucinação profética: depara-se com uma entidade infantil que o rebatiza como Minhaglória I e convence-o de que ele é primo de Jesus Cristo. De volta à sua aldeia, ele seduz as pessoas que antes humilhavam-no e proclama um novo conjunto de mandamentos, que substitui aqueles constantes no Evangelho. Primeiro ditame: “amai a Minhaglória I e multiplicai”…


Lendo a Bíblia de cabeça para baixo, este pseudomessias anuncia a implantação da “ditadura de Deus”: declara o adultério como algo sagrado, é bem-sucedido na obtenção de parcelas consideráveis das colheitas alheias e reage com hostilidade a quem duvida de sua santidade. Ordena que sejam queimados todos os fetiches locais, num país onde predominam as variações do animismo, mas carrega consigo bustos de madeira que imitam a efígie branca tradicionalmente associada a Jesus Cristo. Está evidente a quem direciona-se a crítica?


Enquanto um dissidente reclama que Minhaglória I reproduz a cegueira e a loucura típicas do colonialismo, ele define-se como um baobá inerradicável, e teme perder a pujança de seu falo, tendo recorrentes sonhos de castração. O desfecho não ignora o ciclo de falso convencimento que associa a existência de pobres e ricos no mundo ao pretexto da necessidade de equilíbrio. Quem domina a arte de manipular a fé, converte-se em mito!


Wesley Pereira de Castro. 

A ROSA AZUL DE NOVALIS (2019, de Rodrigo Carneiro & Gustavo Vinagre)



Apesar das vicissitudes, quando tu morres, triunfas enquanto idéia”: na situação em que pronuncia o veredicto acima, o ator Marcelo Diorio – entrevistado ao longo de cabalísticos 69 minutos – narra alguns percalços da cantora Nina Simone (1933-2003), que, ao falecer, foi dotada de um halo positivo que encobriu as incongruências inevitáveis de seu percurso na Terra. A morte tem este poder hagiografizante. Por isso, “sou um necrófilo”, confessa o ator, eternizado depoimentalmente num dos filmes brasileiros mais radicais do século XXI…


Extremamente bem-resolvido com a sua própria sexualidade, o protagonista rememora situações opressivas em seu núcleo familiar mais tenro: relata que a sua consolidação enquanto “bichona” corresponde exatamente àquilo que sua avó temia que ele se tornasse e compartilha que o maior desgosto de seu pai era que o filho apreciasse o ato de “dar o cu”. Obviamente, os integrantes masculinos de sua família eram adúlteros, e ele encontra em seu irmão mais novo um inusitado conforto: obteve transas incestuosas prolongada por vários meses, até que este faleceu precocemente, num acidente automobilístico. No porta-luvas do carro, dois exames de gravidez efetuados por diferentes namoradas do falecido...


Ao narrar estas anedotas familiares, Marcelo não utiliza um tom acusatório, mas de compreensão aberta das hipocrisias legitimadas por uma sociedade machista e classista. Não por acaso, logo em seguida, ele apresenta-nos aos seus parceiros em aplicativos eletrônicos para obtenção de sexo fugaz: um dos rapazes é podólatra; outro urina sobre ele; um terceiro ejacula em seu rosto, numa alusão litúrgica ao poeta alemão Novalis [1772-1801], obcecado pela rosa azul do título.


As utopias perderam o sentido na contemporaneidade? Essa talvez seja a questão mais elementar deste filme-ensaio primoroso, que defende a sexualização como traço elementar do cotidiano saudável. Mesmo para quem tem AIDS, inclusive. A saúde defendida pelo filme é de outra esfera: transcendental e holística!



Wesley Pereira de Castro.

* Mostra SP 2020: MISS MARX (2020, de Susanna Nichiarelli)


     Depois de biografar, com refinado êxito, a musa da banda The Velvet Underground, a diretora italiana Susanna Nichiarelli volta a biografar uma importante personagem feminina que passou boa parte da vida à sombra de outrem: se Christa Päffgen [1938-1988] permanece até hoje lembrada pelo apelido célebre que não mais apreciava, Nico, Eleanor Marx [1855-1898] ansiava para ser novamente chamada de Tussy, como era conhecida em família... 

    Filha do célebre economista Karl Marx [1818-1883], ideólogo do Socialismo, Eleanor reclamava continuamente de não poder expressar-se livremente em sua residência, onde fôra contratada como funcionária do próprio pai, até converter numa importante predecessora feminista, no final do século XIX. Ocorre que, diante de um cabedal inevitável de contradições - sobretudo, aquisitivas - ela sucumbiu perante as traições recorrentes de seu marido ilegítimo, o médico Edward Aveling, até que suicidou-se, aos 43 anos de idade. Nada disso é segredo: é História. O que o roteiro do filme faz é completar as lacunas, a partir das obsessões pessoais da diretora com a temática da depressão e do abandono concedido às mulheres.


    Deveras inquieta, Eleanor lida com os inúmeros problemas familiares, mal administrados quando seus pais ainda estavam vivos (inclusive, um envolvimento entre o patrono de marxismo e sua criada), e toma partido dos proletários explorados e maltratados não apenas em sua Inglaterra natal, mas em diversas cidades do mundo. E o filme opta por mostrá-la como uma mulher continuamente enganada e imperceptivelmente submissa, a despeito dos conselhos de seus amigos. Independentemente de as situações apresentadas não serem inverossímeis, há algo de muito problemático nas opções roteirísticas da diretora. Afinal, as contradições enfatizadas podem anular discursivamente as conquistas políticas da personagem real. Lidar com ideologias é sempre muito delicado, sobretudo quando confrontadas a uma torrente malograda de sentimentos!


    Optando por um viés reconstitutivo que amalgama as convenções de época a estratagemas anacrônicos, como a trilha cancional da banda 'punk' Downtown Boys, o filme visa obter à obtenção do mesmo chamariz juvenil de público que "Maria Antonieta" (2006, de Sofia Coppola), mas os resultados tramáticos são bastante distintos: no filme mais antigo, há um edificação progressiva do caráter da biografada, enquanto que, no filme mais recente, a personagem é tão sufocada que precisou acabar com a própria vida. Num 'flashback', uma versão infantil de Eleanor Marx aparece dizendo que o seu lema favorito é "siga adiante". Implantar este conselho após a seqüência de suicídio da personagem é algo que possui conotações sobremaneira ambíguas. Quase um estímulo ao ato extremo de desespero, numa conjuntura de injustiças acumuladas. Mais uma vez, um perigo!


    Não obstante a ótima entrega actancial de Romola Garai - que, inclusive, está bastante assemelhada a Trine Dyrholm, protagonista do longa-metragem anterior da diretora - a personagem tem poucas oportunidades para desenvolver-se adequada e particularmente. Parece sempre dependente de alguém - não obstante ser mais inteligente e financeiramente privilegiada que as outras pessoas - e não imediatamente associável à biografia de incitadora revolucionária que foi-lhe concedida ao longo do tempo. Merecidamente, inclusive. Porém, o filme parece duvidar disso, malgrado aderir a um feminismo um tanto automático, quase modista.


    Os elementos cênicos confirmam as impressões supracitadas: tudo no filme é confortável demais, enfeitado demais. As canções de protesto soam mais dançantes que reivindicativas, como na cena famosa da personagem cantando e movimentando-se freneticamente depois que embriaga-se com ópio. Até mesmo "A Internacional Socialista" é executada em versão 'rock', em cenas que apresentam fotografias das más condições de trabalho da época como se fossem meros componentes de um videoclipe. Durante os créditos finais, "Dancing in the Dark", do cantor norte-americano Bruce Springsteen, é também regravada. A personagem acabara de falecer, e o espectador dança. Mas não parece haver intenção de consolo nesta associação...


    Em defesa do filme, ele possui um ritmo ágil (adjetivo que traz, em seu bojo, mais um problema de interpretação) e estimula a curiosidade investigativa acerca dos feitos da biografada, que deve ser lembrada não apenas como "a filha mais nova de Karl Marx". Que o debate acerca desta obra possa atenuar aquilo de que foi impregnado, a despeito das ótimas intenções da diretora. "A luta de classes existe", recita a personagem, olhando diretamente para a câmera. Ela tem razão: hoje, ainda mais!



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: APENAS MORTAIS (2020, de Liu Ze)


     Num primeiro momento, este filme parece o decalque chinês de um tradicional melodrama familiar produzido em escala industrial: quantas e quantas vezes não foram realizados filmes sobre mãe e filha sofrendo com o envelhecimento de um ente querido? A diferença valorativa está no modo como a abordagem do Mal de Alzheimer desvela aspectos sustentaculares de uma sociedade em transição: a despeito do mote corriqueiro porém trágico, o que se destaca são as nuanças sub-reptícias... 


    A constatação de que o diretor estreante conduz-nos a uma percepção nas entrelinhas está na súbita mudança de perspectiva que ocorre no surgimento do namorado da protagonista, antes que saibamos quem ele seja: numa primeira aparição, ele conversa com a mãe, que reclama de sua solteirice. No casamento de uma amiga, ele reencontra a personagem principal, Xian Tian, de quem fôra colega de escola. Um 'flashback' abrupto mostra-os em sala de aula e, de repente, eles encetam um relacionamento. Na seqüência seguinte, já passou algum tempo desde o casamento da amiga em comum. A adoção da famosa "montagem invisível" aparece num viés chamativo, como se gritasse: "notem que houve uma passagem brusca de tempo"!


    Ao mesmo tempo em que enternecemo-nos diante do drama familiar advindo da progressão degenerativa da memória do pai de Xian Tian, notamos que há outra memória em desvelamento, esta de ordem coletiva: os comentários sobre a regra do filho único, o modo repetitivo com que os ensinamentos escolares são transmitidos, a frustração da cantora que sufocou seus sonhos artísticos numa fábrica de locomotivas e o inusitado desfecho fantasioso (típico do modo como os orientais lidam com a morte) são apenas alguns dos aspectos que demonstram o quão inteligente é o roteiro na sua inoculação sutil de críticas políticas, sem que isso obnubile a dramaticidade das relações afetivas em pauta. Muito pelo contrário: política tem a ver, sobretudo, com o que fazemos na intimidade!


    Muitíssimo bem-interpretado, as cenas de choro e langor deste filme também impressionam: afinal, é dolorosa a percepção de que os relacionamentos amorosos são inevitavelmente atravessados pela fisiologia, o que é metonimizado nos vários momentos em que o pai da protagonista aparece chorando após defecar nas roupas. O instante em que sua filha e o namorado iniciam um enlace sexual, ao lado de sua maca, também é sintomático neste sentido. Por isso, o filme é ainda mais efetivo depois que a sessão acaba: ele penetra em nossas lembranças pessoais, obrigando-nos a ressignificar aquilo que tentamos esquecer, por parecer traumático. Para os chineses, lembrar é uma tentativa que requer muito ensaio, após anos de censura. Portanto, este é um filme que melhora nas revisões sem expectativas e no cotejo com nossos problemas familiares...


Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 18 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: KUBRICK POR KUBRICK (2020, de Gregory Monro)


 No prefácio do livro "Conversas com Kubrick", do crítico francês Michel Ciment - lançado no Brasil numa edição deslumbrante (e muito cara) da editora Cosac Naify - o cineasta Martin Scorsese escreve: "assistir a um filme de Kubrick é como ver o cume de uma montanha a partir do vale. Nós nos perguntamos como alguém pôde subir tão alto". Procede! E o livro é exemplar ao desvendar este deslumbramento a partir da transcrição de várias conversas entre o crítico e o diretor, além de entrevistas com alguns de seus colaboradores... 


Como se sabe, o norte-americano exilado na Inglaterra Stanley Kubrick [1928-1999] faleceu antes do lançamento de seu derradeiro filme, "De Olhos Bem Fechados" (1999), que foi recebido de maneira pouco elogiosa por muitos críticos. E, conforme Michel Ciment faz questão de frisar, a incompreensão imediata era a tônica de vários dos contatos com as obras-primas realizadas pelo diretor, que realizou pouco mais de uma dezena de longa-metragens em seus anos de atividade. Seria interessante conferir tudo isso num documentário televisivo? 


Felizmente, a resposta é sim. Apresentando o material audiográfico cedido pelo próprio Michel Ciment, que é consultor técnico do filme, ouvimos as conversas entre crítico e cineasta, sendo que esta último demonstra-se bem distante do perfil irascível que costumam atribuir a ele. "Não dá para ser amigo íntimo de Stanley Kubrick", comenta o crítico, num comentário ao seu grau de proximidade com o diretor, mas o que ele consegue é brilhante: depoimentos valiosos!



Num dos melhores momentos, Stanley Kubrick explica que não gosta muito de conceder entrevistas porque isso lhe obrigaria a proferir resumos espirituosos de seus filmes, o que lhe desagrada. Ao mencionar quais seriam os temas genéricos das obras mais famosas, Michel Ciment dispara sobre "Laranja Mecânica" (1971): "é sobre violência", ao que o diretor corrige: "é sobre as estruturas sociais do futuro". Procede, mais uma vez! Quem discordaria do gênio?



O documentário, portanto, é despretensioso: em sua curta duração, ele apresenta a fase inicial da carreira do cineasta, ainda como fotógrafo, na revista "Look"; comenta as cenas de alguns filmes famosos, mediante a audição das lembranças de filmagem e pré-produção do próprio Stanley Kubrick [com destaque para o que sabemos sobre o controverso "Barry Lyndon" (1975)]; dispõe vários objetos icônicos dos filmes do realizador num cenário assaz reconhecível; e emociona-nos ao mostrar gravações familiares do cineasta, bastante sorridente, desde a infância. É um ótimo complemento a um livro já bastante completo. Definitivo, aliás! 



Em "Conversas com Kubrick", Michael Ciment escreve: "Quando tantos artistas contemporâneos têm regularmente uma recepção favorável e conveniente, por se repetirem, Stanley Kubrick não conseguiu sequer a unanimidade 'post mortem'. É a prova, com certeza, de que ele continua mais vivo do que nunca". Por motivos óbvios, nas entrevistas gravadas pelo crítico, "De Olhos Bem Fechados" era ainda um projeto vindouro. Mas o diretor já antecipava e explicava o seu interesse em adaptar o livro do austríaco Arthur Schnitzler, "Breve Romance de Sonho", escolhido dentre as inúmeras obras literárias com que teve contato. Para quem é (ou não, se é que é possível) fã do cineasta, este documentário é um precioso memento! 



Wesley Pereira de Castro.