sábado, 25 de janeiro de 2025

TRILHA SONORA PARA UM GOLPE DE ESTADO (2024, de Johan Grimonprez)


Dentre as inúmeras reviravoltas contidas no enredo deste documentário, uma que chama a atenção, de imediato, é o motivo que teria levado um cineasta belga a se interessar por um protesto de músicos estadunidenses, em defesa de um país africano. Quando se lembra que o país em questão, a República Democrática do Congo (conhecido como Zaire, até 1997) foi violentamente colonizado pela Bélgica, tudo é explicado: a abordagem do realizador evita qualquer tipo de condescendência em relação aos crimes coloniais cometidos por seu país-natal, de modo que a envergadura política da obra é excelente. 


Estruturada a partir da menção a um ditado popular que apregoa que "estudar História é como sentar num gato", no sentido de que as descobertas, muitas delas surpreendentes, "vêm acompanhadas de cicatrizes", a estupenda montagem deste filme - a cargo de Rik Chaubet - concatena as situações abordadas através de manchetes de jornais, excertos de livros e/ou diários e canções maravilhosas de 'jazz', correspondendo a uma versão cinematográfica de "A Era dos Extremos", de Eric Hobsbawn, centrada numa relação específica entre eventos: a independência do país supracitado e o assassinato do primeiro-ministro Patrice Lumumba [1925-1961], encomendado por agentes vinculados à ONU (Organização das Nações Unidas).


No início, lemos algumas declarações polêmicas do ex-primeiro ministro soviético Nikita Khrushchev [1894-1971], que afirma não apreciar jazz e, por conta disso, desliga o rádio, sempre que se depara com o que ele classificou como "cacofonia". Porém, à medida que o filme avança, as participações deste político são assaz ressignificadas, visto que, por sua filiação anti-capitalista, ele assume o apoio quanto à consolidação dos Estados Unidos da África, que seria uma comunhão dos países recém-emancipados neste continente. Os interesses econômicos de exploração dos colonizadores não permitirão que isso aconteça, afinal: há muito urânio disponível na República Democrática do Congo, e isto é essencial para a fabricação de bombas atômicas. 


Ao longo de duas horas e trinta minutos, acompanhamos várias apresentações musicais, declarações assertivas de depoentes como Malcolm X [1925-1965] e o protesto aludido, quando os músicos Abbey Lincoln e Max Roach invadem uma reunião da ONU, para conclamarem a opinião pública internacional acerca do que aconteceu a Patrice Lumumba - e que ainda permanecia impune. Há trechos de uma inspirada campanha presidencial, efetivada pelo trompetista Dizzy Gillepsie [1917-1993], em 1964, entremeando os eventos, bem como trechos literários de Aimé Cesaire e Frantz Fanon, entre outros, sendo que este último afirma que "se a África tem o formato de um revólver, a República Democrática do Congo é o seu gatilho". Pena que, desde a independência, ocorrida em 30 de junho de 1960, muitos conflitos, financiados por países poderosos, assolam o país. De maneira conclamante, o filme contribui para um necessário fulgor anticolonialista: incrível! 



Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

ANTES QUE TUDO DESAPAREÇA (2017, de Kiyoshi Kurosawa)


 

Não obstante o sobrenome célebre, o cineasta Kiyoshi não possui nenhum parentesco com seu compatriota Akira: enquanto o mais velho, já falecido, destacava-se pela renovação de temas clássicos da iconografia nipônica (incluindo filmes sobre samurais e adaptações shakespeareanas), o mais jovem ousa misturar as convenções de gêneros internacionalmente consagrados, como o terror, o suspense e a ficção científica, através de pontos de partida afetivos e sumamente dramáticos.



Sobremaneira prolifico, parte da filmografia deste realizador foi analisada no ótimo livro “A Revanche do Fantasma: mediunidade e ressentimento em Kiyoshi Kurosawa”, do pesquisador pernambucano Luiz Soares Júnior, cujo título é providencial no reconhecimento de um tema recorrente nas obras do cineasta japonês: o retorno de um “fantasma”, que exige reparação “ou, pelo contrário, permanece como evento-mater nunca devidamente reparável (…), a assombrar o resto do filme”. E é justamente o que acontece neste brilhante “Antes que Tudo Desapareça” (2017)!



A inaudita seqüência de abertura demonstra que estaremos diante de algo difícil de classificar, em termos convencionais: uma garota permanece de pé, frente a uma mulher ensagüentada, caída no chão, onde um peixe-dourado luta para respirar. Instantes depois, ela cambaleia por uma avenida movimentada, provocando um acidente de grandes proporções entre um automóvel e um caminhão. Seria mais um filme de terror, gênero no qual o diretor é especializado? No instante seguinte, porém, somos apresentados ao casal protagonista: ele, Shinji (Ryuhei Matsuda), é um homem que estava desaparecido, e que surge num hospital, desorientado e com sintomas que se assemelham ao Mal de Alzheimer; ela, Narumi (Masami Nagasawa), é a sua esposa apaixonada, porém ainda entristecida por causa de uma traição recente. Mesmo chateada, ela aceita cuidar dele e, pouco a pouco, descobre que, em verdade, o corpo de seu marido foi possuído por uma entidade alienígena…




Em paralelo a essa trama, conhecemos o jornalista Sakurai (Hiroki Hasegawa), que é designado para investigar o esquartejamento da mulher ensangüentada do início. É quando ele conhece um estranho garoto, Amano (Mahiro Takasugi), que diz ser também alienígena e pede que ele seja o seu guia terreno. A intenção de Amano é encontrar a garota Akira (Yuri Tsunematsu), uma terceira alienígena, visto que todos eles, em comunhão, estão preparando uma invasão à Terra.



Se, de um lado, esta narrativa fantasiosa permite situações prenhes de efeitos visuais e ação, com tiroteios sobremaneira inesperados, do outro, testemunhamos uma reconciliação amplificada entre Narumi e seu marido, sendo que, por extensão, ela também apaixonar-se-á pelo extraterrestre que usurpou as suas memórias. Shinji explica-lhe, inclusive, que os seus correligionários espaciais estão esforçando-se para compreender os conceitos humanos, sendo insuficientes as explicações através de palavras. Neste sentido, tanto ele quanto os dois adolescentes extraem memórias vitais dos seres humanos, no afã por assimilar conceitos complicados como Família, Propriedade, Trabalho e Amor. Este último será responsável pelo caráter de epifania que justifica o título…



Nas duas horas e nove minutos de duração deste filme, as situações mais inesperadas acontecem, incluindo um plano-seqüência genial, num hospital, em que se difunde a idéia de que o país está afligido por um vírus mortal. E, enquanto os motes de ficção científica são entulhados, o extraordinário roteiro (co-escrito por Sachiko Tanaka, colaboradora habitual do diretor) abre espaço para abordar, de maneira muito sensível, temas como a reconciliação marital e o assédio profissional, a partir das experiências vivenciadas pela ilustradora Narumi. A cena em que ela e seu marido entram numa igreja, porque ouvem a canção que tocara em sua cerimônia de casamento, e deparam-se com um padre que recita os famosos versículos do décimo terceiro capítulo do primeiro livro bíblico de Coríntios, sobre o amor, é absolutamente magistral!



Por motivos óbvios, adentrar a sessão sem conhecer mais detalhes sobre o seu enredo, além do que já foi revelado nesta resenha, faz com que a experiência de imersão neste filmaço seja ainda mais poderosa. Na variedade de propostas tramáticas que aborda, o diretor japonês consegue trazer, filme após filme, algo muito bem identificado pelo pesquisador Luiz Soares Júnior: em seus filmes, “nada desaparece: antes, transfigura-se vidente, subvertendo o cotidiano com prodígios infiltrados”. É o que se constata, de maneira explosiva, nos instantes em que Narumi e Shinji contemplam os fenômenos celestes: num dos casos, ela pergunta se determinada movimentação de nuvens corresponde à invasão eminente, ao que ele responde, de maneira tão inexpressiva quanto contundente que “isso é apenas o pôr-do-sol”. Noutro instante, ainda mais poderoso, ele queda estupefato diante de algo, e exclama que “tudo está diferente”, ao que ela logo acrescenta: “nada mudou!”. Obra maestra, recomendamos de pé!



Wesley Pereira de Castro.

sábado, 18 de janeiro de 2025

O CÔRO DO TE-ATO (2023, de Stella Oswaldo Cruz Penido)


A despeito do subtítulo "Ver com Olhos Livres", um aspecto que decepciona um pouco neste documentário é justamente o convencionalismo de sua formatação: há interessantes estratagemas discursivos (a ausência de legendas explicativas; a alinearidade dos relatos, que coaduna-se ao elã mnemônico; o contributo experienciado da própria diretora), mas a montagem comedida confere à obra um tom televisivo, inclusive no que tange à divisão tácita em blocos temáticos. No início, os ex-integrantes do grupo reencontram-se, em 2014. Pouco a pouco, suas lembranças invadem a tela, sendo valiosas as informações compartilhadas com o público, sob os auspícios da ótima trilha musical de Flávia Tygel. 


Sem aderir à tentação contextualizante, a diretora evita um dos maiores cacoetes documentais, que é a narração condutiva. Ao invés disso, tem-se a surpresa legítima dos próprios depoentes, revisitando imagens, objetos e recortes de jornais que alguns sequer lembravam que existiam. Neste sentido, o filme é deveras eficaz, ao fazer com que os espectadores experimentem algo semelhante aos partícipes do grupo titular, além de nos emocionar efetivamente, ao permitir que vejamos o insigne Zé Celso Martinez Corrêa [1937-2023] em ação. Assim, compreendemos a sua proposta mui inovadora, que foi a de espalhar uma ramificação do Teatro Oficina por diversos Estados brasileiros, em plena época ditatorial, conclamando as pessoas a participarem daquelas demonstrações de puro júbilo e liberdade. Até que, em 1979, alguns integrantes foram aprisionados, em Sergipe... 


É assaz proveitoso comparar as fotografias (algumas, despidas) daquelas pessoas, em extrema cumplicidade, com a maneira empolgada com que eles conversam, mais de trinta anos depois. Deve-se prestar menção elogiosa, também, às seqüências em que cadernos e diários antigos são folheados, bem como às situações em que os filhos dos atores verificam recordações de quando eram bebês. Outro ponto alto do documentário é o breve segmento sobre a convivência numa instituição psiquiátrica, onde os intérpretes interagiram com o artista Arthur Bispo do Rosário [1909-1989], que foi internado por conta da esquizofrenia. Ao término da sessão, desejamos saber mais sobre aquelas pessoas e situações, de modo que, ainda que o documentário seja bem menos efusivo que produções congêneres sobre o Teatro Oficina, ele estimula a imaginação e os sentimentos do público. Ou seja, "O Côro do Te-Ato" exorta-nos a reviver os ímpetos libertários dos envolvidos no dever cívico de revoltar-se contra a ditadura militar, valorizando a brasilidade originária. Evoé! 



Wesley Pereira de Castro.