Num primeiro momento, a ausência de qualquer contato com o filme imediatamente anterior a este ou com os livros que deram origem à presente cinessérie dificultaria o entendimento da segunda parte do capítulo conclusivo do envolvimento langoroso entre a humana Bella Swan (Kristen Stewart) e o insípido vampiro Edward Cullen (Robert Pattison, tenebrosamente inexpressivo). Entretanto, a autoproclamada saga baseada nos livros escritos por Stephanie Meyer é perpassada por tantos clichês e convenções ultrapassadas da infantilização do gênero romântico hollywoodiano que não apenas a trama é perfeitamente acompanhável como vergonhosamente dispensável e esquecível.
A estratégia de fazer com que o clímax belicoso desta obra seja desvendado como premonição antevista pela vampira Alice (Ashley Greene, numa das poucas atuações convincentes deste filme) funciona como uma sacada momentaneamente arguciosa do desvirtuado diretor Bill Condon e/ou da medíocre roteirista Melissa Rosenberg para entremear o elogio à diplomacia interespecista contida no enredo com o estímulo à violência pseudojustificada que é requerida pelo público-alvo do filme a partir de direcionamentos espetaculosos de sua publicidade avassaladora.
Com exceção deste truque enredístico e do deslumbramento fotográfico diante dos poderes adquiridos por Bella após a sua vampirização, pouco mais há a ser aproveitado – de bom ou de ruim – neste engodo disfarçado de filme...
Protagonizado por um casal absolutamente desenxabido (malgrado a intérprete Kristen Stewart tenha se revelado uma atriz muito boa noutras produções), os episódios desta saga foram agraciados pela sensualidade nata do astro juvenil Taylor Lautner, que aparece sem camisa na maioria das sequências, com o obséquio de que seu personagem lupino sente um calor desmedido. Infelizmente, a composição do personagem Jakob Black é estapafúrdia em sua subsunção extremada a uma paixonite convertida em promessa de contrafação erótica embebida de um forte espectro pedofílico, visto que a moça por quem o lobisomem se apaixona secundariamente é nada mais que a filha recém-nascida de sua musa inacessível, de quem ele será o encarregado da criação desde a infância (quando é interpretada pela neutra Mackenzie Foy). Por esse motivo, as brigas entre Bella e Jakob no início deste filme são assaz gratuitas e nulas em sua factibilidade, visto que, no momento seguinte, não apenas a vampira recém-convertida estará participando de uma disputa de braço-de-ferro para demonstrar a sua força como é absolutamente provida de sentido a interrogação recorrentemente levada a cabo pelos personagens deste filme acerca do excesso de zelo, comprometimento e abnegação por parte de mais de uma espécie fantástica (lobisomens, vampiros, mutações) em relação à preservação da vida de Renesmee, filha de um hematófago com uma ex-humana: por que tantos seres se dispõem a sacrificar as suas vidas por causa de um casal tão insosso? Definitivamente, a direção apagada deste filme não consegue responder a esta pergunta!
Ainda que Bill Condon tenha demonstrado um impressionante talento dramático em “Deuses e Monstros” (1998) e uma versatilidade genérica em “Dreamgirls – Em Busca de um Sonho” (2006), tendo inclusive roteirizado ambos os filmes, em “A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2, o Final”, ele se dissolve negativamente na abundância de suspiros afetuosos e insinuações sexuais pífias e numa seleção de canções ‘indie pop’ que intenta exaltar a suposta pureza dos sentimentos escambados pelos protagonistas. Além de Feist, Christina Perri, St. Vincent, Green Day, Ellie Goulding e Passion Pit, a atriz Nikki Reed (que interpreta a vampira Rosalie Hale na saga), num dueto com Paul McDonald, interpreta “All I’ve Ever Needed”, uma das canções graciosamente chorosas que integram a trilha sonora, cujo tema original [“Plus que Ma Propre Vie”] é composto por Carter Burwell, que se reveza pouco inspiradamente entre os temas anteriormente compostos por Alexandre Desplat e Howard Shore.
Num saldo geral, ainda que “A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2, o Final” seja um péssimo filme, ele é inócuo até mesmo na incitação da fúria crítica que deveria ser destinada a ele, sendo aparentemente muito mais produtivo ignorá-lo a assumir qualquer posicionamento combativo diante de sua periculosidade disfarçada de propensão amorosa.
As impressionantes bilheterias alavancadas pelo filme – e pela série literária que lhe deu vazão – são ainda mais preocupantes quando se tem notícia dos comportamentos exaltados de algumas fãs, que chegam a gritar que desejam ser “comidas” pelos personagens durante as sessões. A reiteração perpetrada pelo roteiro de que os Volturi (poderosa família vampírica italiana que, precipitadamente, se torna inimiga da família Cullen) são intransigentes em suas decisões autoritárias e inabalavelmente avessos ao diálogo tentam oportunizar as degolações comemorativas que são vislumbradas na já mencionada antevisão da previdente Alice, o que demonstra mais um aspecto da malevolência inegável desta franquia cinematográfica.
Algo parecido pode ser dito no que tange à inconvincente sequência inicial de caça, em que Bella abdica da vontade de experimentar sangue humano ao morder o felino que tentava se alimentar do cervo que ela perseguia. Ou seja: encerrado o forçoso compromisso com a audiência, uma conclusão lícita a que o espectador consciente pode chegar é a de que, no quinteto de filmes protagonizado pelas criações literárias de Stephanie Meyer, onde parece sobejar amor, vaza peçonha...
Wesley Pereira de Castro.
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
terça-feira, 13 de novembro de 2012
007 - OPERAÇÃO SKYFALL ('Skyfall') Inglaterra/EUA, 2012. Direção: Sam Mendes.
Num livro em que deslinda os processos constitutivos do que define como cinema hipermoderno – ou seja, o cinema “livre das normas passadas, dos freios e obstáculos, das convenções estéticas e morais de outrora” – o filósofo Gilles Lipovetsky menciona a imagem-distância como sendo aquela que identifica o filme como algo que recua referencialmente em relação a si mesmo e, como exemplo paradigmático desta tendência, cita a recente contratação de Daniel Craig como intérprete do famoso agente secreto britânico James Bond. Segundo o autor, o primeiro dos filmes com o espião protagonizados por este novo astro [“007 – Cassino Royale” (2006, de Martin Campbell)] “se apresenta como um distanciamento quase crítico da série, pela escolha de um intérprete fisicamente diferente, de uma violência seca e de uma melancolia desencantada no tom”, caracterizando o recuo iconoclasta e/ou referencial embutido na sua definição de hipermodernidade cinematográfica.
Polêmicas conceituais à parte, o diagnóstico sobre o personagem que Gilles Lipovetsky menciona em “A Tela Global” cabe perfeitamente na análise deste “007 – Operação Skyfall” como um dos melhores da franquia, visto que, dentre todos os filmes envolvendo o agente britânico nas últimas duas décadas, ele é o que mais avança neste recuo referencial e assume-se com uma homenagem legítima aos tempos áureos da cinessérie, quando ela era realmente cultuada pelo público e seus episódios não eram apenas despejados no mercado como meros ‘blockbusters’ entupidos de explosões e efeitos especiais deslocados.
Nesse sentido, a inusitada opção pelo diretor dramático Sam Mendes na condução desta aventura diz muito sobre os variegados méritos deste filme, que, para além de suas bifurcações temporais – tão legitimadas pelas convenções da diegese quanto as distâncias impressionantemente ultrapassáveis de um continente a outro – fecha um ciclo em relação aos vinte e dois capítulos “oficiais” anteriores (sem contar três títulos não produzidos por Albert R. Broccoli, detentor dos direitos autorais dos romances com o personagem), de modo que, se houvesse uma lógica produtiva estrita na produção destes longas-metragens hodiernos, o próximo filme a ser lançado seria uma regravação do ótimo “007 Contra o Satânico Dr. No” (1962, de Terence Young).
Conforme antecipado por Gilles Lipovetsky, um dos principais estranhamentos trazidos à tona com a vinculação de Daniel Craig ao personagem James Bond está em sua sisudez monogâmica, bastante distinta do caráter bonachão e perenemente lascivo das célebres vivificações de Sean Connery e Roger Moore. Se, no já citado “007 – Cassino Royale”, o que laureia a produção é justamente a falibilidade do personagem – bastante humanizado, afinal de contas – o filme seguinte [“007 – Quantum of Solace” (2008, de Marc Forster)] demonstra-se como um dos mais fracos da cinessérie por causa de sua linearização factual (o contato direto com o final da trama do filme imediatamente anterior rompe a liberdade narrativa dos filmes predecessores) e de sua adesão renitente aos clímaxes amorfos, que acrescentam muito pouco à evolução psicológica do personagem, que, nos filmes contemporâneos, protagoniza “preqüências” das ações levadas a cabo pelos demais intérpretes.
“007 – Operação Skyfall” supera o demérito disfuncional e revela-se como uma das melhores aventuras do personagem justamente por restituir a sua dignidade viril (em nível freudiano, inclusive, visto que o trauma da morte de seus pais durante a infância é assumida como a causa de sua conhecida rebeldia, segundo um diagnóstico intrafílmico) e dialogar com os aspectos minuciosos que tornam as produções das décadas de 1960 a 1980 absolutamente geniais em sua capacidade de fazer com que os ancestrais fílmicos do subgênero ‘ação’ sejam urdidos pela inteligência de seus enredos e aparições vilanescas.
Os diálogos recorrentes envolvendo um conflito entre a “velha guarda” da espionagem e as novas práticas profissionais – vide o primeiro encontro entre James Bond e o jovem Q (Ben Whishaw), em que canetas explosivas são descartadas do cardápio tecnológico do espião por serem consideradas antiquadas, e os embates entre M (Judi Dench, sempre majestosa) e o burocrata Gareth Mallory (Ralph Fiennes) sobre os ônus políticos e bélicos do final da Guerra Fria [“continuamos lutando nas sombras...”]– pontuam o roteiro de Neal Purvis, Robert Wade e John Logan com esperteza calculada, encontrando eco magistral na cena em que James Bond “seqüestra” M utilizando um modelo imponente de automóvel clássico (justamente utilizado pelos 007’s de outrora) e na assunção aguardada da personagem de Naomie Harris como sendo a espirituosa (e onipresente nos filmes primevos) senhorita Eve Moneypenny. Ou seja, o cuidado que Sam Mendes dedica em suas obras pessoais à valorização (não apenas nostálgica, mas historicizada) do passado foi definitiva para a genialidade detectada neste ótimo filme.
Não obstante a obsessão por “entradas triunfais” do vilão afetado e muitíssimo bem-interpretado por Javier Bardem justificar um blague mui coerente de 007, o contraste irregular entre a imponência de seus primeiros momentos em cena e a sua derrocada súbita aparece como um dos poucos defeitos estruturais significativos desta obra. Ainda assim, a seqüência que o ex-agente Silva explica a 007 a razão de seu ódio vingativo por M a partir de uma anedota metafórica sobre as mudanças induzidas nos comportamentos de ratos insulares, que, a partir de um confinamento forçado, passariam a se alimentar de sua própria espécie (mais ou menos como os traidores nos filmes de espionagem) é exímia em toda a sua extensão, incluindo a inaudita suspeição de indícios homossexuais no histórico de James Bond, visto que, quando Silva alisa as suas coxas, com intuito assumido de deflorá-lo eroticamente, 007 retruca: “quem te disse que esta seria a minha primeira vez?”.
O assassinato tragicamente estilizado da prostituta Sévérine (Bérénice Marlohe) e o modo sutilmente anunciado com que Silva é esfaqueado enquanto suplica para que M utilize uma mesma bala para dar fim à sua vida e à dela própria confirmam a grandiosidade compositiva deste personagem, obliterada momentamente durante o tiroteio ocorrido na residência em que James Bond morou quando criança e que explica o título do filme, visto que “Skyfall”, palavra que ele se recusa a comentar durante um teste psicotécnico, nada mais é que o nome da chácara onde ele vivia com seus pais falecidos. Mais: o retorno de James Bond ao território que valida a crença de M de que “os órfãos são os melhores recrutas” conecta-se brilhantemente à vinheta musical de abertura do filme, em que a cantora Adele interpreta uma belíssima canção homônima, enquanto signos inicialmente cifrados de um veado, de uma sala de espelhos e de túmulos desfilam para tela, para que, afinal, desemboquem e sejam desvendados com o animal que identifica a propriedade dos Bond, com o estratagema que James ensina a seu criado para que ele atire nos capangas de Silva sem ser atingido e com a descoberta da lápide onde lê-se os nomes de ambos os pais (Andrew e Monique Delacroix Bond) do agente, falecidos na infância do mesmo em condições misteriosas, porém traumáticas e determinantes no enrijecimento de sua personalidade aventureira.
Emoldurando definitivamente a qualidade superior deste filme, temos: a já citada assunção da senhorita Moneypenny e a sua função acessória enquanto amante perpetuamente disponível do agente; a morte da feminina M e a sua substituição mandatária pelo personagem de Ralph Fiennes; a ótima trilha sonora de Thomas Newman, companheiro habitual do diretor, que se funde organicamente com os eventos e não apenas os acompanha pleonasticamente; a maravilhosa direção de fotografia de Roger Deakins, particularmente deslumbrante no último quartel do filme; a recorrente menção ao luto no roteiro, em contextos tramaticamente oportunos (o elíptico obituário de James Bond, a fatalidade do destino de Sévérine, o presente destacado por M em seu testamento, o funeral dos agentes da MI6 mortos num atentado a bomba, a malfadada tentativa de suicídio narrada por Silva); e a encarnação definitiva de Daniel Craig como um cínico mulherengo, emulando principalmente a subestimada e dramática encarnação unitária de George Lazenby como o personagem, no excepcional “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade” (1969, de Peter R. Hunt).
Como acontecia no passado, o alinhamento de aventuras alucinantes não prejudica o estatuto artístico do filme: “007 – Operação Skyfall” é, portanto, o bem-sucedido coroamento de um ciclo, no qual Daniel Craig torna-se internamente merecedor do pronunciamento do jargão característico “Bond. James Bond”! Que ele faça bom uso de seu laurel verbal nas produções vindouras...
Wesley Pereira de Castro.
Polêmicas conceituais à parte, o diagnóstico sobre o personagem que Gilles Lipovetsky menciona em “A Tela Global” cabe perfeitamente na análise deste “007 – Operação Skyfall” como um dos melhores da franquia, visto que, dentre todos os filmes envolvendo o agente britânico nas últimas duas décadas, ele é o que mais avança neste recuo referencial e assume-se com uma homenagem legítima aos tempos áureos da cinessérie, quando ela era realmente cultuada pelo público e seus episódios não eram apenas despejados no mercado como meros ‘blockbusters’ entupidos de explosões e efeitos especiais deslocados.
Nesse sentido, a inusitada opção pelo diretor dramático Sam Mendes na condução desta aventura diz muito sobre os variegados méritos deste filme, que, para além de suas bifurcações temporais – tão legitimadas pelas convenções da diegese quanto as distâncias impressionantemente ultrapassáveis de um continente a outro – fecha um ciclo em relação aos vinte e dois capítulos “oficiais” anteriores (sem contar três títulos não produzidos por Albert R. Broccoli, detentor dos direitos autorais dos romances com o personagem), de modo que, se houvesse uma lógica produtiva estrita na produção destes longas-metragens hodiernos, o próximo filme a ser lançado seria uma regravação do ótimo “007 Contra o Satânico Dr. No” (1962, de Terence Young).
Conforme antecipado por Gilles Lipovetsky, um dos principais estranhamentos trazidos à tona com a vinculação de Daniel Craig ao personagem James Bond está em sua sisudez monogâmica, bastante distinta do caráter bonachão e perenemente lascivo das célebres vivificações de Sean Connery e Roger Moore. Se, no já citado “007 – Cassino Royale”, o que laureia a produção é justamente a falibilidade do personagem – bastante humanizado, afinal de contas – o filme seguinte [“007 – Quantum of Solace” (2008, de Marc Forster)] demonstra-se como um dos mais fracos da cinessérie por causa de sua linearização factual (o contato direto com o final da trama do filme imediatamente anterior rompe a liberdade narrativa dos filmes predecessores) e de sua adesão renitente aos clímaxes amorfos, que acrescentam muito pouco à evolução psicológica do personagem, que, nos filmes contemporâneos, protagoniza “preqüências” das ações levadas a cabo pelos demais intérpretes.
“007 – Operação Skyfall” supera o demérito disfuncional e revela-se como uma das melhores aventuras do personagem justamente por restituir a sua dignidade viril (em nível freudiano, inclusive, visto que o trauma da morte de seus pais durante a infância é assumida como a causa de sua conhecida rebeldia, segundo um diagnóstico intrafílmico) e dialogar com os aspectos minuciosos que tornam as produções das décadas de 1960 a 1980 absolutamente geniais em sua capacidade de fazer com que os ancestrais fílmicos do subgênero ‘ação’ sejam urdidos pela inteligência de seus enredos e aparições vilanescas.
Os diálogos recorrentes envolvendo um conflito entre a “velha guarda” da espionagem e as novas práticas profissionais – vide o primeiro encontro entre James Bond e o jovem Q (Ben Whishaw), em que canetas explosivas são descartadas do cardápio tecnológico do espião por serem consideradas antiquadas, e os embates entre M (Judi Dench, sempre majestosa) e o burocrata Gareth Mallory (Ralph Fiennes) sobre os ônus políticos e bélicos do final da Guerra Fria [“continuamos lutando nas sombras...”]– pontuam o roteiro de Neal Purvis, Robert Wade e John Logan com esperteza calculada, encontrando eco magistral na cena em que James Bond “seqüestra” M utilizando um modelo imponente de automóvel clássico (justamente utilizado pelos 007’s de outrora) e na assunção aguardada da personagem de Naomie Harris como sendo a espirituosa (e onipresente nos filmes primevos) senhorita Eve Moneypenny. Ou seja, o cuidado que Sam Mendes dedica em suas obras pessoais à valorização (não apenas nostálgica, mas historicizada) do passado foi definitiva para a genialidade detectada neste ótimo filme.
Não obstante a obsessão por “entradas triunfais” do vilão afetado e muitíssimo bem-interpretado por Javier Bardem justificar um blague mui coerente de 007, o contraste irregular entre a imponência de seus primeiros momentos em cena e a sua derrocada súbita aparece como um dos poucos defeitos estruturais significativos desta obra. Ainda assim, a seqüência que o ex-agente Silva explica a 007 a razão de seu ódio vingativo por M a partir de uma anedota metafórica sobre as mudanças induzidas nos comportamentos de ratos insulares, que, a partir de um confinamento forçado, passariam a se alimentar de sua própria espécie (mais ou menos como os traidores nos filmes de espionagem) é exímia em toda a sua extensão, incluindo a inaudita suspeição de indícios homossexuais no histórico de James Bond, visto que, quando Silva alisa as suas coxas, com intuito assumido de deflorá-lo eroticamente, 007 retruca: “quem te disse que esta seria a minha primeira vez?”.
O assassinato tragicamente estilizado da prostituta Sévérine (Bérénice Marlohe) e o modo sutilmente anunciado com que Silva é esfaqueado enquanto suplica para que M utilize uma mesma bala para dar fim à sua vida e à dela própria confirmam a grandiosidade compositiva deste personagem, obliterada momentamente durante o tiroteio ocorrido na residência em que James Bond morou quando criança e que explica o título do filme, visto que “Skyfall”, palavra que ele se recusa a comentar durante um teste psicotécnico, nada mais é que o nome da chácara onde ele vivia com seus pais falecidos. Mais: o retorno de James Bond ao território que valida a crença de M de que “os órfãos são os melhores recrutas” conecta-se brilhantemente à vinheta musical de abertura do filme, em que a cantora Adele interpreta uma belíssima canção homônima, enquanto signos inicialmente cifrados de um veado, de uma sala de espelhos e de túmulos desfilam para tela, para que, afinal, desemboquem e sejam desvendados com o animal que identifica a propriedade dos Bond, com o estratagema que James ensina a seu criado para que ele atire nos capangas de Silva sem ser atingido e com a descoberta da lápide onde lê-se os nomes de ambos os pais (Andrew e Monique Delacroix Bond) do agente, falecidos na infância do mesmo em condições misteriosas, porém traumáticas e determinantes no enrijecimento de sua personalidade aventureira.
Emoldurando definitivamente a qualidade superior deste filme, temos: a já citada assunção da senhorita Moneypenny e a sua função acessória enquanto amante perpetuamente disponível do agente; a morte da feminina M e a sua substituição mandatária pelo personagem de Ralph Fiennes; a ótima trilha sonora de Thomas Newman, companheiro habitual do diretor, que se funde organicamente com os eventos e não apenas os acompanha pleonasticamente; a maravilhosa direção de fotografia de Roger Deakins, particularmente deslumbrante no último quartel do filme; a recorrente menção ao luto no roteiro, em contextos tramaticamente oportunos (o elíptico obituário de James Bond, a fatalidade do destino de Sévérine, o presente destacado por M em seu testamento, o funeral dos agentes da MI6 mortos num atentado a bomba, a malfadada tentativa de suicídio narrada por Silva); e a encarnação definitiva de Daniel Craig como um cínico mulherengo, emulando principalmente a subestimada e dramática encarnação unitária de George Lazenby como o personagem, no excepcional “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade” (1969, de Peter R. Hunt).
Como acontecia no passado, o alinhamento de aventuras alucinantes não prejudica o estatuto artístico do filme: “007 – Operação Skyfall” é, portanto, o bem-sucedido coroamento de um ciclo, no qual Daniel Craig torna-se internamente merecedor do pronunciamento do jargão característico “Bond. James Bond”! Que ele faça bom uso de seu laurel verbal nas produções vindouras...
Wesley Pereira de Castro.
sábado, 10 de novembro de 2012
GONZAGA - DE PAI PRA FILHO (Brasil, 2012). Diretor: Breno Silveira.
Por motivos óbvios e bastante aguardados, a comemoração do centenário de Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989), recebedor meritório da antonomásia “o rei do baião”, engendraria a necessidade de uma cinebiografia, o que se tornou mercadologicamente urgente diante da tendência cada vez mais usual das produtoras audiovisuais vinculadas à Rede Globo de Televisão de capitalizar – num viés batizado como “convergente” – até mesmo os detalhes das vidas pessoais dos artistas que ajuda a divulgar.
A contratação de Breno Silveira, consagrado por causa do equivocado e muito rentável “2 Filhos de Francisco” (2005), diminuiu as expectativas positivas acerca deste projeto, pois o fato de este diretor ter como arremedo de estilo menos uma temática recorrente que um problema mal-resolvido entre pai e filho, convertido em chamariz enredístico de todos os seus filmes, concentrou antecipadamente a trama de “Gonzaga – De Pai Pra Filho” num embate parcial entre as duas gerações familiares mencionadas no subtítulo.
A opção por iniciar o filme a partir da perspectiva de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (1945-1991), conhecido como Gonzaguinha – destacando-se evidentemente a ocasião em que o seu sucesso foi matéria de capa da revista Veja – foi muito bem-sucedida, visto que sua trajetória artística desmente paradoxalmente o mote (“filho de gato, gatinho é!”) proferido na rápida, humorística e quase desnecessária participação de João Miguel no trecho inicial do filme, quando associa o talento do jovem Luiz Gonzaga no traquejo com a sanfona à descendência do diligente Mestre Januário. Gonzaguinha, entretanto, não adquire o hábito pela sanfona (fato desdenhado no filme, apesar de um promissor ‘flashback’ sonoro no início, quando Luiz Gonzaga repreende o filho por estar tocando em seu instrumento musical), tornando-se um compositor de MPB e samba muitíssimo mais politizado (e amargurado) que o pai.
Há de se adiantar, portanto, que, apesar de sua incontestável genialidade musical, Luiz Gonzaga foi acusado de defender posicionamentos reacionários, conforme percebido em letras de canções deslumbradas como “Forró de Mané Vito”, “Nordeste Prá Frente” e “Canto Sem Protesto”, assaz entusiásticas, não obstante as duas últimas terem sido lançadas no final da década de 1960, quando o Brasil enfrentava uma ditadura política violenta, que, no filme, é televisivamente noticiada, mentirosamente, a partir de imagens extraídas do documentário “Jango” (1984, de Silvio Tendler).
Ao se mencionar a palavra-chave televisão, vaticina-se que este é o veículo midiático projetado como ideal para a transmissão deste filme, visto que, em mais de uma situação, ele adota uma formatação telenovelesca, em especial na primeira fase da vida de Luiz Gonzaga, a sua adolescência, quando é interpretado sem muita inspiração pelo simpático Land Vieira, e tem sua composição actancial desperdiçada num roteiro que exacerba suas dores amorosas e tenta obliterar sua participação colaborativa, enquanto militar, na Revolução de 1930.
A segunda vivificação de Luiz Gonzaga (a cargo do músico Chambinho do Acordeon), do final de sua mocidade à idade adulta, não é ruim, mas as situações dramáticas que enfrenta não são suficientemente credíveis a partir do roteiro escrito por Patrícia Andrade, exceto quando mostra o cantor e compositor entusiasmado nos palcos ao redor do País. Neste sentido, a reprodução do concerto na laje do Cine Rex, o encontro com o compositor Humberto Teixeira (cuja importância na carreira do cantor é estranhamente negligenciada) e a seleção dos músicos improvisados que se tornam ajudantes de palco são instantes inspirados, bem como a brilhante reconstituição do retorno de Luiz Gonzaga à sua cidade natal (Exu, interior em Pernambuco), numa situação que amalgama as letras de dois dos maiores hinos do cantor [“Respeita Januário” e “Samarica Parteira”], narrativos por excelência.
Se estes instantes fílmicos demonstram que há uma preocupação eminentemente cinematográfica em “Gonzaga – De Pai Pra Filho”, esta é negativamente contrabalançada pelo mau uso da trilha sonora incidental xaroposa de Berna Ceppas (que se presta a reproduzir a melodia de “A Deusa da Minha Rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj, na cena em que Luiz e a mãe de seu filho se conhecem), pela ridícula execução do “Adágio” de Tomaso Albinoni na seqüência em que o cantor descobre que seu filho está com tuberculose, mesma doença que vitimou a mãe do adolescente, e pela cena em que o pai quebra o violão do filho por flagrá-lo cantando “música de comunistas”, cuja pujança dramática é desperdiçada pelo excesso de cortes na edição impessoal (leia-se: mui profissionalizada e tecnicamente asséptica) de Vicente Kubrusly.
Apesar de o filme servir muito mais para atender às ansiedades internas do diretor que para apresentar Luiz Gonzaga às novas gerações, ele foi sobremaneira exitoso neste aspecto, aproveitando-se muito bem da comparação com documentações reais (gravações em cassete doméstico, fotografias, vídeos, etc.) de momentos célebres da vida do artista, além de elucidar aspectos complexos de sua relação com o filho Gonzaguinha, posto que, até 1981, graças à turnê “A Vida do Viajante”, pai e filho nunca tinham compartilhado um mesmo palco, não obstante ambos serem músicos conceituados e aclamados nacionalmente. As opções rememorativas para justificar a revolta de Gonzaguinha são precipitadas, mas o filme acerta ao não tomar partido nem de um nem de outro, aceitando o perdão e a admissão de erros por parte de ambos, numa seqüência reconciliatória visualmente forçada (exageradamente filmada à contraluz pelo competente Adrian Teijido) que, afinal, é verossímil e importante para o desfecho informativamente emocionante do filme, que conta com as excelentes interpretações de Adélio Lima e Júlio Andrade, responsáveis pelas vivificações dos artistas nas fases finais de suas vidas.
Aliás, deve ser destacada, para além das impecáveis atuações, a impressionante similaridade fisionômica – e, principalmente, vocal – entre os dois atores e os personagens biografados, tanto que, nalguns momentos, era difícil distinguir quando o filme estava a utilizar gravações reais ou ficcionais. Neste sentido, a escolha destes dois membros do elenco é digna de aplausos, o mesmo sendo dito para o adolescente Alison Santos (que interpreta Gonzaguinha quando criança), para Silvia Buarque (competente como a sua mãe adotiva Dina), para Cássio Scapin (magnífico como Ary Barroso) e para Luciano Quirino (firme e sincero como o amigo Xavier).
Num saldo geral, “Gonzaga – De Pai Pra Filho” é bastante regular enquanto produto audiovisual sujeito a uma avaliação crítica e irregular no que tange ao seu desenvolvimento rítmico. Dentre os seus méritos adicionais, estão a agradável canção-tema de Gilberto Gil (“Mundo do Lua”, um tanto deslocada em relação ao restante do filme), uma convincente adoção da narrativa oral entrecortada por lembranças visualizadas (o que reforça que esta não é uma biografia em sentido estrito, mas a análise coesa de um motivo relacional), e a inebriante execução de obras-primas musicais tanto de Luiz Gonzaga (“Qui Nem Jiló”. “Asa Branca”, a já citada “A Vida do Viajante”, em dueto com o filho) quanto de Gonzaguinha (a magistralmente aproveitada “É Preciso” e a inebriante “O Que É, o Que É?”, ao final, que intima a platéia a cantar junto).
As más atuações de Nanda Costa (Odaléia) e Magdale Alves (Helena) como as esposas do cantor e as inversões emotivas do enredo (as já mencionadas seqüências passadas em Exu, por exemplo) surgem como defeitos estruturais do filme, que tem como maior nódoa a própria vinculação ao projeto anistórico da Globo Filmes, que, conforme destacado na cena em que Helena e Luiz Gonzaga assistem à exposição do golpe militar de 1964 pela televisão, corroboram a afirmação do teórico da Economia Política da Comunicação Cesar Bolaño, quando este atesta que a Rede Globo de Televisão (e, por extensão, suas derivadas institucionais) “tende a dissolver inclusive tradições da nossa cultura cinematográfica, visto que a concorrência obriga a empresa vencedora a recontar a história do campo a seu favor”. Este é o problema maior do filme: ser rendido e subserviente, adjetivos que se adéquam muito bem aos propósitos falsamente conciliatórios do diretor Breno Silveira!
Wesley Pereira de Castro.
A contratação de Breno Silveira, consagrado por causa do equivocado e muito rentável “2 Filhos de Francisco” (2005), diminuiu as expectativas positivas acerca deste projeto, pois o fato de este diretor ter como arremedo de estilo menos uma temática recorrente que um problema mal-resolvido entre pai e filho, convertido em chamariz enredístico de todos os seus filmes, concentrou antecipadamente a trama de “Gonzaga – De Pai Pra Filho” num embate parcial entre as duas gerações familiares mencionadas no subtítulo.
A opção por iniciar o filme a partir da perspectiva de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (1945-1991), conhecido como Gonzaguinha – destacando-se evidentemente a ocasião em que o seu sucesso foi matéria de capa da revista Veja – foi muito bem-sucedida, visto que sua trajetória artística desmente paradoxalmente o mote (“filho de gato, gatinho é!”) proferido na rápida, humorística e quase desnecessária participação de João Miguel no trecho inicial do filme, quando associa o talento do jovem Luiz Gonzaga no traquejo com a sanfona à descendência do diligente Mestre Januário. Gonzaguinha, entretanto, não adquire o hábito pela sanfona (fato desdenhado no filme, apesar de um promissor ‘flashback’ sonoro no início, quando Luiz Gonzaga repreende o filho por estar tocando em seu instrumento musical), tornando-se um compositor de MPB e samba muitíssimo mais politizado (e amargurado) que o pai.
Há de se adiantar, portanto, que, apesar de sua incontestável genialidade musical, Luiz Gonzaga foi acusado de defender posicionamentos reacionários, conforme percebido em letras de canções deslumbradas como “Forró de Mané Vito”, “Nordeste Prá Frente” e “Canto Sem Protesto”, assaz entusiásticas, não obstante as duas últimas terem sido lançadas no final da década de 1960, quando o Brasil enfrentava uma ditadura política violenta, que, no filme, é televisivamente noticiada, mentirosamente, a partir de imagens extraídas do documentário “Jango” (1984, de Silvio Tendler).
Ao se mencionar a palavra-chave televisão, vaticina-se que este é o veículo midiático projetado como ideal para a transmissão deste filme, visto que, em mais de uma situação, ele adota uma formatação telenovelesca, em especial na primeira fase da vida de Luiz Gonzaga, a sua adolescência, quando é interpretado sem muita inspiração pelo simpático Land Vieira, e tem sua composição actancial desperdiçada num roteiro que exacerba suas dores amorosas e tenta obliterar sua participação colaborativa, enquanto militar, na Revolução de 1930.
A segunda vivificação de Luiz Gonzaga (a cargo do músico Chambinho do Acordeon), do final de sua mocidade à idade adulta, não é ruim, mas as situações dramáticas que enfrenta não são suficientemente credíveis a partir do roteiro escrito por Patrícia Andrade, exceto quando mostra o cantor e compositor entusiasmado nos palcos ao redor do País. Neste sentido, a reprodução do concerto na laje do Cine Rex, o encontro com o compositor Humberto Teixeira (cuja importância na carreira do cantor é estranhamente negligenciada) e a seleção dos músicos improvisados que se tornam ajudantes de palco são instantes inspirados, bem como a brilhante reconstituição do retorno de Luiz Gonzaga à sua cidade natal (Exu, interior em Pernambuco), numa situação que amalgama as letras de dois dos maiores hinos do cantor [“Respeita Januário” e “Samarica Parteira”], narrativos por excelência.
Se estes instantes fílmicos demonstram que há uma preocupação eminentemente cinematográfica em “Gonzaga – De Pai Pra Filho”, esta é negativamente contrabalançada pelo mau uso da trilha sonora incidental xaroposa de Berna Ceppas (que se presta a reproduzir a melodia de “A Deusa da Minha Rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj, na cena em que Luiz e a mãe de seu filho se conhecem), pela ridícula execução do “Adágio” de Tomaso Albinoni na seqüência em que o cantor descobre que seu filho está com tuberculose, mesma doença que vitimou a mãe do adolescente, e pela cena em que o pai quebra o violão do filho por flagrá-lo cantando “música de comunistas”, cuja pujança dramática é desperdiçada pelo excesso de cortes na edição impessoal (leia-se: mui profissionalizada e tecnicamente asséptica) de Vicente Kubrusly.
Apesar de o filme servir muito mais para atender às ansiedades internas do diretor que para apresentar Luiz Gonzaga às novas gerações, ele foi sobremaneira exitoso neste aspecto, aproveitando-se muito bem da comparação com documentações reais (gravações em cassete doméstico, fotografias, vídeos, etc.) de momentos célebres da vida do artista, além de elucidar aspectos complexos de sua relação com o filho Gonzaguinha, posto que, até 1981, graças à turnê “A Vida do Viajante”, pai e filho nunca tinham compartilhado um mesmo palco, não obstante ambos serem músicos conceituados e aclamados nacionalmente. As opções rememorativas para justificar a revolta de Gonzaguinha são precipitadas, mas o filme acerta ao não tomar partido nem de um nem de outro, aceitando o perdão e a admissão de erros por parte de ambos, numa seqüência reconciliatória visualmente forçada (exageradamente filmada à contraluz pelo competente Adrian Teijido) que, afinal, é verossímil e importante para o desfecho informativamente emocionante do filme, que conta com as excelentes interpretações de Adélio Lima e Júlio Andrade, responsáveis pelas vivificações dos artistas nas fases finais de suas vidas.
Aliás, deve ser destacada, para além das impecáveis atuações, a impressionante similaridade fisionômica – e, principalmente, vocal – entre os dois atores e os personagens biografados, tanto que, nalguns momentos, era difícil distinguir quando o filme estava a utilizar gravações reais ou ficcionais. Neste sentido, a escolha destes dois membros do elenco é digna de aplausos, o mesmo sendo dito para o adolescente Alison Santos (que interpreta Gonzaguinha quando criança), para Silvia Buarque (competente como a sua mãe adotiva Dina), para Cássio Scapin (magnífico como Ary Barroso) e para Luciano Quirino (firme e sincero como o amigo Xavier).
Num saldo geral, “Gonzaga – De Pai Pra Filho” é bastante regular enquanto produto audiovisual sujeito a uma avaliação crítica e irregular no que tange ao seu desenvolvimento rítmico. Dentre os seus méritos adicionais, estão a agradável canção-tema de Gilberto Gil (“Mundo do Lua”, um tanto deslocada em relação ao restante do filme), uma convincente adoção da narrativa oral entrecortada por lembranças visualizadas (o que reforça que esta não é uma biografia em sentido estrito, mas a análise coesa de um motivo relacional), e a inebriante execução de obras-primas musicais tanto de Luiz Gonzaga (“Qui Nem Jiló”. “Asa Branca”, a já citada “A Vida do Viajante”, em dueto com o filho) quanto de Gonzaguinha (a magistralmente aproveitada “É Preciso” e a inebriante “O Que É, o Que É?”, ao final, que intima a platéia a cantar junto).
As más atuações de Nanda Costa (Odaléia) e Magdale Alves (Helena) como as esposas do cantor e as inversões emotivas do enredo (as já mencionadas seqüências passadas em Exu, por exemplo) surgem como defeitos estruturais do filme, que tem como maior nódoa a própria vinculação ao projeto anistórico da Globo Filmes, que, conforme destacado na cena em que Helena e Luiz Gonzaga assistem à exposição do golpe militar de 1964 pela televisão, corroboram a afirmação do teórico da Economia Política da Comunicação Cesar Bolaño, quando este atesta que a Rede Globo de Televisão (e, por extensão, suas derivadas institucionais) “tende a dissolver inclusive tradições da nossa cultura cinematográfica, visto que a concorrência obriga a empresa vencedora a recontar a história do campo a seu favor”. Este é o problema maior do filme: ser rendido e subserviente, adjetivos que se adéquam muito bem aos propósitos falsamente conciliatórios do diretor Breno Silveira!
Wesley Pereira de Castro.
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segunda-feira, 5 de novembro de 2012
MAGIC MIKE ('Magic Mike') EUA, 2012. Direção: Steven Soderbergh.
Steven Soderbergh é um diretor prolífico que transita competentemente por diversos gêneros cinematográficos: quando pronunciada, esta frase verídica denota pelo menos dois grandes encômios em relação à proveitosa trajetória deste cineasta em Hollywood, onde dispõe de cacife suficiente para erigir uma produtora de filmes independentes e realizar diversas atividades técnicas simultâneas (além de dirigir, ele costuma fotografar e montar seus filmes, entre outras funções). Porém, tanto um quanto o outro atributo esbarram num problema taxonômico essencial: é difícil reconhecer a temática recorrente dos filmes soderberghianos, identificar aquilo que pode ser associado especificamente ao seu estilo directivo.
Sendo responsável por filmes tão radicalmente distintos quanto o introspectivo “Kafka” (1991) e o extrovertido “Onze Homens e um Segredo” (2001), este diretor é digno de exaltações laudatórias pelo modo como consegue transitar entre terrenos enredísticos tão divergentes, mas que, afinal, são permeados por um rasgo tornado deveras ostensivo em “Magic Mike”: a predominância do superego enquanto instância subversora de uma determinada situação (moral).
Por mais evidente que esta predominância pudesse ser verificada no que tange à assunção tardia – porém efetiva e corrosiva – da verdade em “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989), à compreensão das mentiras sobrevivenciais em “O Inventor de Ilusões” (1993) ou às persecuções conscienciosas que se manifestam diante de condutas reincidentes em “Obsessão” (1995) e “Solaris” (2002), para ficar em apenas alguns exemplos, em “Magic Mike” ela ficou muitíssimo evidente.
Talvez o filme com que esta produção mais se coadune estilisticamente seja “Confissões de uma Garota de Programa” (2009), mas a impossibilidade provisória de ter acesso a ele leva-nos a compará-lo com “Full Frontal” (2002), cuja temática mais ampla e pretensiosa não elimina as similaridades formais com o percalço tramático do filme mais recente.
Roteirizado pelo novato Reid Carolin, “Magic Mike”, sinopticamente, é demasiado previsível: um jovem que sonha em ter o seu próprio negócio como restaurador de móveis trabalha às noites como ‘stripper’. Quando conhece um rapaz desorientado que insiste em ser seu melhor amigo, ensina a ele os estratagemas da profissão, mas a adesão do rapaz aos vícios da vida noturna faz com que ele se sinta traído, buscando consolo na irmã conservadora do mesmo, por quem, afinal, se apaixona. Desde a primeira cena do filme, é possível adivinhar como a estória vai acabar, mas, se algo surpreende neste enredo, isso diz respeito à progressiva diminuição da relevância no personagem-título (Channing Tatum) na condução da trama, visto que ele praticamente se torna um elemento psicológico intermediário entre os afãs pós-adolescentes do estouvado Adam (Alex Pettyfer) e as determinações conservadoras de sua irmã Brooke (Cody Horn), culminando para a predominância da última enquanto personagem com quem o roteiro mais se identifica moralmente, depois que a instável Joanna (Olivia Munn) demonstra-se comprometida com um rapaz cujo estilo de vida é muito diverso daquele que Mike se vincula profissionalmente, mas insiste em não se atrelar na vida pessoal.
Tal predominância é realçada pelo modo como a direção não se prende a apenas uma perspectiva personalística, seguindo à risca um conselho providencial do proprietário da casa de eventos em que Adam e Mike trabalham: “olhe para todas as mulheres [e, por extensão, pessoas], mas não foque em nenhuma!”. Se, num filme menos integrado a uma sutil recorrência temática, isto seria um grave problema, no filme soderberghiano, este é um aspecto elogiável, ainda que desenvolvido de maneira imponderada.
Prejudicado principalmente pelas más atuações de seu belo elenco (no sentido fisiculturista do termo) – em que a composição sagaz de Matthew McConaughey é uma honrosa exceção – “Magic Mike” transfere para o espectador um conflito que não é bem resolvido no filme: se os cacoetes da direção versátil de Steven Soderbergh (realçados pela montagem eficiente de Mary Ann Bernard, um dos nomes que ele utiliza para se “esconder” nos créditos) e a ótima direção de fotografia do próprio cineasta (sob o pseudônimo Peter Andrews) impressionam, a composição dos personagens e os clichês redentores do roteiro incomodam negativamente. Porém, quando os ‘strippers’ estão no palco, o filme atinge clímaxes impressionantes, tanto no que diz respeito ao distanciamento crítico com que emoldura a sensualidade dos dançarinos quanto no perfeito entrosamento entre os espetáculos intradiegéticos e a demonstração de uma inteligência bem-vinda no cinema contemporâneo. Em linhas gerais, o filme é tecnicamente primoroso, justificando os elogios que Steven Soderbergh angaria pela agilidade e coerência com que conduz os seus projetos, já tendo alcançado, inclusive, a proeza de ser indicado por dois filmes bastante diversos numa mesma cerimônia do prêmio Oscar [no caso, o extraordinário “Traffic” (2000) e o eficiente “Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento” (2000)].
Apesar de ser um filme “menor” em seu numeroso ‘corpus’ – o que está longe de ser um demérito para um cineasta que realizou obras de grande fôlego político como “Che 2 – A Guerrilha” (2008) e “Contágio” (2011) – “Magic Mike” é assaz elucidativo acerca das intenções sub-reptícias que atravessam a impressionante habilidade de Steven Soderbergh em agradar concomitantemente público e crítica com filmes que misturam gêneros estadunidenses canônicos [o romance e o policial em “Irresistível Paixão” (1998); o drama histórico e o suspense em “O Segredo de Berlim” (2006)] e, ao mesmo tempo, erigir marcas registradas que parecem diluídas em sua sutileza, mas que manifestam-se certeiramente no rigor que ele imprime em cada obra. Neste sentido, a aplicação analítica da correlação paradigmática entre “Estados Unidos da América, dinheiro e idiotas” (mencionada pelos ‘strippers’ num momento de descontração), aliada à deslumbrante seqüência em que os mesmos parodiam o militarismo estadunidense num ‘show’ de 04 de julho (feriado da independência norte-americana) e a recorrência de motivos proto-empresariais/empreendedores nos diálogos, assume-se como temática sustentacular da predominância do superego que é enaltecida na condenação das drogas e do enriquecimento fácil e imoral que perpassa praticamente todos os seus filmes.
Steven Soderbergh é um cineasta que merece bastante atenção e esforço classificatório, visto que, nem bem as imagens de “Magic Mike” se sedimentam nas mentes dos espectadores e o seu diretor já está novamente comprometido com a pós-produção de dois filmes simultâneos [o televisivo “Behind the Candelabra” (2013), sobre a vida do célebre pianista Liberace, e “Side Effects” (2013), categorizado como ‘thriller’ dramático]. Definitivamente, a vastidão curricular deste cineasta impressiona, ainda que seja precipitado defini-lo como gênio!
Wesley Pereira de Castro.
Sendo responsável por filmes tão radicalmente distintos quanto o introspectivo “Kafka” (1991) e o extrovertido “Onze Homens e um Segredo” (2001), este diretor é digno de exaltações laudatórias pelo modo como consegue transitar entre terrenos enredísticos tão divergentes, mas que, afinal, são permeados por um rasgo tornado deveras ostensivo em “Magic Mike”: a predominância do superego enquanto instância subversora de uma determinada situação (moral).
Por mais evidente que esta predominância pudesse ser verificada no que tange à assunção tardia – porém efetiva e corrosiva – da verdade em “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989), à compreensão das mentiras sobrevivenciais em “O Inventor de Ilusões” (1993) ou às persecuções conscienciosas que se manifestam diante de condutas reincidentes em “Obsessão” (1995) e “Solaris” (2002), para ficar em apenas alguns exemplos, em “Magic Mike” ela ficou muitíssimo evidente.
Talvez o filme com que esta produção mais se coadune estilisticamente seja “Confissões de uma Garota de Programa” (2009), mas a impossibilidade provisória de ter acesso a ele leva-nos a compará-lo com “Full Frontal” (2002), cuja temática mais ampla e pretensiosa não elimina as similaridades formais com o percalço tramático do filme mais recente.
Roteirizado pelo novato Reid Carolin, “Magic Mike”, sinopticamente, é demasiado previsível: um jovem que sonha em ter o seu próprio negócio como restaurador de móveis trabalha às noites como ‘stripper’. Quando conhece um rapaz desorientado que insiste em ser seu melhor amigo, ensina a ele os estratagemas da profissão, mas a adesão do rapaz aos vícios da vida noturna faz com que ele se sinta traído, buscando consolo na irmã conservadora do mesmo, por quem, afinal, se apaixona. Desde a primeira cena do filme, é possível adivinhar como a estória vai acabar, mas, se algo surpreende neste enredo, isso diz respeito à progressiva diminuição da relevância no personagem-título (Channing Tatum) na condução da trama, visto que ele praticamente se torna um elemento psicológico intermediário entre os afãs pós-adolescentes do estouvado Adam (Alex Pettyfer) e as determinações conservadoras de sua irmã Brooke (Cody Horn), culminando para a predominância da última enquanto personagem com quem o roteiro mais se identifica moralmente, depois que a instável Joanna (Olivia Munn) demonstra-se comprometida com um rapaz cujo estilo de vida é muito diverso daquele que Mike se vincula profissionalmente, mas insiste em não se atrelar na vida pessoal.
Tal predominância é realçada pelo modo como a direção não se prende a apenas uma perspectiva personalística, seguindo à risca um conselho providencial do proprietário da casa de eventos em que Adam e Mike trabalham: “olhe para todas as mulheres [e, por extensão, pessoas], mas não foque em nenhuma!”. Se, num filme menos integrado a uma sutil recorrência temática, isto seria um grave problema, no filme soderberghiano, este é um aspecto elogiável, ainda que desenvolvido de maneira imponderada.
Prejudicado principalmente pelas más atuações de seu belo elenco (no sentido fisiculturista do termo) – em que a composição sagaz de Matthew McConaughey é uma honrosa exceção – “Magic Mike” transfere para o espectador um conflito que não é bem resolvido no filme: se os cacoetes da direção versátil de Steven Soderbergh (realçados pela montagem eficiente de Mary Ann Bernard, um dos nomes que ele utiliza para se “esconder” nos créditos) e a ótima direção de fotografia do próprio cineasta (sob o pseudônimo Peter Andrews) impressionam, a composição dos personagens e os clichês redentores do roteiro incomodam negativamente. Porém, quando os ‘strippers’ estão no palco, o filme atinge clímaxes impressionantes, tanto no que diz respeito ao distanciamento crítico com que emoldura a sensualidade dos dançarinos quanto no perfeito entrosamento entre os espetáculos intradiegéticos e a demonstração de uma inteligência bem-vinda no cinema contemporâneo. Em linhas gerais, o filme é tecnicamente primoroso, justificando os elogios que Steven Soderbergh angaria pela agilidade e coerência com que conduz os seus projetos, já tendo alcançado, inclusive, a proeza de ser indicado por dois filmes bastante diversos numa mesma cerimônia do prêmio Oscar [no caso, o extraordinário “Traffic” (2000) e o eficiente “Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento” (2000)].
Apesar de ser um filme “menor” em seu numeroso ‘corpus’ – o que está longe de ser um demérito para um cineasta que realizou obras de grande fôlego político como “Che 2 – A Guerrilha” (2008) e “Contágio” (2011) – “Magic Mike” é assaz elucidativo acerca das intenções sub-reptícias que atravessam a impressionante habilidade de Steven Soderbergh em agradar concomitantemente público e crítica com filmes que misturam gêneros estadunidenses canônicos [o romance e o policial em “Irresistível Paixão” (1998); o drama histórico e o suspense em “O Segredo de Berlim” (2006)] e, ao mesmo tempo, erigir marcas registradas que parecem diluídas em sua sutileza, mas que manifestam-se certeiramente no rigor que ele imprime em cada obra. Neste sentido, a aplicação analítica da correlação paradigmática entre “Estados Unidos da América, dinheiro e idiotas” (mencionada pelos ‘strippers’ num momento de descontração), aliada à deslumbrante seqüência em que os mesmos parodiam o militarismo estadunidense num ‘show’ de 04 de julho (feriado da independência norte-americana) e a recorrência de motivos proto-empresariais/empreendedores nos diálogos, assume-se como temática sustentacular da predominância do superego que é enaltecida na condenação das drogas e do enriquecimento fácil e imoral que perpassa praticamente todos os seus filmes.
Steven Soderbergh é um cineasta que merece bastante atenção e esforço classificatório, visto que, nem bem as imagens de “Magic Mike” se sedimentam nas mentes dos espectadores e o seu diretor já está novamente comprometido com a pós-produção de dois filmes simultâneos [o televisivo “Behind the Candelabra” (2013), sobre a vida do célebre pianista Liberace, e “Side Effects” (2013), categorizado como ‘thriller’ dramático]. Definitivamente, a vastidão curricular deste cineasta impressiona, ainda que seja precipitado defini-lo como gênio!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 4 de novembro de 2012
FRANKENWEENIE ('Frankenweenie') EUA, 2012. Direção: Tim Burton.
Numa das cenas mais propositalmente suspeitas, porém incisivas, deste filme, o pai do protagonista infantil exibe diante dele dois garfos – um espetando um camarão; outro, um pedaço de carne bovina – e discorre sobre a possibilidade de coadunar duas opções aparentemente incongruentes numa mesma atividade. Segundo este personagem, frente a um dilema acerca do que escolher, o mais adequado seria amalgamar ambas as proposições, discurso que vem servindo para justificar a carreira de Tim Burton desde que ele começou a trabalhar como animador nos Estúdios Disney, onde concebeu filmes fantasiosos que são, ao mesmo tempo, lúgubres e autorais, conforme o seu realizador deseja, e simpáticos e bem-sucedidos comercialmente, conforme os seus produtores exigem.
Sendo “Frankenweenie” a regravação de um curta-metragem homônimo que o diretor realizou em 1984, ainda no início de sua carreira, é muito coerente e oportuno que tal discurso paterno seja tão ostensivamente compartilhado com o espectador (os garfos são focalizados sob o ponto de vista do personagem aconselhador, inclusive): mais uma vez, Tim Burton empreende um filme que lhe permite fazer as pazes consigo mesmo!
Tendo se dedicado, nos últimos anos, à refeitura de obras anteriormente realizadas por outrem – com resultados que, salvo “Sombras da Noite” (2012), estão aquém do esperado, tanto num cotejo com os alvitres do próprio diretor quanto com os filmes originais – Tim Burton aproveita cada fotograma de “Frankenweenie” para citar a si mesmo e justificar a qualidade técnica, emocional e conteudística de seu conjunto de obra: para além de referências pontuais e geniais a clássicos como “A Noiva de Frankenstein” (1935, de James Whale), “O Vampiro da Noite” (1958, de Terence Fisher, exibido na TV) e “Gremlins” (1984, de Joe Dante), o principal alvo citacional desta obra são mesmo as produções anteriores de Tim Burton, meritórias e suficientemente singulares para justificarem esta homenagem sem recair na autocomplacência ou na bazófia.
Por mais que alguns espectadores não percebam que o nome da personagem dublada por Winona Ryder neste filme faz menção à atriz (Elsa Lanchester) que interpreta a personagem-título do filme whaleniano destacado (cuja famosa mecha branca no cabelo vertical é incutida na cadelinha Persephone), que a tartaruga de um dos colegas de Victor traz à tona o nome da escritora londrina que escreveu a obra literária capital em que Tim Burton se inspirou [“Frankenstein” (1818), de Mary Shelley] ou que a amalgamação entre um gato e um morcego menciona humoristicamente o frenesi animalesco filme danteano, ainda assim, este filme é prenhe de diversão tragicômica, justificando mais uma vez a acertada incursão à mesa do pai de Victor Frankenstein (dublado muito convenientemente por Martin Short).
Entretanto, a fruição adequada deste filme suplica pelo reconhecimento das características insignes do estilo burtoniano. Não apenas por estender muito bem (exceto por alguns aspectos de sua meia-hora final) a trama do curta-metragem homônimo “Frankenweenie” (1984), em que um garotinho revive o amado cachorrinho que fora atropelado, este filme chama positivamente a atenção dos fãs do diretor desde a sua seqüência metalingüística inicial, quando, ao apresentar para a família um filme que realizara em sua própria casa, o protagonista infantil Victor Frankenstein (dublado por Charlie Tahan) demonstra-se como uma reencarnação personalística do artista biografado em “Ed Wood” (1994), exibindo situações que já foram satiricamente representadas em “Marte Ataca!” (1996).
O plano geral que exibe as fachadas da vizinhança da família Frankenstein parece uma nítida versão em preto-e-branco do cenário de “Edward Mãos de Tesoura” (1990), o mesmo sendo dito acerca do sótão da casa do protagonista, em que ele se diverte solitariamente tanto quanto o garotinho atormentado que intitula o genial curta-metragem “Vincent” (1982). Tal qual o personagem principal de “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (1985), Victor locomove-se numa bicicleta e, quando está a realizar o seu grande experimento de reanimação, serve-se do auxílio de uma pipa em formato de morcego, catapultando-nos mnemonicamente direto para “Batman” (1988), filme que deu projeção comercial ao cineasta.
Na cena em que o jovem aprendiz de cientista desenterra o corpo de seu animalzinho, a ambientação do cemitério remete a “Os Fantasmas se Divertem” (1988), sem contar que a portentosa entrada em cena do professor Rzykruski (dublado por Martin Landau, intérprete do ator Bela Lugosi numa das obras-primas do diretor) reinstala um elogio à criatividade dos seres lutuosos que encontra eco em todas as obras anteriormente mencionadas, incluindo a sanha na persecução de objetivos que motivava o atribulado protagonista de “Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (2007), cuja trilha sonora é assemelhada aos crescendos adotados pelo músico Danny Elfman neste filme mais recente, ainda que a partitura à qual o seu mais recente trabalho esteja sendo comparado seja uma das poucas ocasiões em que ele não colaborou com o diretor.
Demonstrada a exitosa reiteração dos caracteres burtonianos, até mesmo através dos elementos mais discretos da direção de arte e do estilo de animação – obviamente assemelhado ao encantatório “A Noiva-Cadáver” (2005, co-dirigido por Mike Johnson), lamenta-se que, mais uma vez, o roteiro de John August – colaborador habitual do diretor em seus filmes recentes – não sustente a atmosfera de autenticidade prometida no início e descambe para um clímax explosivo, clicheroso, desengonçado e pouco interessante (a monstruosa ressurreição mutante dos cadáveres dos animaizinhos dos colegas de Victor), que, apesar de confirmar a veracidade das palavras do professor Rzykruski sobre a necessidade de se realizar experimentos científicos com paixão, não esconde a convencionalidade de seus intentos no que diz respeito à obsedação do público infanto-juvenil do filme, acostumado a seqüências semelhantes nas outras produções dos estúdios Disney. Entretanto, a cena derradeira da produção é belíssima, mostrando os cachorros Sparky e Persephone trocando choques elétricos nasais de forma amorosa, enquanto a canção “Strange Love”, interpretada por Karen O, começa a ressoar na apresentação dos créditos finais, onde o diretor inclui um bem-vindo agradecimento a Barret Oliver, Shelley Duvall e Daniel Stern, atores do curta-metragem que deu origem a este filme, afinal, muito enternecedor em toda a comoção zoofílica que transmite.
A montagem de cenas com a expressão inane do entristecido Victor, depois que Sparky é atropelado, e as engraçadas situações em que pedaços do corpo do cachorro ressuscitado caem, mas que seu dono logo se antecipa em dizer que irá consertar, validam magnanimemente os versos da canção-tema do filme, que apregoa que “quando há beleza no interior, não há nada em seu exterior que a modifique”. É o que acontece em relação ao filme como um todo, que possui muitos equívocos, conflitos produtivos e desvios roteirísticos, mas, no que tange a emoção e coerência autoral, cumpre muitíssimo bem o seu papel: faz chorar, de tão belo que é!
Wesley Pereira de Castro.
Sendo “Frankenweenie” a regravação de um curta-metragem homônimo que o diretor realizou em 1984, ainda no início de sua carreira, é muito coerente e oportuno que tal discurso paterno seja tão ostensivamente compartilhado com o espectador (os garfos são focalizados sob o ponto de vista do personagem aconselhador, inclusive): mais uma vez, Tim Burton empreende um filme que lhe permite fazer as pazes consigo mesmo!
Tendo se dedicado, nos últimos anos, à refeitura de obras anteriormente realizadas por outrem – com resultados que, salvo “Sombras da Noite” (2012), estão aquém do esperado, tanto num cotejo com os alvitres do próprio diretor quanto com os filmes originais – Tim Burton aproveita cada fotograma de “Frankenweenie” para citar a si mesmo e justificar a qualidade técnica, emocional e conteudística de seu conjunto de obra: para além de referências pontuais e geniais a clássicos como “A Noiva de Frankenstein” (1935, de James Whale), “O Vampiro da Noite” (1958, de Terence Fisher, exibido na TV) e “Gremlins” (1984, de Joe Dante), o principal alvo citacional desta obra são mesmo as produções anteriores de Tim Burton, meritórias e suficientemente singulares para justificarem esta homenagem sem recair na autocomplacência ou na bazófia.
Por mais que alguns espectadores não percebam que o nome da personagem dublada por Winona Ryder neste filme faz menção à atriz (Elsa Lanchester) que interpreta a personagem-título do filme whaleniano destacado (cuja famosa mecha branca no cabelo vertical é incutida na cadelinha Persephone), que a tartaruga de um dos colegas de Victor traz à tona o nome da escritora londrina que escreveu a obra literária capital em que Tim Burton se inspirou [“Frankenstein” (1818), de Mary Shelley] ou que a amalgamação entre um gato e um morcego menciona humoristicamente o frenesi animalesco filme danteano, ainda assim, este filme é prenhe de diversão tragicômica, justificando mais uma vez a acertada incursão à mesa do pai de Victor Frankenstein (dublado muito convenientemente por Martin Short).
Entretanto, a fruição adequada deste filme suplica pelo reconhecimento das características insignes do estilo burtoniano. Não apenas por estender muito bem (exceto por alguns aspectos de sua meia-hora final) a trama do curta-metragem homônimo “Frankenweenie” (1984), em que um garotinho revive o amado cachorrinho que fora atropelado, este filme chama positivamente a atenção dos fãs do diretor desde a sua seqüência metalingüística inicial, quando, ao apresentar para a família um filme que realizara em sua própria casa, o protagonista infantil Victor Frankenstein (dublado por Charlie Tahan) demonstra-se como uma reencarnação personalística do artista biografado em “Ed Wood” (1994), exibindo situações que já foram satiricamente representadas em “Marte Ataca!” (1996).
O plano geral que exibe as fachadas da vizinhança da família Frankenstein parece uma nítida versão em preto-e-branco do cenário de “Edward Mãos de Tesoura” (1990), o mesmo sendo dito acerca do sótão da casa do protagonista, em que ele se diverte solitariamente tanto quanto o garotinho atormentado que intitula o genial curta-metragem “Vincent” (1982). Tal qual o personagem principal de “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (1985), Victor locomove-se numa bicicleta e, quando está a realizar o seu grande experimento de reanimação, serve-se do auxílio de uma pipa em formato de morcego, catapultando-nos mnemonicamente direto para “Batman” (1988), filme que deu projeção comercial ao cineasta.
Na cena em que o jovem aprendiz de cientista desenterra o corpo de seu animalzinho, a ambientação do cemitério remete a “Os Fantasmas se Divertem” (1988), sem contar que a portentosa entrada em cena do professor Rzykruski (dublado por Martin Landau, intérprete do ator Bela Lugosi numa das obras-primas do diretor) reinstala um elogio à criatividade dos seres lutuosos que encontra eco em todas as obras anteriormente mencionadas, incluindo a sanha na persecução de objetivos que motivava o atribulado protagonista de “Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (2007), cuja trilha sonora é assemelhada aos crescendos adotados pelo músico Danny Elfman neste filme mais recente, ainda que a partitura à qual o seu mais recente trabalho esteja sendo comparado seja uma das poucas ocasiões em que ele não colaborou com o diretor.
Demonstrada a exitosa reiteração dos caracteres burtonianos, até mesmo através dos elementos mais discretos da direção de arte e do estilo de animação – obviamente assemelhado ao encantatório “A Noiva-Cadáver” (2005, co-dirigido por Mike Johnson), lamenta-se que, mais uma vez, o roteiro de John August – colaborador habitual do diretor em seus filmes recentes – não sustente a atmosfera de autenticidade prometida no início e descambe para um clímax explosivo, clicheroso, desengonçado e pouco interessante (a monstruosa ressurreição mutante dos cadáveres dos animaizinhos dos colegas de Victor), que, apesar de confirmar a veracidade das palavras do professor Rzykruski sobre a necessidade de se realizar experimentos científicos com paixão, não esconde a convencionalidade de seus intentos no que diz respeito à obsedação do público infanto-juvenil do filme, acostumado a seqüências semelhantes nas outras produções dos estúdios Disney. Entretanto, a cena derradeira da produção é belíssima, mostrando os cachorros Sparky e Persephone trocando choques elétricos nasais de forma amorosa, enquanto a canção “Strange Love”, interpretada por Karen O, começa a ressoar na apresentação dos créditos finais, onde o diretor inclui um bem-vindo agradecimento a Barret Oliver, Shelley Duvall e Daniel Stern, atores do curta-metragem que deu origem a este filme, afinal, muito enternecedor em toda a comoção zoofílica que transmite.
A montagem de cenas com a expressão inane do entristecido Victor, depois que Sparky é atropelado, e as engraçadas situações em que pedaços do corpo do cachorro ressuscitado caem, mas que seu dono logo se antecipa em dizer que irá consertar, validam magnanimemente os versos da canção-tema do filme, que apregoa que “quando há beleza no interior, não há nada em seu exterior que a modifique”. É o que acontece em relação ao filme como um todo, que possui muitos equívocos, conflitos produtivos e desvios roteirísticos, mas, no que tange a emoção e coerência autoral, cumpre muitíssimo bem o seu papel: faz chorar, de tão belo que é!
Wesley Pereira de Castro.
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