Apesar de ter realizado filmes simpaticíssimos na década de 1980 [sendo “Um Salto Para a Felicidade” (1987) e “Amigas Para Sempre” (1988) alguns destes títulos memoráveis], foi na década de 1990 que Garry Marshall obteve sumo reconhecimento como diretor de comédias românticas lucrativas. O já clássico “Uma Linda Mulher” (1990) corresponde ao píncaro memorável de sua carreira, não obstante o dramático “Frankie & Johnny” (1991) ser o seu filme mais pessoal.
As obras consecutivas revezavam-se entre os fracassos retumbantes [“O Amor é uma Grande Fantasia” (1994), “Simples Como Amar” (1999) e “Noiva em Fuga” (1999)] e alguns sucessos eventuais [“O Diário da Princesa” (2001), “Idas e Vindas do Amor” (2010)], de maneira que os produtores hollywoodianos intuíram que, por causa desta segunda categoria, este diretor seria o comandante ideal daqueles candidatos a arrasa-quarteirão relacionados a algum feriado tradicional estadunidense. Se no filme imediatamente anterior, o tema era o Dia dos Namorados, em “Noite de Ano Novo”, o esquema de filme-painel romântico é novamente adotado, mas, ao contrário daquele, este filme é vergonhosamente esquemático e ostensivo em seu aspecto contratual: para além dos vários casais que se formam ou reconciliam nos 118 minutos de projeção, o roteiro e as interpretações do ótimo elenco são prenhes de apatia e, num filme que se pretenda romântica, isto é um verdadeiro crime estilístico!
Malgrado reunir um elenco estelar e ser lançado num momento azado de identificação tramática, “Noite de Ano Novo” deixa evidente seu maior problema compositivo logo na seqüência inicial: tal qual a personagem de Hilary Swank, violentamente pressionada para executar com sucesso um chamariz luminoso numa festividade típica nova-iorquina, o diretor Garry Marshall parece forçado a parir um filme xaroposo que nunca consegue engrenar, padecendo de uma arritmia nociva entre alguns interessantes pontos de partida tramáticos e a decepcionante comunhão de personagens ao final: se a personagem de Michelle Pfeiffer parece digna e credível em sua solidão, o contraste com a redenção moral oportunista do inverossímil ‘office-boy’ mal-interpretado por Zac Efron destrói qualquer possibilidade de verossimilhança sentimental; se o histrionismo de Lea Michele empolga logo que entra em cena, sua completa falta de entrosamento com o preguiçoso personagem de Ashton Kutcher redunda em números musicais forçados e enfadonhos; se algo na ridícula composição do competitivo personagem de Til Schweiger parecia minimamente comprometido com dramaticidade conceptiva, isto logo é dizimado pela abominável estória das grávidas que disputam a primazia pelo primeiro parto do ano 2012; se Hector Elizondo marca presença cativa como ator e coadjuvante-fetiche do diretor, sua presença é ridiculamente subaproveitada; se o veterano Robert De Niro cria que seu moribundo personagem pudesse ser minimamente convincente ou enternecedor, ele lega uma interpretação caricata e lamentável (no pior sentido do termo), digna de nojo ao invés de compaixão; e, se Halle Berry, Josh Duhamel, Abigail Breslin e o prefeito Michael Bloomberg possuem alguns breves bons momentos em cena, a sofrível atuação de Jon Bon Jovi e as vergonhosas sessões de estereotipia de Sarah Jessica Parker, Katherine Heigl, Sofía Vergara e Sarah Paulson tornam insuportáveis as cenas que protagonizam.
Infelizmente, num filme-produto como este, a observação das intervenções técnicas dos demais participantes do filme (o compositor John Debney e o fotografo Charles Minsky, por exemplo, ambos parceiros habituais do diretor) é pouco relevante diante dos detalhes anteriormente destacados acerca do elenco, mas cabe acrescentar aqui, por mero desencargo analítico, que, enquanto peça cinematográfica, “Noite de Ano Novo” é ínfimo. Enquanto produto hollywoodiano descaradamente oportuno, o filme é chavonado e impessoal, num lamentável retrocesso do diretor Garry Marshall em relação aos graciosos roteiros alheios que ele filmou como se fossem seus. Neste caso, portanto, a culpa maior é da roteirista Katherine Fugate, incapaz de dotar de sinceridade os (re)encontros fúteis que permeiam a projeção deste filme. Pena...
À guisa de conclusão forçosa, portanto, cabe insistir que este filme é emocionalmente nulo, que a maioria de suas piadas e ‘gags’ dialogísticas são insossas e/ou preconceituosas, que as canções-tema interpretadas por Jon Bon Jovi e Lea Michele são francamente desinteressantes, e que a condução directiva de Garry Marshall soa pesada e frívola, tanto quanto os beijos pré-agendados que a maioria dos personagens antecipam-se em trocar na cerimônia de ‘réveillon’.
Se serve de infinitésimo consolo, o filme é um retrato fiel do estado dominante de capitalismo desintegrador que apresenta, nesta segunda década do século XXI, a sua faceta tardia mais progressivamente desumanizada, em que os preparativos maquinais de uma cerimônia pública são muito mais relevantes que os dramas e sorrisos de pessoas comuns, até então, a matéria-prima dominante e convidativa dos filmes de Garry Marshall. Como fica evidente nos desenxabidos erros de gravação que são mostrados durante os créditos finais, este filme é um índice da atemorizante crise de criatividade que permeia a outrora famosa “fábrica de sonhos” conhecida como Hollywood. Mas, ainda assim, o filme vai bem nas bilheterias. É o que importa para os produtores. O que acrescentar depois disso?
Wesley Pereira de Castro.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
O PALHAÇO (Brasil, 2011). Direção: Selton Mello
Quem teve o privilégio de comparar o ‘trailer’ deste filme com alguns trabalhos anteriores de Selton Mello como diretor – mais precisamente, o longa-metragem “Feliz Natal” (2008) e o videoclipe que ele realizou para a canção “Flerte Fatal”, da banda paulistana Ira! – percebe, de antemão, que a buscada noção de autoria na carreira deste jovem cineasta assume-se como algo essencialmente conflituoso.
Por mais truísta que este termo pareça, conflito é um substantivo muito útil para se começar a entender o porquê de “O Palhaço” ser um filme tão falho e defeituoso, mas, ainda assim e justamente por isso, extremamente arrebatador: este é um filme não apenas marcado pelos conflitos geracionais, produtivos e ideológicos, mas também pelas crises intencionais, voluntárias ou não. Assim, de supetão, há de se convir que Selton Mello é um artista pretensioso. Por mais talentoso que ele seja unanimemente considerado, os seus trabalhos anteriores, tanto como ator como enquanto diretor, demonstram um sobejo de presunção efetiva que, não por acaso, consegue ser dirimido pela ótima demonstração de suas múltiplas vocações artísticas.
Em “O Palhaço”, entretanto, esta presunção essencial é subsumida a uma dificuldade congênita na definição de qual acepção do adjetivo “popular” é mais vislumbrada pelo diretor: ele deseja realizar um filme que dialoga prontamente com as massas ou, ao invés disso, concentra-se em emular respeitosamente o tipo de atividade cultural realizada diretamente por aqueles que também consomem o que produzem? Em pleno século XXI globalizado, é ainda possível realizar um filme que tente demonstrar que estas duas polaridades assertivas não carecem ser marcadas pela pugna? Justamente por não ter conseguido responder a estas perguntas, “O Palhaço” é sumamente encantador. Afinal de contas, ele é um filme que, antes de qualquer coisa, aprende com seus erros e os difunde enquanto apanágios. Muitíssimo bom, para começo de conversa.
Apesar de, aparentemente, o papel interpretado pelo próprio Selton Mello corresponder ao personagem-título, ele é o elemento actancial menos interessante do filme como um todo. Mais uma vez, entretanto, este suposto defeito de execução não configura um demérito para o filme, mas sim um positivo adendo ao elogio anterior de sua exposição benfazeja de conflitos essenciais: se, por um lado, a composição do personagem Benjamim é um tanto rasteira por ser precipitada, por outro, é justamente esta incipiência compositiva que agiliza a identificação com o espectador no que tange ao discurso-chave proferido por Jackson Antunes; “nesta vida, se faz aquilo que se sabe fazer”. Ao final do filme, se concordará que Benjamim é, marcadamente, um palhaço.
E ele não é o único a constatar isso, o que traz à tona outra das grandes virtudes do filme: a devoção igualitária a personagens menores, como os simpáticos membros da trupe do circo Esperança (vivificados apaixonadamente por Teuda Bara, Thogun, Cadu Fávero, Tony Tonelada, entre outros), a encantatória menininha vivida por Larissa Manoela (que desempenha um papel fundamentalíssimo numa das últimas seqüências do filme) e a magnífica personificação de Paulo José, que despe o palhaço Valdemar/Puro Sangue da infalibilidade comum a este tipo de composição e, ao invés disso, humaniza-o e mostra-o tão realista quanto possível num filme com esta proposta cômico-dramática. Difícil conservar-se indiferente aos destinos dos personagens que desfilam suas risadas e necessidades na tela, portanto.
Para que os conflitos adicionais e benéficos do filme pudessem ser ainda mais pungentes, a impecável trilha sonora de Plínio Profeta foi de suma acertabilidade, de maneira que os acordes graves e comicamente pomposos de seus instrumentos diversificados assemelham-se deveras a uma sonoridade cigana em muito condizente com o inevitável nomadismo da trama. Ou seja, as músicas originais do filme não apenas são mágicos complementos aos espetáculos e motes tramáticos dos personagens circenses como também se demonstram qualitativa e percussivamente superiores.
No plano do convencimento emocional decorrente desta trilha sonora, foram sabiamente evitadas as armadilhas xaroposas normalmente comuns neste tipo de entrecho, da mesma forma que a ótima montagem de Marília Moraes e do próprio Selton Mello também foi muitíssimo inteligente ao não servir-se de inconvenientes câmeras lentas. As cenas que decorrem dentro e fora do picadeiro são respeitadas em seu tempo cronológico, no máximo assemelhadas ao estilo elíptico de diretores como Aki Kaurismäki e Jim Jarmusch, nos quais o diretor Selton Mello deve ter se inspirado. E, sendo aqui necessário exaltar os acertos pessoais do diretor brasileiro, o gracioso plano-seqüência que antecede os créditos finais arrebata-nos sobremaneira pela sinceridade com que conduz a uma homenagem sincera a São Filomeno, padroeiro dos artistas mambembes que o filme retrata com tamanha paixão.
No afã por um parágrafo conclusivo que disfarce a simpatia afetiva que este filme desencadeia e se concentre em seus bem-sucedidos atributos técnicos, convém vangloriar a iluminada direção de fotografia de Adrian Teijido e o roteiro composto por ‘gags’ biográficas complementares de Marcelo Vindicato e, mais uma vez, Selton Mello. E, neste roteiro, é mister destacar que mais um conflito essencial se instaura na diegese: o conflito inclemente entre as deturpações monetárias e os anseios artísticos, conflito este que se manifesta nos chistes de que o personagem do mecânico vivido Tonico Pereira se vale para receber o dinheiro dos clientes cujo caminhão estava quebrado, nos pretextos do delegado Justo (Moacyr Franco, excelente e divertidíssimo) para obter um pagamento espúrio pelos extraordinários inconvenientes profissionais a que é submetido quando aprisiona os artistas após uma briga de bar e nos motivos que levam Valdemar a expulsar a ladra e exuberante Lola (Giselle Motta) de sua trupe, para ficar em apenas três exemplos evidentes no interior da própria narrativa.
As diversas homenagens que o diretor presta a continuadores legítimos da arte circense e à sua família, o uso pertinaz de canções bregas nas vozes Lindomar Castilho e Nelson Ned e a antológica participação de Fabiana Karla na cena em que revela, num contexto adjetivamente destoante, que Benjamin é, de fato, engraçado, são apenas algumas das virtudes acachapantes deste filme surpreendentemente hipnótico, que, pode ser defeituoso como for, mas inebria por não esconder as suas fraquezas inevitavelmente humanas. E quando tais características assumidamente defeituosas provêm de um artista tachado justamente de presunçoso, é mais do que urgente admitir que ele conseguiu resolver ao menos o conflito fundamental entre intenção e receptividade fílmica: “O Palhaço” emociona e incita à sobrevivência formas artísticas que pareciam fadadas à suplantação pelo capitalismo. Por isso mesmo, este é um filme engraçado e comovente como uma matinê de outrora!
Wesley Pereira de Castro.
Por mais truísta que este termo pareça, conflito é um substantivo muito útil para se começar a entender o porquê de “O Palhaço” ser um filme tão falho e defeituoso, mas, ainda assim e justamente por isso, extremamente arrebatador: este é um filme não apenas marcado pelos conflitos geracionais, produtivos e ideológicos, mas também pelas crises intencionais, voluntárias ou não. Assim, de supetão, há de se convir que Selton Mello é um artista pretensioso. Por mais talentoso que ele seja unanimemente considerado, os seus trabalhos anteriores, tanto como ator como enquanto diretor, demonstram um sobejo de presunção efetiva que, não por acaso, consegue ser dirimido pela ótima demonstração de suas múltiplas vocações artísticas.
Em “O Palhaço”, entretanto, esta presunção essencial é subsumida a uma dificuldade congênita na definição de qual acepção do adjetivo “popular” é mais vislumbrada pelo diretor: ele deseja realizar um filme que dialoga prontamente com as massas ou, ao invés disso, concentra-se em emular respeitosamente o tipo de atividade cultural realizada diretamente por aqueles que também consomem o que produzem? Em pleno século XXI globalizado, é ainda possível realizar um filme que tente demonstrar que estas duas polaridades assertivas não carecem ser marcadas pela pugna? Justamente por não ter conseguido responder a estas perguntas, “O Palhaço” é sumamente encantador. Afinal de contas, ele é um filme que, antes de qualquer coisa, aprende com seus erros e os difunde enquanto apanágios. Muitíssimo bom, para começo de conversa.
Apesar de, aparentemente, o papel interpretado pelo próprio Selton Mello corresponder ao personagem-título, ele é o elemento actancial menos interessante do filme como um todo. Mais uma vez, entretanto, este suposto defeito de execução não configura um demérito para o filme, mas sim um positivo adendo ao elogio anterior de sua exposição benfazeja de conflitos essenciais: se, por um lado, a composição do personagem Benjamim é um tanto rasteira por ser precipitada, por outro, é justamente esta incipiência compositiva que agiliza a identificação com o espectador no que tange ao discurso-chave proferido por Jackson Antunes; “nesta vida, se faz aquilo que se sabe fazer”. Ao final do filme, se concordará que Benjamim é, marcadamente, um palhaço.
E ele não é o único a constatar isso, o que traz à tona outra das grandes virtudes do filme: a devoção igualitária a personagens menores, como os simpáticos membros da trupe do circo Esperança (vivificados apaixonadamente por Teuda Bara, Thogun, Cadu Fávero, Tony Tonelada, entre outros), a encantatória menininha vivida por Larissa Manoela (que desempenha um papel fundamentalíssimo numa das últimas seqüências do filme) e a magnífica personificação de Paulo José, que despe o palhaço Valdemar/Puro Sangue da infalibilidade comum a este tipo de composição e, ao invés disso, humaniza-o e mostra-o tão realista quanto possível num filme com esta proposta cômico-dramática. Difícil conservar-se indiferente aos destinos dos personagens que desfilam suas risadas e necessidades na tela, portanto.
Para que os conflitos adicionais e benéficos do filme pudessem ser ainda mais pungentes, a impecável trilha sonora de Plínio Profeta foi de suma acertabilidade, de maneira que os acordes graves e comicamente pomposos de seus instrumentos diversificados assemelham-se deveras a uma sonoridade cigana em muito condizente com o inevitável nomadismo da trama. Ou seja, as músicas originais do filme não apenas são mágicos complementos aos espetáculos e motes tramáticos dos personagens circenses como também se demonstram qualitativa e percussivamente superiores.
No plano do convencimento emocional decorrente desta trilha sonora, foram sabiamente evitadas as armadilhas xaroposas normalmente comuns neste tipo de entrecho, da mesma forma que a ótima montagem de Marília Moraes e do próprio Selton Mello também foi muitíssimo inteligente ao não servir-se de inconvenientes câmeras lentas. As cenas que decorrem dentro e fora do picadeiro são respeitadas em seu tempo cronológico, no máximo assemelhadas ao estilo elíptico de diretores como Aki Kaurismäki e Jim Jarmusch, nos quais o diretor Selton Mello deve ter se inspirado. E, sendo aqui necessário exaltar os acertos pessoais do diretor brasileiro, o gracioso plano-seqüência que antecede os créditos finais arrebata-nos sobremaneira pela sinceridade com que conduz a uma homenagem sincera a São Filomeno, padroeiro dos artistas mambembes que o filme retrata com tamanha paixão.
No afã por um parágrafo conclusivo que disfarce a simpatia afetiva que este filme desencadeia e se concentre em seus bem-sucedidos atributos técnicos, convém vangloriar a iluminada direção de fotografia de Adrian Teijido e o roteiro composto por ‘gags’ biográficas complementares de Marcelo Vindicato e, mais uma vez, Selton Mello. E, neste roteiro, é mister destacar que mais um conflito essencial se instaura na diegese: o conflito inclemente entre as deturpações monetárias e os anseios artísticos, conflito este que se manifesta nos chistes de que o personagem do mecânico vivido Tonico Pereira se vale para receber o dinheiro dos clientes cujo caminhão estava quebrado, nos pretextos do delegado Justo (Moacyr Franco, excelente e divertidíssimo) para obter um pagamento espúrio pelos extraordinários inconvenientes profissionais a que é submetido quando aprisiona os artistas após uma briga de bar e nos motivos que levam Valdemar a expulsar a ladra e exuberante Lola (Giselle Motta) de sua trupe, para ficar em apenas três exemplos evidentes no interior da própria narrativa.
As diversas homenagens que o diretor presta a continuadores legítimos da arte circense e à sua família, o uso pertinaz de canções bregas nas vozes Lindomar Castilho e Nelson Ned e a antológica participação de Fabiana Karla na cena em que revela, num contexto adjetivamente destoante, que Benjamin é, de fato, engraçado, são apenas algumas das virtudes acachapantes deste filme surpreendentemente hipnótico, que, pode ser defeituoso como for, mas inebria por não esconder as suas fraquezas inevitavelmente humanas. E quando tais características assumidamente defeituosas provêm de um artista tachado justamente de presunçoso, é mais do que urgente admitir que ele conseguiu resolver ao menos o conflito fundamental entre intenção e receptividade fílmica: “O Palhaço” emociona e incita à sobrevivência formas artísticas que pareciam fadadas à suplantação pelo capitalismo. Por isso mesmo, este é um filme engraçado e comovente como uma matinê de outrora!
Wesley Pereira de Castro.
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domingo, 6 de novembro de 2011
A PELE QUE HABITO ('La Piel que Habito') Espanha, 2011. Direção: Pedro Almodóvar
Um tanto decepcionados com a fluidez palimpséstica de “Volver” (2006) e com os desvios formativo-masturbacionais de “Abraços Partidos” (2009), os fãs longevos de Pedro Almodóvar ainda ansiavam por alguma obra que, de algum modo, fizesse as pazes com a explosividade carnal de seus filmes da década de 1980. Regressar gratuitamente ao estilo revoltoso e pansexual da primeira fase de sua carreira, entretanto, seria um anacronismo estilístico que não se coadunaria ao extremado rigor com o qual este genial cineasta tece a coesão [supra]temática entre cada um de seus filmes.
Neste sentido, é particularmente espantoso o modo como “A Pele que Habito” atende aos clamores dos fãs hipodermicamente insatisfeitos com seus filmes recentes a partir de uma correlação pontual com o impacto que “A Flor do Meu Segredo” instaurou quando foi lançado em 1995: marcando o início da colaboração oficial com o músico Alberto Iglesias – que, desde então, tornou-se partícipe obrigatório de todos os filmes do diretor – esta produção assustou os fãs do cineasta, sendo até mesmo prontamente rejeitado por alguns, visto que estes não perceberam imediatamente o quanto esta obra emocionalmente centrípeta tinha em comum com os arroubos de incontinência erotógena demonstrados em “Ata-me” (1990), “De Salto Alto” (1991) e “Kika” (1993), lançados anteriormente. Analisando-se distanciadamente “A Flor do meu Segredo”, entretanto, pode-se perceber claramente o quanto este filme foi determinante para a atual configuração da obra almodovariana, muitíssimo mais erudita e aparentemente contida em sua sexualidade exasperada. E é a partir deste pressuposto comparativo – mas não somente dele – que as inúmeras qualidades de “A Pele que Habito” começam a despontar...
Tendo seu elenco encabeçado por Antonio Banderas e Marisa Paredes, atores outrora habituais nas películas almodovarianas, “A Pele que Habito” pode muito bem ser resumido como “um filme protagonizado pelos personagens oitentistas do diretor, depois que estes envelheceram após os incrementos maturativos da década de 1990”. Ou seja, os impulsos sexuais desenfreados que não raro redundavam em estupros, típicos da primeira metade da obra de Pedro Almodóvar, são agora travestidos por um discurso renovado (e sutilmente protestante) sobre as configurações diplomáticas da contemporaneidade, em que as exigências e recomendações éticas de uma dada profissão levam menos em consideração as determinações morais (incluindo os âmbitos pecaminoso e criminal das ponderações humanas) do que as suas garantias de financiamento capitalista ou suporte estatal. A temerosa suspensão destas garantias é bem demonstrada pelas recorrentes (e contagiosas) ameaças de suspensão da licença de cirurgião do protagonista, caso este insistisse em prosseguir isoladamente com os experimentos transgenéricos que infringem um código hipócrita de conduta, que não se importa em ignorar a óbvia falsidade de documentos de identidade quando estes se atrelam a uma demonstração espúria da vontade/necessidade de um paciente aquisitivamente rico de realizar uma operação plástica.
Através deste filme, Pedro Almodóvar serve-se mais uma vez de seu caríssimo tema da permissividade amorosa (eventualmente tachada de loucura) para manifestar-se opositivo a uma corrente biopolítica que se serve de engodos para-democráticos para justificar intervenções violentas nas configurações fisiológicas dos indivíduos. E, aqui, abre-se a necessidade de um parágrafo pessoalmente hiper-interpretativo.
Personagens e atores transexuais são comuns no ‘corpus’ almodovariano. Entretanto, ao contrário do que propagandeiam os oportunistas divulgadores de uma sexualidade financiada pelo capitalismo ou pelo Estado, estes quedam angustiados por dores e prazeres que vão muito além de suas graduais metamorfoses físicas, tendo contrapartidas discursivas tão polarizadas quando podem ser o lesbianismo traumático-defensivo que insurge sub-repticiamente em “A Lei do Desejo” (1987) e a defesa do pagamento monetário pela autenticidade manifesta em “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999).
Nos filmes de Pedro Almodóvar, conforme já dito, a supremacia da permissibilidade de qualquer forma de amor é o que dota de coerência interna e externa cada uma das suas obras, caracterizadas por marcas registradas como o predomínio de formas circulares, o sobejo de tonalidades rubras, as idas e vindas no tempo da narrativa e erupções cancionais que surgem na diegese, mas que logo a transcendem, assumindo-se como extensões multiinformativas da mesma, como se pode constatar nas diversas aparições da expressiva cantora Concha Buika. Em “A Pele que Habito”, portanto, para além do título que antecipa vindouras e polêmicas discussões acerca da apologia (ou condenação) da transexualidade efetiva e interventivamente biológica – novamente trazida à tona através do batismo de um dos temas instrumentais do filme como “La Identidade Inaccesible” – há um gritante manifesto em prol da magnificência do papel materno, plenamente reconhecível para quem acompanha a obra do diretor em suas diversas variações estilísticas e indefectivelmente encarnado na figura da empregada Marília (Marisa Paredes, mais uma vez, em estado de graça interpretativa), que, num sobressalto de genialidade vulgar, admite que possui loucura em suas entranhas, a fim de explicar os comportamentos psicóticos de seus dois filhos, um francamente perseguido pela lei [Zeca (Roberto Álamo), traficante de drogas na infância e ladrão de joalheiras na idade adulta] e outro coroado pelo poder e pelo dinheiro (Robert Ledgard, o cirurgião vivido com charme e elegância por Antonio Banderas).
Nesse sentido, há de se aplaudir de pé a impressionante cena final, emocionalmente elíptica em seu estágio máximo, quando Vicente, transformado definitivamente em Vera Cruz (Jan Cornet, na versão masculina; e Elena Anaya, na versão feminina) confessa a sua mãe (Susi Sánchez) quem, de fato, ele/ela é. O resto é um clímax ‘fora-de-campo’ impregnado por sobressaltos pulsionais e afetivos como somente este diretor espanhol é capaz de urdir!
Supondo que toda esta exaltação emotiva não seja suficiente para emoldurar esta suma experiência cinematográfica, convém adicionar mais algumas observações elogiosas a partir de sua composição técnico-formal: as emulações do perturbador e belo trabalho da artista Louise Bourgeois, elogiada nominalmente por Pedro Almodóvar nos créditos finais; as evaginações enredísticas que demonstram o insuspeito domínio hipertextual de Pedro Almodóvar sobre o roteiro que escreveu a partir de um romance de Thierry Jonquet; a montagem geométrica habitual de José Salcedo; a direção fotográfica deslumbrante de José Luís Alcaine; e as canções complementares da já citada Concha Buika, de Chris Garneau e do músico dinamarquês Anders Trentemøller. Porém, a surpreendente introdução de elementos eletrônicos na trilha sonora compota basicamente por instrumentos de corda de Alberto Iglesias leva o espectador a refletir sobre o quanto mensagens, discursos e reflexos formais minuciosamente engendrados mesclam-se neste filme acachapante, que, conforme antecipado, deslumbra qualquer pessoa que, nalgum momento de sua vida espectatorial, demonstrou-se apaixonado por qualquer elemento da cinematografia almodovariana.
Afinal de contas, muito mais do que simplesmente contar uma estória ou assumir uma postura moral sobre um mundo de falsas aceitações sexualistas, o diretor deste filme prova, aqui, que envelhecer e servir-se intimamente das formas expressivas essencialmente contemporâneas não são deméritos ativistas, mas, pelo contrário, progressões autorais de um ‘corpus’ em que a permissividade sempre foi regra, inclusive no que tange ao fundamento constitutivo e (ir)racional da liberdade em seu estímulos desobedientes.
Wesley Pereira de Castro.
Neste sentido, é particularmente espantoso o modo como “A Pele que Habito” atende aos clamores dos fãs hipodermicamente insatisfeitos com seus filmes recentes a partir de uma correlação pontual com o impacto que “A Flor do Meu Segredo” instaurou quando foi lançado em 1995: marcando o início da colaboração oficial com o músico Alberto Iglesias – que, desde então, tornou-se partícipe obrigatório de todos os filmes do diretor – esta produção assustou os fãs do cineasta, sendo até mesmo prontamente rejeitado por alguns, visto que estes não perceberam imediatamente o quanto esta obra emocionalmente centrípeta tinha em comum com os arroubos de incontinência erotógena demonstrados em “Ata-me” (1990), “De Salto Alto” (1991) e “Kika” (1993), lançados anteriormente. Analisando-se distanciadamente “A Flor do meu Segredo”, entretanto, pode-se perceber claramente o quanto este filme foi determinante para a atual configuração da obra almodovariana, muitíssimo mais erudita e aparentemente contida em sua sexualidade exasperada. E é a partir deste pressuposto comparativo – mas não somente dele – que as inúmeras qualidades de “A Pele que Habito” começam a despontar...
Tendo seu elenco encabeçado por Antonio Banderas e Marisa Paredes, atores outrora habituais nas películas almodovarianas, “A Pele que Habito” pode muito bem ser resumido como “um filme protagonizado pelos personagens oitentistas do diretor, depois que estes envelheceram após os incrementos maturativos da década de 1990”. Ou seja, os impulsos sexuais desenfreados que não raro redundavam em estupros, típicos da primeira metade da obra de Pedro Almodóvar, são agora travestidos por um discurso renovado (e sutilmente protestante) sobre as configurações diplomáticas da contemporaneidade, em que as exigências e recomendações éticas de uma dada profissão levam menos em consideração as determinações morais (incluindo os âmbitos pecaminoso e criminal das ponderações humanas) do que as suas garantias de financiamento capitalista ou suporte estatal. A temerosa suspensão destas garantias é bem demonstrada pelas recorrentes (e contagiosas) ameaças de suspensão da licença de cirurgião do protagonista, caso este insistisse em prosseguir isoladamente com os experimentos transgenéricos que infringem um código hipócrita de conduta, que não se importa em ignorar a óbvia falsidade de documentos de identidade quando estes se atrelam a uma demonstração espúria da vontade/necessidade de um paciente aquisitivamente rico de realizar uma operação plástica.
Através deste filme, Pedro Almodóvar serve-se mais uma vez de seu caríssimo tema da permissividade amorosa (eventualmente tachada de loucura) para manifestar-se opositivo a uma corrente biopolítica que se serve de engodos para-democráticos para justificar intervenções violentas nas configurações fisiológicas dos indivíduos. E, aqui, abre-se a necessidade de um parágrafo pessoalmente hiper-interpretativo.
Personagens e atores transexuais são comuns no ‘corpus’ almodovariano. Entretanto, ao contrário do que propagandeiam os oportunistas divulgadores de uma sexualidade financiada pelo capitalismo ou pelo Estado, estes quedam angustiados por dores e prazeres que vão muito além de suas graduais metamorfoses físicas, tendo contrapartidas discursivas tão polarizadas quando podem ser o lesbianismo traumático-defensivo que insurge sub-repticiamente em “A Lei do Desejo” (1987) e a defesa do pagamento monetário pela autenticidade manifesta em “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999).
Nos filmes de Pedro Almodóvar, conforme já dito, a supremacia da permissibilidade de qualquer forma de amor é o que dota de coerência interna e externa cada uma das suas obras, caracterizadas por marcas registradas como o predomínio de formas circulares, o sobejo de tonalidades rubras, as idas e vindas no tempo da narrativa e erupções cancionais que surgem na diegese, mas que logo a transcendem, assumindo-se como extensões multiinformativas da mesma, como se pode constatar nas diversas aparições da expressiva cantora Concha Buika. Em “A Pele que Habito”, portanto, para além do título que antecipa vindouras e polêmicas discussões acerca da apologia (ou condenação) da transexualidade efetiva e interventivamente biológica – novamente trazida à tona através do batismo de um dos temas instrumentais do filme como “La Identidade Inaccesible” – há um gritante manifesto em prol da magnificência do papel materno, plenamente reconhecível para quem acompanha a obra do diretor em suas diversas variações estilísticas e indefectivelmente encarnado na figura da empregada Marília (Marisa Paredes, mais uma vez, em estado de graça interpretativa), que, num sobressalto de genialidade vulgar, admite que possui loucura em suas entranhas, a fim de explicar os comportamentos psicóticos de seus dois filhos, um francamente perseguido pela lei [Zeca (Roberto Álamo), traficante de drogas na infância e ladrão de joalheiras na idade adulta] e outro coroado pelo poder e pelo dinheiro (Robert Ledgard, o cirurgião vivido com charme e elegância por Antonio Banderas).
Nesse sentido, há de se aplaudir de pé a impressionante cena final, emocionalmente elíptica em seu estágio máximo, quando Vicente, transformado definitivamente em Vera Cruz (Jan Cornet, na versão masculina; e Elena Anaya, na versão feminina) confessa a sua mãe (Susi Sánchez) quem, de fato, ele/ela é. O resto é um clímax ‘fora-de-campo’ impregnado por sobressaltos pulsionais e afetivos como somente este diretor espanhol é capaz de urdir!
Supondo que toda esta exaltação emotiva não seja suficiente para emoldurar esta suma experiência cinematográfica, convém adicionar mais algumas observações elogiosas a partir de sua composição técnico-formal: as emulações do perturbador e belo trabalho da artista Louise Bourgeois, elogiada nominalmente por Pedro Almodóvar nos créditos finais; as evaginações enredísticas que demonstram o insuspeito domínio hipertextual de Pedro Almodóvar sobre o roteiro que escreveu a partir de um romance de Thierry Jonquet; a montagem geométrica habitual de José Salcedo; a direção fotográfica deslumbrante de José Luís Alcaine; e as canções complementares da já citada Concha Buika, de Chris Garneau e do músico dinamarquês Anders Trentemøller. Porém, a surpreendente introdução de elementos eletrônicos na trilha sonora compota basicamente por instrumentos de corda de Alberto Iglesias leva o espectador a refletir sobre o quanto mensagens, discursos e reflexos formais minuciosamente engendrados mesclam-se neste filme acachapante, que, conforme antecipado, deslumbra qualquer pessoa que, nalgum momento de sua vida espectatorial, demonstrou-se apaixonado por qualquer elemento da cinematografia almodovariana.
Afinal de contas, muito mais do que simplesmente contar uma estória ou assumir uma postura moral sobre um mundo de falsas aceitações sexualistas, o diretor deste filme prova, aqui, que envelhecer e servir-se intimamente das formas expressivas essencialmente contemporâneas não são deméritos ativistas, mas, pelo contrário, progressões autorais de um ‘corpus’ em que a permissividade sempre foi regra, inclusive no que tange ao fundamento constitutivo e (ir)racional da liberdade em seu estímulos desobedientes.
Wesley Pereira de Castro.
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sábado, 22 de outubro de 2011
BALADA DO AMOR E DO ÓDIO ('Balada Triste de Trompeta') Espanha, 2010. Direção: Álex de la Iglesia.
Imediatamente finda a sessão deste filme, é difícil tecer algum comentário racional sobre o que foi projetado na tela. O impacto emocional do filme é tão intenso, são tantas as referências fílmicas, musicais, políticas e históricas, o roteiro é tão pungente e violento (em mais de um sentido do termo) e a ausência de uma moral unilateral da história é tão premente que, antes de tecer qualquer julgamento avaliativo precipitado acerca do filme, é mister respirar, caminhar, e, se necessário, gritar. O grau elevado de criatividade que o diretor e roteirista basco Álex de la Iglesia adota nos 107 minutos de projeção desta película absolutamente deslumbrante é tão intenso que o impacto desencadeado por ele não é apenas intelectual, mas também carnal. O filme atinge-nos na pele, no sangue, nos ossos, através de qualquer prisma analisado. A extremada astúcia na condução directiva e a esperteza oportuna do entrecho em mesclar eventos e explosões reais com torrentes ficcionais de cólera demonstram o quanto o diretor-roteirista é politizado e consciente das contradições nacionais espanholas, erigindo um largo painel alegórico que, desde a cena inicial, tem muito a ver com o estilo de Carlos Saura, em especial, no ótimo “Ai, Carmela!” (1990). Entretanto, ao contrário do que alguns críticos mais afoitos alegam, Álex de la Iglesia não faz apenas entupir o seu filme com idéias e chistes alheios: muito pelo contrário, ele ostenta um senso criativo de originalidade que impressiona sobremaneira, principalmente no que diz respeito à extraordinária interação entre equipe técnica e elenco.
Não obstante o trio principal de intérpretes (Carlos Areces, Antonio de la Torre e Carolina Bang) estar excelente, o grande mérito desta obra é, sem dúvida, a sua acachapante direção de arte, a cargo de Eduardo Hidalgo Hijo, que reconstitui as diversas épocas em que se passa o filme com precisão minuciosa, ao mesmo tempo em que edifica o universo grotesco e mui particular em que as psicoses exacerbadas dos deformados palhaços Sérgio e Javier soam extremamente coerentes e, até mesmo, verossímeis. E, dentre os três atores principais, as inúmeras mudanças de penteado e maquiagem de Carolina Bang reconfirmam a magnificência desta direção de arte, minuciosamente coligada com a impecável direção de fotografia de Kiko de la Rica, que nos inebria desde a exuberante seqüência que antecede os brilhantes créditos iniciais, em que fica patente o intuito do diretor de homenagear alguns ídolos do cinema de horror (o recém-falecido Paul Nacshy em destaque, conforme novamente mencionado durante os créditos de encerramento). Tudo neste filme, por mais imperfeito que seja, explode de paixão, no sentido mais conseqüencial e concomitantemente inconseqüente do termo, o que justifica, explica e faz entender o melancólico, inesperado e belíssimo desfecho do filme.
Se, por um lado, elenco principal, elenco secundário e elenco animal estão perfeitos, por outro lado, o filme como um todo não atinge esta mesma aura de perfeição, sendo propositalmente irregular, repleto de defeitos e de máculas estruturais disrítmicas, como se, com isso, quisesse forçar o espectador a experimentar o ‘verfremdungseffekt’ (estranhamento) postulado em grau maior pelo teatrólogo Bertolt Brecht. E, apesar de o filme possuir muitas similaridades com alguns dos pastiches vingativos realizados pelo norte-americano Quentin Tarantino, ele se diferencia bastante destes por seu viés extremamente politizado e pela inconsistência anárquica na configuração dos alvos da fúria de Javier, que, inicialmente, está voltada para os soldados franquistas que aprisionaram seu pai, em seguida está direcionada contra o alcoólatra Sérgio e, no auge de seu frenesi colérico, volta-se para crianças, transeuntes e, conforme percebemos na cena em que ele deforma seu próprio rosto com soda cáustica e com um ferro de passar roupas, até contra si mesmo!
Em suma, é tarefa inglória escrever sobre este filme sem se deixar levar pelas exclamações diante de suas reviravoltas enredísticas, de seus arroubos de inventividade genérica (que abarca desde cânones do horror até pérolas do cinema ‘trash’ relacionado a este mesmo escopo fílmico) e de seus lampejos encantatórios (vide a primeira cena em que a trapezista Natália aparece à contraluz ou quando ela dubla uma canção ‘kistch’ num cabaré). Se, em termos avaliativos mais cuidadosos, este filme não supera o humor negro e a genialidade do mais famoso longa-metragem do diretor [“O Dia da Besta” (1995)], com certeza ele se coaduna a uma mesma linha-mestra sardônica e conscientizada, sendo extremamente coerente e coeso em relação à panóplia de estilos contida no modo peculiar de Álex de la Iglesia fazer cinema.
E, acima de tudo isso, o filme é uma homenagem vivaz à arte circense, em vias de extinção num mundo dominado pelos rompantes tecnológicos desumanizadores e pela pirotecnia gratuita, mas aqui reverenciada em seu âmago hipnótico, metonimizado no bonito instante em que Javier ainda criança (interpretado, nesta fase, por Sasha Di Bendetto) é focalizado num palco vazio, ao lado de um leão involuntariamente abandonado por seus domadores, requisitados como combatentes bélicos, ou todas as vezes em que a efígie infeliz do cantor Raphael [atuando em “Sín Un Adiós” (1970, de Vicente Escrivá)] aparece numa tela dentro da tela, chorando enquanto pronuncia melodicamente a letra e as onomatopéias da cantiga que intitula o filme. Impossível não se emocionar de forma cortante e panegírica diante disso!
Wesley Pereira de Castro.
Não obstante o trio principal de intérpretes (Carlos Areces, Antonio de la Torre e Carolina Bang) estar excelente, o grande mérito desta obra é, sem dúvida, a sua acachapante direção de arte, a cargo de Eduardo Hidalgo Hijo, que reconstitui as diversas épocas em que se passa o filme com precisão minuciosa, ao mesmo tempo em que edifica o universo grotesco e mui particular em que as psicoses exacerbadas dos deformados palhaços Sérgio e Javier soam extremamente coerentes e, até mesmo, verossímeis. E, dentre os três atores principais, as inúmeras mudanças de penteado e maquiagem de Carolina Bang reconfirmam a magnificência desta direção de arte, minuciosamente coligada com a impecável direção de fotografia de Kiko de la Rica, que nos inebria desde a exuberante seqüência que antecede os brilhantes créditos iniciais, em que fica patente o intuito do diretor de homenagear alguns ídolos do cinema de horror (o recém-falecido Paul Nacshy em destaque, conforme novamente mencionado durante os créditos de encerramento). Tudo neste filme, por mais imperfeito que seja, explode de paixão, no sentido mais conseqüencial e concomitantemente inconseqüente do termo, o que justifica, explica e faz entender o melancólico, inesperado e belíssimo desfecho do filme.
Se, por um lado, elenco principal, elenco secundário e elenco animal estão perfeitos, por outro lado, o filme como um todo não atinge esta mesma aura de perfeição, sendo propositalmente irregular, repleto de defeitos e de máculas estruturais disrítmicas, como se, com isso, quisesse forçar o espectador a experimentar o ‘verfremdungseffekt’ (estranhamento) postulado em grau maior pelo teatrólogo Bertolt Brecht. E, apesar de o filme possuir muitas similaridades com alguns dos pastiches vingativos realizados pelo norte-americano Quentin Tarantino, ele se diferencia bastante destes por seu viés extremamente politizado e pela inconsistência anárquica na configuração dos alvos da fúria de Javier, que, inicialmente, está voltada para os soldados franquistas que aprisionaram seu pai, em seguida está direcionada contra o alcoólatra Sérgio e, no auge de seu frenesi colérico, volta-se para crianças, transeuntes e, conforme percebemos na cena em que ele deforma seu próprio rosto com soda cáustica e com um ferro de passar roupas, até contra si mesmo!
Em suma, é tarefa inglória escrever sobre este filme sem se deixar levar pelas exclamações diante de suas reviravoltas enredísticas, de seus arroubos de inventividade genérica (que abarca desde cânones do horror até pérolas do cinema ‘trash’ relacionado a este mesmo escopo fílmico) e de seus lampejos encantatórios (vide a primeira cena em que a trapezista Natália aparece à contraluz ou quando ela dubla uma canção ‘kistch’ num cabaré). Se, em termos avaliativos mais cuidadosos, este filme não supera o humor negro e a genialidade do mais famoso longa-metragem do diretor [“O Dia da Besta” (1995)], com certeza ele se coaduna a uma mesma linha-mestra sardônica e conscientizada, sendo extremamente coerente e coeso em relação à panóplia de estilos contida no modo peculiar de Álex de la Iglesia fazer cinema.
E, acima de tudo isso, o filme é uma homenagem vivaz à arte circense, em vias de extinção num mundo dominado pelos rompantes tecnológicos desumanizadores e pela pirotecnia gratuita, mas aqui reverenciada em seu âmago hipnótico, metonimizado no bonito instante em que Javier ainda criança (interpretado, nesta fase, por Sasha Di Bendetto) é focalizado num palco vazio, ao lado de um leão involuntariamente abandonado por seus domadores, requisitados como combatentes bélicos, ou todas as vezes em que a efígie infeliz do cantor Raphael [atuando em “Sín Un Adiós” (1970, de Vicente Escrivá)] aparece numa tela dentro da tela, chorando enquanto pronuncia melodicamente a letra e as onomatopéias da cantiga que intitula o filme. Impossível não se emocionar de forma cortante e panegírica diante disso!
Wesley Pereira de Castro.
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quinta-feira, 1 de setembro de 2011
MELANCOLIA ('Melancholia') Dinamarca/Suécia/França/Alemanha, 2011. Direção: Lars von Trier.
Dentre os diversos adjetivos comumente relacionados à espalhafatosa ‘persona’ directiva do cineasta dinamarquês Lars von Trier, polemista e reinventor da linguagem cinematográfica são os mais corriqueiros. Não é por acaso: a grande maioria de seus filmes traz no bojo rupturas geniais da forma narrativa tradicional e conteúdos instigantes e questionadores acerca das convenções sociais de gênese capitalista.
Não obstante ser um ótimo filme, “Melancolia” é deveras brando no que tange à reiteração dos adjetivos supracitados. Por mais que as declarações sarcásticas e mal-compreendidas do diretor tenham causado alvoroço nas reuniões de imprensa para divulgação de sua estréia cinematográfica, o filme em si é contido, centripetamente emocional e bem mais internalizado do que as conclamações socialmente julgamentais dos alter-egos e vítimas femininas do cineasta acostumaram-nos a aguardar, mas, ainda assim, é muito coerente em relação ao tipo de clímax lacrimoso crescente que ele impõe sobre as suas corajosas atrizes. E, se a exuberante Kirsten Dunst é sujeitada a um ‘tour de force’ depressivo digno de muita identificação sobrevivencial, é Charlotte Gainsbourg quem realmente se sobressai no elenco, com uma interpretação que se translada do rígido controle cerimonial para a extrema fragilidade familiar, de forma tão impactante quanto esperada por quem já está acostumado a ler os índices trierianos.
Os admiradores e/ou conhecedores do cineasta deduzem rapidamente que o lento preâmbulo do filme – musicado por “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner, e permeado por imagens belíssimas de teor naturalmente apocalíptico – sintetiza as mudanças de rumo enredístico que serão conduzidas através dos seus 136 minutos de duração. Nesse sentido, a inteligência compositiva do cineasta deve ser destacada pelo brilhantismo discursivo da primeira parte de seu filme, em que a tumultuada cerimônia de casamento da personagem Justine (Kirsten Dunst) consolida o surgimento de sua depressão de modo quase pernicioso, tamanho o rigor didático na apresentação reiterada da mesma. Editada da mesma forma elíptica que seus mais famosos filmes realizados com o auxílio de câmeras digitais, a primeira metade de “Melancolia” escancara a dificuldade de se viver num mundo entulhado de normas sociais burguesamente fetichistas com uma intensidade já anunciada em obras mais fortes do cineasta, como “Ondas do Destino” (1996) ou “Os Idiotas” (1998).
O deslocamento psicológico de Justine é prevenido e contrabalançado pelo senso de humor ferino de seu pai (vivido por John Hurt), pela ostensividade monetária de seu cunhado John (Kiefer Sutherland), pela acidez misantrópica de sua mãe Gaby (Charlotte Rampling), pelo senso inicial de organização cerimonial de sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg), pela pretendida devoção amorosa de seu marido Michael (Alexander Skarsgård), pelo carinho otimista de seu sobrinho Leo (Cameron Spurr), pela ojeriza institucional de um antipático organizador de casamentos (Udo Kier) e pelo oportunismo profissional de seu patrão Jack (Stellan Skarsgård). Aos poucos, portanto, ela se deixa desabar num espiral de pequenas desgraças anunciadas, entregando-se sexualmente ao inconveniente Tim (Brady Corbet) na mesma noite de núpcias em que rejeitara transar com o homem com quem acabara de se desposar. E é este desabamento psiquiátrico que permite que a nocividade comunitária tão comumente enunciada em cada uma das obras trierianas imponha-se de forma tão discreta quanto esteticamente acachapante.
Quiçá o segmento de filme mais fotograficamente inebriante da carreira de Lars Von Trier, a segunda metade de “Melancolia” faz as vezes de íntima panacéia para o iminente fim do mundo, não apenas no sentido astronomicamente literal, mas como píncaro de uma sociedade em vias de auto-extinção por causa da sujeição obsedante à competição profissional. O extraordinário trabalho fotográfico de Manuel Alberto Claro traduz em minúcias as indagações protestantes do roteirista Lars von Trier, que aplica aqui a literalidade hermenêutica dos índices que anunciara no início de seu filme.
Aos poucos, cada um dos instantes de comunhão fraternal tardia diante da inevitabilidade da destruição do planeta Terra é deslindado em seqüências de grande beleza visual e passional, culminando numa breve e impressionante representação do Armagedom, quando as duas irmãs e o filho de uma delas dão-se as mãos num gesto de amor que não impede e nem é impedido pela devastação completa do mundo que os rodeia. E, por mais pessimista que pareça ser o diretor – dentre os merecidos adjetivos que ele recebe de seus exegetas – um indício benfazejo de redenção é concedido aos seus personagens, que morrem tragicamente, como é de costume em seu ‘corpus’, mas, ao contrário do que percebemos em “Epidemia” (1987), “Dançando no Escuro” (2000) ou até mesmo em “Dogville” (2003), lidam com a inaplacabilidade do fatalismo circundante de uma maneira que se assemelha à aceitação humanitária do mesmo. E, se este filme não causa o mesmo impacto polemista ou formalmente inovador de outros filmes, esta reviravolta moralmente discursiva é quase chocante num cotejo com a brutalidade anterior e justificadamente demonstrada.
No afã por encontrar algum foco interpretativo mais geral para este filme que não seja a mera legitimação proposital do conceito de indicialidade na obra de Lars von Trier, o brotamento tardio de amor mútuo entre os personagens surpreende pela dubiedade do próprio questionamento acerca de sua ironia representativa. Em outras palavras: “Melancolia” é muitíssimo mais discreto que qualquer outro filme do diretor [incluindo-se aqui obras menos conhecidas como “Medéia” (1988) ou “Europa” (1991)], mas destaca-se pungentemente enquanto peça dramática e urgentemente contextualizada, conforme se pode atestar na suspensão de respiração que aflige o espectador em cenas como o momento em que Justine confessa que sente dificuldades em caminhar pois tem a impressão de que há “um longo fio de lã cinzenta amarrado nos tornozelos”, quando sua mãe assevera que “mesmo cambaleando, ainda se pode fugir de qualquer situação desagradável”, quando ela paralisa diante de uma banheira na cena em que sua irmã tenta lavá-la, quando ela espanca o cavalo em que estava montada e, principalmente, quando os personagens sentem-se justamente asfixiados depois que o astro fictício que intitula o filme penetra na atmosfera terrestre.
O silêncio dilacerador que toma de assalto aqueles que se dispuseram a sentir na pele a mesma aflição que Justine e Claire experimentam é a prova definitiva do quanto este filme é positivamente valorativo e reflete a genialidade insuspeita de Lars von Trier, mesmo quando ele parece burilar a crueldade característica de seu estilo. Dito isto, alguém mais se habilita a participar do brinde que o milionário John estende em homenagem à Vida?
Wesley Pereira de Castro.
Não obstante ser um ótimo filme, “Melancolia” é deveras brando no que tange à reiteração dos adjetivos supracitados. Por mais que as declarações sarcásticas e mal-compreendidas do diretor tenham causado alvoroço nas reuniões de imprensa para divulgação de sua estréia cinematográfica, o filme em si é contido, centripetamente emocional e bem mais internalizado do que as conclamações socialmente julgamentais dos alter-egos e vítimas femininas do cineasta acostumaram-nos a aguardar, mas, ainda assim, é muito coerente em relação ao tipo de clímax lacrimoso crescente que ele impõe sobre as suas corajosas atrizes. E, se a exuberante Kirsten Dunst é sujeitada a um ‘tour de force’ depressivo digno de muita identificação sobrevivencial, é Charlotte Gainsbourg quem realmente se sobressai no elenco, com uma interpretação que se translada do rígido controle cerimonial para a extrema fragilidade familiar, de forma tão impactante quanto esperada por quem já está acostumado a ler os índices trierianos.
Os admiradores e/ou conhecedores do cineasta deduzem rapidamente que o lento preâmbulo do filme – musicado por “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner, e permeado por imagens belíssimas de teor naturalmente apocalíptico – sintetiza as mudanças de rumo enredístico que serão conduzidas através dos seus 136 minutos de duração. Nesse sentido, a inteligência compositiva do cineasta deve ser destacada pelo brilhantismo discursivo da primeira parte de seu filme, em que a tumultuada cerimônia de casamento da personagem Justine (Kirsten Dunst) consolida o surgimento de sua depressão de modo quase pernicioso, tamanho o rigor didático na apresentação reiterada da mesma. Editada da mesma forma elíptica que seus mais famosos filmes realizados com o auxílio de câmeras digitais, a primeira metade de “Melancolia” escancara a dificuldade de se viver num mundo entulhado de normas sociais burguesamente fetichistas com uma intensidade já anunciada em obras mais fortes do cineasta, como “Ondas do Destino” (1996) ou “Os Idiotas” (1998).
O deslocamento psicológico de Justine é prevenido e contrabalançado pelo senso de humor ferino de seu pai (vivido por John Hurt), pela ostensividade monetária de seu cunhado John (Kiefer Sutherland), pela acidez misantrópica de sua mãe Gaby (Charlotte Rampling), pelo senso inicial de organização cerimonial de sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg), pela pretendida devoção amorosa de seu marido Michael (Alexander Skarsgård), pelo carinho otimista de seu sobrinho Leo (Cameron Spurr), pela ojeriza institucional de um antipático organizador de casamentos (Udo Kier) e pelo oportunismo profissional de seu patrão Jack (Stellan Skarsgård). Aos poucos, portanto, ela se deixa desabar num espiral de pequenas desgraças anunciadas, entregando-se sexualmente ao inconveniente Tim (Brady Corbet) na mesma noite de núpcias em que rejeitara transar com o homem com quem acabara de se desposar. E é este desabamento psiquiátrico que permite que a nocividade comunitária tão comumente enunciada em cada uma das obras trierianas imponha-se de forma tão discreta quanto esteticamente acachapante.
Quiçá o segmento de filme mais fotograficamente inebriante da carreira de Lars Von Trier, a segunda metade de “Melancolia” faz as vezes de íntima panacéia para o iminente fim do mundo, não apenas no sentido astronomicamente literal, mas como píncaro de uma sociedade em vias de auto-extinção por causa da sujeição obsedante à competição profissional. O extraordinário trabalho fotográfico de Manuel Alberto Claro traduz em minúcias as indagações protestantes do roteirista Lars von Trier, que aplica aqui a literalidade hermenêutica dos índices que anunciara no início de seu filme.
Aos poucos, cada um dos instantes de comunhão fraternal tardia diante da inevitabilidade da destruição do planeta Terra é deslindado em seqüências de grande beleza visual e passional, culminando numa breve e impressionante representação do Armagedom, quando as duas irmãs e o filho de uma delas dão-se as mãos num gesto de amor que não impede e nem é impedido pela devastação completa do mundo que os rodeia. E, por mais pessimista que pareça ser o diretor – dentre os merecidos adjetivos que ele recebe de seus exegetas – um indício benfazejo de redenção é concedido aos seus personagens, que morrem tragicamente, como é de costume em seu ‘corpus’, mas, ao contrário do que percebemos em “Epidemia” (1987), “Dançando no Escuro” (2000) ou até mesmo em “Dogville” (2003), lidam com a inaplacabilidade do fatalismo circundante de uma maneira que se assemelha à aceitação humanitária do mesmo. E, se este filme não causa o mesmo impacto polemista ou formalmente inovador de outros filmes, esta reviravolta moralmente discursiva é quase chocante num cotejo com a brutalidade anterior e justificadamente demonstrada.
No afã por encontrar algum foco interpretativo mais geral para este filme que não seja a mera legitimação proposital do conceito de indicialidade na obra de Lars von Trier, o brotamento tardio de amor mútuo entre os personagens surpreende pela dubiedade do próprio questionamento acerca de sua ironia representativa. Em outras palavras: “Melancolia” é muitíssimo mais discreto que qualquer outro filme do diretor [incluindo-se aqui obras menos conhecidas como “Medéia” (1988) ou “Europa” (1991)], mas destaca-se pungentemente enquanto peça dramática e urgentemente contextualizada, conforme se pode atestar na suspensão de respiração que aflige o espectador em cenas como o momento em que Justine confessa que sente dificuldades em caminhar pois tem a impressão de que há “um longo fio de lã cinzenta amarrado nos tornozelos”, quando sua mãe assevera que “mesmo cambaleando, ainda se pode fugir de qualquer situação desagradável”, quando ela paralisa diante de uma banheira na cena em que sua irmã tenta lavá-la, quando ela espanca o cavalo em que estava montada e, principalmente, quando os personagens sentem-se justamente asfixiados depois que o astro fictício que intitula o filme penetra na atmosfera terrestre.
O silêncio dilacerador que toma de assalto aqueles que se dispuseram a sentir na pele a mesma aflição que Justine e Claire experimentam é a prova definitiva do quanto este filme é positivamente valorativo e reflete a genialidade insuspeita de Lars von Trier, mesmo quando ele parece burilar a crueldade característica de seu estilo. Dito isto, alguém mais se habilita a participar do brinde que o milionário John estende em homenagem à Vida?
Wesley Pereira de Castro.
terça-feira, 16 de agosto de 2011
SUPER 8 ('Super 8') EUA, 2011. Direção: J. J. Abrams.
Não obstante gozar de considerável fama e de suficiente capital comercial por ter sido o criador do bem-sucedido seriado televisivo “Lost” e por ter dirigido o nojoso mas vendável “Star Trek” (2009), J.J. Abrams é comumente eclipsado no material de divulgação deste filme pelo supradestacado nome do produtor Steven Spielberg. A principal explicação para a recorrência deste eclipse directivo não é meramente oportunista ou involuntária: de fato, “Super 8” tenta emular o clima de espanto extraterreno que marcou “E.T., o Extraterrestre” (1982), uma das várias obras-primas deste diretor. Além de alguns enquadramentos tentarem recriar o clima de deslumbramento que torna aquele filme inesquecível, o modo como os personagens pré-adolescentes são construídos parece se sujeitar a um padrão spielberguiano primevo de adesão sincera às motivações do público-alvo mais rentável de Hollywood.
Mas as semelhanças param por aí: por mais que o esforçado diretor de fotografia Larry Fong endosse a referida similaridade, o tom moral que J. J. Abrams imprime em seu roteiro trai violentamente o respeito infanto-juvenil que Steven Spielberg demonstrava em cada minuto de seu filme emulado. Para ficar em apenas um exemplo evidente, basta analisar como o péssimo uso da trilha sonora incidental de Michael Giacchino, colaborador habitual do diretor J. J. Abrams, chafurda no enfado não-diegético qualquer possibilidade de os personagens deste filme gozarem de tridimensionalidade compositiva.
Ou seja, até mesmo um ensaio actancial do curta-metragem que os diletantes personagens realizam é acompanhado por uma trilha sonora xaroposa que artificializa e torna ainda mais inverossímeis as reviravoltas defeituosas do entrecho, que descamba para a auto-ridicularização quando sucumbe a um clichê heróico ingênuo e basilar do cinema aventuresco: a crença de que o espectador aceitará como absolutamente normal que, por mais ameaçadores que possam ser os perigos ao redor, nenhum dos amigos íntimos do “mocinho” será morto ou gravemente ferido até que a estória termine. Pior: além da citada “indestrutibilidade prototípica”, os parentes e amigos do protagonista demonstram-se capazes de façanhas quase sobre-humanas, que garantem a salvação de toda a humanidade, numa inversão de princípios que, se parecia inicialmente destinada a reconstituir uma espécie de saudosismo oitentista, revela-se pernosticamente anacrônica em sua pecha de atualização tecnológica.
Abusando de componentes enredísticos absolutamente chavonados que têm por intuito-mor fazer com que um espectador mais velho (e, portanto, fã do filme spielberguiano) se sinta retransportado ao contexto em que “E.T., o Extraterrestre” fora lançado, “Super 8” abusa de elementos estereotípicos relacionados àquela época. Por isso, ouvimos um atendente de loja de conveniência escutar um sucesso antigo do grupo Blondie num ‘walkman’ e comemorar a novidade de tal empreitada; vemos uma cidadã reclamar que, segundo suas suspeitas plausíveis, o desaparecimento de vários fornos microondas de seu estoque de eletrodomésticos seja um estratagema de invasão soviética; e deparamo-nos com o sobejo de piadas envolvendo o funcionário de loja de revelação de material cinematográfico que exagera no consumo de substâncias entorpecentes. A pretensão destes estereótipos é evocar o espírito ‘kitsch’ tipicamente associado à década de 1980, mas estes fracassam por julgarem como retrógrados e caricatos os traços meramente peculiares de uma conjunção geracional.
Neste sentido, a descrição geral dos amigos do protagonista Joe Lamb (Joel Courtney) é abominável: há uma garotinha mui expressiva (Elle Fanning) mantida em confinamento pelo pai alcoólatra (Ron Eldard); há um garoto gordo e apaixonado por cinema de horror (Riley Griffiths) ansioso para poder encenar algumas convenções do gênero; há o rapazola bonito e mimado (Gabriel Basso), que sofre uma fratura exposta na perna como se fosse a punição por chorar e vomitar em demasia; há o piromaníaco imberbe (Ryan Lee) que contribui para que seus amigos livrem-se de uma situação de perigo, sem contar os policiais excessivamente íntegros e os militares insensíveis e vilanescos. Mas nada incomoda mais do que a previsibilidade acachapante das situações de redenção personalística que são anunciadas desde a primeira seqüência, quando sabemos que a morte da mãe de Joe por causa de um acidente metalúrgico engendrará a futura reconciliação entre o traumatizado causador do acidente e o amargurado viúvo, num diálogo que envergonha bastante por causa de sua insinceridade motivacional.
Ainda no que diz respeito às tentativas fracassadas de emular um clima de época, cabe-se perguntar o que o já mencionado diretor de fotografia Larry Fong quis dizer com a insistência em fazer com que um rastro de luz horizontal azul atravessasse a tela ao meio em mais de um momento: seja causada pelos faróis de um carro, pela fumaça de um cigarro, ou por reflexos luminosos aparentemente contingenciais, são diversas as seqüências em que esta linha azulada pode ser percebida nos fotogramas, como se possuísse uma significação fílmica essencial para a resolução/interpretação tramática, não sendo, portanto, um mero capricho técnico dos responsáveis pelo filme. Mas, tal qual o desaparecimento misterioso de todos os cachorros da cidade, esta linha azulada permanece sem explicação estético-funcional.
Além disso, os índices que antecedem a aparição definitiva do que se descobre como um extraterrestre confinado na Terra são falhos em sua intenção de criar suspense, posto que os efeitos especiais do filme são inconvincentes e deveras inferiores ao tipo de pirotecnia caro a produções do gênero. Tanto que beira o ridículo quando um garoto visa atrair a atenção do monstro alienígena com alguns fogos de artifício, quando este estava justamente ocupado com a montagem de uma maquete de nave espacial, em que faíscas ígneas saltavam das matérias-primas metálicas o tempo inteiro. Definitivamente, o roteiro paspalhão de J. J. Abrams subestima a capacidade perceptiva do espectador de uma forma tão vergonhosa quanto audaciosa, crente de que bastaria aumentar a intensidade dos acordes menos inspirados das composições de Michael Giacchino para obnubilar o quanto os clímaxes de ação deste filme são caricatos e esquemáticos.
Para que não se diga que o filme não tem mais nada de interessante, é válido acrescentar que a seqüência meta-narrativa que é apresentada durante os créditos finais é praticamente melhor que todo o filme em si, sendo feliz (agora sim!) na emulação de um espírito de época, homenageando adequadamente os famosos filmes de zumbis do mestre George A. Romero. Esta mesma seqüência, entretanto, revela o quanto o título do filme é infeliz em suas propostas genéricas, dado que as filmagens em Super-8 que os amigos infantis realizam durante o enredo vão se tornando terciárias enquanto foco de interesse, depois que o suposto poder de encantamento passional da personagem feminina Alice Dainard é externado. Voltando para o cotejo com o clássico spielberguiano: se, no filme de 1982, as crianças eram realmente interpretadas por crianças que agiam como crianças, aqui, as crianças são interpretadas por adolescentes que oscilam indiscriminadamente entre a pretensão profissional púbere (no pior sentido do termo, indicativo de adesão voluntária a uma fórmula de efetivação trabalhista) e os pantins tipicamente etários. Tudo isso contribui para que “Super 8” seja desagradabilíssimo enquanto retrato de uma época, enquanto filme de ação, enquanto esboço de ficção científica e enquanto cartilha moral reconciliatória. É como se Hollywood estivesse desaprendendo a emocionar ao mesmo tempo em que entrega às platéias um filme destinado a ser arrasa-quarteirão – como Steven Spielberg tão bem demonstrou em diversas de suas produções – o que só configura mais um reflexo lamentável da decadência hodierna generalizada que motivou a sua realização...
Wesley Pereira de Castro.
Mas as semelhanças param por aí: por mais que o esforçado diretor de fotografia Larry Fong endosse a referida similaridade, o tom moral que J. J. Abrams imprime em seu roteiro trai violentamente o respeito infanto-juvenil que Steven Spielberg demonstrava em cada minuto de seu filme emulado. Para ficar em apenas um exemplo evidente, basta analisar como o péssimo uso da trilha sonora incidental de Michael Giacchino, colaborador habitual do diretor J. J. Abrams, chafurda no enfado não-diegético qualquer possibilidade de os personagens deste filme gozarem de tridimensionalidade compositiva.
Ou seja, até mesmo um ensaio actancial do curta-metragem que os diletantes personagens realizam é acompanhado por uma trilha sonora xaroposa que artificializa e torna ainda mais inverossímeis as reviravoltas defeituosas do entrecho, que descamba para a auto-ridicularização quando sucumbe a um clichê heróico ingênuo e basilar do cinema aventuresco: a crença de que o espectador aceitará como absolutamente normal que, por mais ameaçadores que possam ser os perigos ao redor, nenhum dos amigos íntimos do “mocinho” será morto ou gravemente ferido até que a estória termine. Pior: além da citada “indestrutibilidade prototípica”, os parentes e amigos do protagonista demonstram-se capazes de façanhas quase sobre-humanas, que garantem a salvação de toda a humanidade, numa inversão de princípios que, se parecia inicialmente destinada a reconstituir uma espécie de saudosismo oitentista, revela-se pernosticamente anacrônica em sua pecha de atualização tecnológica.
Abusando de componentes enredísticos absolutamente chavonados que têm por intuito-mor fazer com que um espectador mais velho (e, portanto, fã do filme spielberguiano) se sinta retransportado ao contexto em que “E.T., o Extraterrestre” fora lançado, “Super 8” abusa de elementos estereotípicos relacionados àquela época. Por isso, ouvimos um atendente de loja de conveniência escutar um sucesso antigo do grupo Blondie num ‘walkman’ e comemorar a novidade de tal empreitada; vemos uma cidadã reclamar que, segundo suas suspeitas plausíveis, o desaparecimento de vários fornos microondas de seu estoque de eletrodomésticos seja um estratagema de invasão soviética; e deparamo-nos com o sobejo de piadas envolvendo o funcionário de loja de revelação de material cinematográfico que exagera no consumo de substâncias entorpecentes. A pretensão destes estereótipos é evocar o espírito ‘kitsch’ tipicamente associado à década de 1980, mas estes fracassam por julgarem como retrógrados e caricatos os traços meramente peculiares de uma conjunção geracional.
Neste sentido, a descrição geral dos amigos do protagonista Joe Lamb (Joel Courtney) é abominável: há uma garotinha mui expressiva (Elle Fanning) mantida em confinamento pelo pai alcoólatra (Ron Eldard); há um garoto gordo e apaixonado por cinema de horror (Riley Griffiths) ansioso para poder encenar algumas convenções do gênero; há o rapazola bonito e mimado (Gabriel Basso), que sofre uma fratura exposta na perna como se fosse a punição por chorar e vomitar em demasia; há o piromaníaco imberbe (Ryan Lee) que contribui para que seus amigos livrem-se de uma situação de perigo, sem contar os policiais excessivamente íntegros e os militares insensíveis e vilanescos. Mas nada incomoda mais do que a previsibilidade acachapante das situações de redenção personalística que são anunciadas desde a primeira seqüência, quando sabemos que a morte da mãe de Joe por causa de um acidente metalúrgico engendrará a futura reconciliação entre o traumatizado causador do acidente e o amargurado viúvo, num diálogo que envergonha bastante por causa de sua insinceridade motivacional.
Ainda no que diz respeito às tentativas fracassadas de emular um clima de época, cabe-se perguntar o que o já mencionado diretor de fotografia Larry Fong quis dizer com a insistência em fazer com que um rastro de luz horizontal azul atravessasse a tela ao meio em mais de um momento: seja causada pelos faróis de um carro, pela fumaça de um cigarro, ou por reflexos luminosos aparentemente contingenciais, são diversas as seqüências em que esta linha azulada pode ser percebida nos fotogramas, como se possuísse uma significação fílmica essencial para a resolução/interpretação tramática, não sendo, portanto, um mero capricho técnico dos responsáveis pelo filme. Mas, tal qual o desaparecimento misterioso de todos os cachorros da cidade, esta linha azulada permanece sem explicação estético-funcional.
Além disso, os índices que antecedem a aparição definitiva do que se descobre como um extraterrestre confinado na Terra são falhos em sua intenção de criar suspense, posto que os efeitos especiais do filme são inconvincentes e deveras inferiores ao tipo de pirotecnia caro a produções do gênero. Tanto que beira o ridículo quando um garoto visa atrair a atenção do monstro alienígena com alguns fogos de artifício, quando este estava justamente ocupado com a montagem de uma maquete de nave espacial, em que faíscas ígneas saltavam das matérias-primas metálicas o tempo inteiro. Definitivamente, o roteiro paspalhão de J. J. Abrams subestima a capacidade perceptiva do espectador de uma forma tão vergonhosa quanto audaciosa, crente de que bastaria aumentar a intensidade dos acordes menos inspirados das composições de Michael Giacchino para obnubilar o quanto os clímaxes de ação deste filme são caricatos e esquemáticos.
Para que não se diga que o filme não tem mais nada de interessante, é válido acrescentar que a seqüência meta-narrativa que é apresentada durante os créditos finais é praticamente melhor que todo o filme em si, sendo feliz (agora sim!) na emulação de um espírito de época, homenageando adequadamente os famosos filmes de zumbis do mestre George A. Romero. Esta mesma seqüência, entretanto, revela o quanto o título do filme é infeliz em suas propostas genéricas, dado que as filmagens em Super-8 que os amigos infantis realizam durante o enredo vão se tornando terciárias enquanto foco de interesse, depois que o suposto poder de encantamento passional da personagem feminina Alice Dainard é externado. Voltando para o cotejo com o clássico spielberguiano: se, no filme de 1982, as crianças eram realmente interpretadas por crianças que agiam como crianças, aqui, as crianças são interpretadas por adolescentes que oscilam indiscriminadamente entre a pretensão profissional púbere (no pior sentido do termo, indicativo de adesão voluntária a uma fórmula de efetivação trabalhista) e os pantins tipicamente etários. Tudo isso contribui para que “Super 8” seja desagradabilíssimo enquanto retrato de uma época, enquanto filme de ação, enquanto esboço de ficção científica e enquanto cartilha moral reconciliatória. É como se Hollywood estivesse desaprendendo a emocionar ao mesmo tempo em que entrega às platéias um filme destinado a ser arrasa-quarteirão – como Steven Spielberg tão bem demonstrou em diversas de suas produções – o que só configura mais um reflexo lamentável da decadência hodierna generalizada que motivou a sua realização...
Wesley Pereira de Castro.
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domingo, 14 de agosto de 2011
A ÁRVORE DA VIDA ('The Tree of Life') EUA, 2011. Direção: Terrence Malick.
Numa primeira análise, muitas são as similaridades percebidas entre os estilos e personalidades de Terrence Malick e Stanley Kubrick. Ambos são pessoalmente reservados, sofreram violentas sanções de seus produtores no que tange à autoralidade premente de suas obras, filmam com largos intervalos de tempo entre uma produção e outra e são muito coerentes na exortação das determinações morais que impingem em suas preciosidades cinematográficas. Enquanto o segundo diretor polariza os seus enredos através do conflito manifesto entre livre-arbítrio individual X pressões institucionais, o primeiro dialoga diretamente com uma entidade que pode ser amplamente cognominada como Deus.
Em seu filme mais recente, portanto, Terrence Malick assume este diálogo num viés que traz à tona o tipo de sobrenaturalidade realista praticado com fervor pelo genial cineasta italiano Roberto Rossellini. Os traços malickianos peculiares de montagem, fotografia e enredo estão lá: apesar de possuir apenas 139 minutos de duração e de os fotogramas serem concatenados de um modo célere quase videoclipesco, a suspensão proposital da narrativa faz com que o filme pareça mais lento do que é, forçando o espectador a uma reflexão intensa sobre os substratos éticos e religiosos da obra e da própria vida, tendo como ponto de partida o cotidiano de uma família tipicamente estadunidense, composta por pai, mãe e três filhos do sexo masculino, com pouca diferença de idade entre si. Um deles morre tragicamente e causa uma perturbação perene nos seus familiares sobreviventes, perturbação esta que será redimida numa seqüência derradeira metaforicamente associada ao Juízo Final ou ao sumo perdão divino que cimenta muitas religiões cristãs. O diferencial no modo como o diretor e roteirista defende seus pontos de vista mui particulares sobre religiosidade está no teor experimental de sua narrativa que, se não pode ser completamente tachada de inovadora (não obstante ser desconcertantemente inaudita) é justamente porque se assemelha deveras ao trecho final de “2001: Uma Odisséia no Espaço” (1968), obra-prima do cineasta com o qual Terrence Malick foi comparado no início deste parágrafo. Afinal de contas, em pelo século XXI, quem imaginaria que um drama intimista sobre a reconstituição intravalorativa de uma família norte-americana seria contrabalançado pela gênese de águas-vivas e pela extinção dos dinossauros?
Apesar de seus intentos gerais permanecerem obscuros para quem não viu todos os filmes anteriores do cineasta, não se pode reclamar que Terrence Malick tenha sido pouco explícito na explanação de suas crenças: construindo o personagem Jack O’Brien (na infância, supremamente interpretado por Hunter McCracken; e, na idade adulta, por Sean Penn) como uma espécie de alter-ego confessional, o enredo deste filme inicia-se com uma divagação da jovem mãe interpretada maravilhosamente por Jessica Chastain, que comenta que, na infância, ensinaram-lhe a diferenciar prontamente a Natureza da Graça. Segundo ela, enquanto a primeira acostuma-se a ser vilipendiada, traída e abandonada, a segunda assegura um final feliz e a comunhão dos bons sentimentos àqueles que a seguem. A partir daí, uma coletânea surpreendentemente sintética e minuciosa de cenas típicas do cotidiano familiar (tanto alegres quanto tristes) são despejadas, demonstrando o verdadeiro ‘tour de force’ que os cinco montadores do filme (entre eles, o brasileiro Daniel Rezende) tiveram que executar a fim de porem em prática o subjetivismo narrativo do diretor. Sabemos de antemão que um dos três filhos morre (de forma nunca claramente explicada ao espectador), que o pai vivido por Brad Pitt é austero e um tanto contraditório em suas exigências comportamentais e que a criança através de cujo ponto de vista é narrado o filme questiona o tempo inteiro os fundamentos da existência normativa de Deus. Eis o pretexto para que o cineasta se disponha a uma genial e demorada seqüência sobre os primórdios do Universo, através de uma perspectiva físico-existencial que confronta diretamente tanto aqueles que aceitam apaixonadamente a teoria de “Deus criou o céu a terra”, com diz a Bíblia, quanto aqueles que se baseiam prioritariamente em evidências paleontológicas para afixarem-se aos saberes científicos como sendo assaz válidos, em especial num cotejo com as crenças religiosas.
Oscilando narrativamente entre geo-biogênese, memórias de infância e lamentações e arrependimentos da vida adulta, o roteiro escrito por Terrence Malick perfaz um retrato incisivo e epopéico sobre um tema particularmente caro aos católicos: a incidência do sofrimento até mesmo sobre quem é fielmente temente ao Deus criador, o que só torna muito mais evidente a importância de se interpretar os versículos do livro de Jó, pronunciados por Deus em si, que surgem num letreiro inicial: “Sobre o que repousam as suas bases? Quem colocou nelas a pedra de ângulo, quando juntas cantavam as estrelas da manhã e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?” (38: 6-7).
Quem dispõe, portanto, de um acessório entendimento bíblico, sentir-se-á tentado a interpretar o filme como sendo uma releitura contemporânea do livro de Jó, um servo fiel de Deus, que, em razão de uma disputa de forças superiores à sua reles humanidade, é testado no âmago terreno de sua fé, conhecendo a dor, a perda e o abandono, não obstante ser precisamente aquilo o que o Velho testamento entendia como “um bom homem”. Acompanha-se, a partir de então, o embate cada vez mais ferrenho entre Jack e seu pai, a ponto de o primeiro rezar a Deus para que o segundo morra e, não obtendo resposta sobre as suas preces, clama: “Oh, Deus, porque nós temos que ser bons, se Tu mesmo não és?”. À medida que acentua cada vez mais o desamparo religioso do suposto protagonista infantil de seu filme, Terrence Malick prontamente restitui a narração da mãe como sendo vigorosa e onisciente, defendendo o apelo irrestrito ao perdão, à esperança e ao amor incondicional como sendo ferramentas precisas para se enfrentar a vida com a galhardia que ela exige. E é neste ponto que o para-rossellinismo do cineasta atinge o paroxismo de sua genialidade, qualitativo não apenas por suas qualidades meritórias em si, mas também – e principalmente – por ser audacioso o suficiente para demonstrar-se tão pessoal e idiossincrático num contexto fílmico em que o espetáculo e as superficialidades tramáticas são apregoados como únicas garantias de visibilidade exibitória. Ou seja: parafraseando o dito cristão de que “muitos são os chamados, poucos são os escolhidos”, Terrence Malick realiza aqui uma obra autoral e extraordinária que fala diretamente a qualquer ser, mas que, por isso mesmo, é prontamente rejeitada pela maioria deles, justamente porque o mundo circunvizinho logra crescente êxito no que diz respeito à despersonalização e ao esvaziamento referencial de seus espectadores, entendidos e auto-assumidos como meros consumidores epidermicamente saciados.
Além disso, evitando a prioridade de qualquer um dos dois preditos extremos da polarização entre Natureza e Graça, Terrence Malick faz desembocar um filme transcendental que conclama os espectadores a divagarem entre si sobre muito mais do que os parâmetros técnicos e compositivos dos filmes tradicionais os incitam. “A Árvore da Vida” é, portanto, um filme para ser introjetado não apenas pelos cinco sentidos humanos, mas também por uma motivação sobre-humana que justifica o celebre adágio pascaliano que afirma que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Em mais de um sentido, “A Árvore da Vida” é um filme sobre a idéia que alguns ainda insistem em batizar como Deus – e isto, no contexto hodierno de capitalismo evidente, é uma provocação para a qual pouquíssimos são os que ainda estão preparados para (red)argüirem.
Para concluir, posto que os atributos técnicos do filme foram também convocados à pauta, cabe acrescentar que nenhum crítico sentir-se-á plenamente à vontade para escrever o que quer que seja sobre este filme sem destacar a magnânima direção fotográfica de Emmanuel Lubezki, a encantatória trilha musical de Alexandre Desplat (que, dada a exuberância acachapante das imagens, soa justificadamente pusilânime nalguns momentos) e as ótimas interpretações de todo o elenco (ainda que, aqui, os atores ajam mais como avatares simbólico-metafísicos do que necessariamente como intérpretes de seres vivos com preocupações reais).
E, se o filme hesitou em ser perfeito como ele quase conseguiu, é quase como se tivesse se reservando à doação do direito divino de ser a suma e máxima perfeição, inebriando os espectadores com um sobejo de beleza e dor que, assim amalgamadas, grita de forma altissonante que Arte com inicial maiúscula é algo inequivocamente associado ao senso de ousadia. De coração, portanto, é preciso exclamar “amém!” quando a projeção deste filme se conclui. Por muitíssimo pouco, e quiçá propositalmente, não foi uma obra-prima!
Wesley Pereira de Castro.
Em seu filme mais recente, portanto, Terrence Malick assume este diálogo num viés que traz à tona o tipo de sobrenaturalidade realista praticado com fervor pelo genial cineasta italiano Roberto Rossellini. Os traços malickianos peculiares de montagem, fotografia e enredo estão lá: apesar de possuir apenas 139 minutos de duração e de os fotogramas serem concatenados de um modo célere quase videoclipesco, a suspensão proposital da narrativa faz com que o filme pareça mais lento do que é, forçando o espectador a uma reflexão intensa sobre os substratos éticos e religiosos da obra e da própria vida, tendo como ponto de partida o cotidiano de uma família tipicamente estadunidense, composta por pai, mãe e três filhos do sexo masculino, com pouca diferença de idade entre si. Um deles morre tragicamente e causa uma perturbação perene nos seus familiares sobreviventes, perturbação esta que será redimida numa seqüência derradeira metaforicamente associada ao Juízo Final ou ao sumo perdão divino que cimenta muitas religiões cristãs. O diferencial no modo como o diretor e roteirista defende seus pontos de vista mui particulares sobre religiosidade está no teor experimental de sua narrativa que, se não pode ser completamente tachada de inovadora (não obstante ser desconcertantemente inaudita) é justamente porque se assemelha deveras ao trecho final de “2001: Uma Odisséia no Espaço” (1968), obra-prima do cineasta com o qual Terrence Malick foi comparado no início deste parágrafo. Afinal de contas, em pelo século XXI, quem imaginaria que um drama intimista sobre a reconstituição intravalorativa de uma família norte-americana seria contrabalançado pela gênese de águas-vivas e pela extinção dos dinossauros?
Apesar de seus intentos gerais permanecerem obscuros para quem não viu todos os filmes anteriores do cineasta, não se pode reclamar que Terrence Malick tenha sido pouco explícito na explanação de suas crenças: construindo o personagem Jack O’Brien (na infância, supremamente interpretado por Hunter McCracken; e, na idade adulta, por Sean Penn) como uma espécie de alter-ego confessional, o enredo deste filme inicia-se com uma divagação da jovem mãe interpretada maravilhosamente por Jessica Chastain, que comenta que, na infância, ensinaram-lhe a diferenciar prontamente a Natureza da Graça. Segundo ela, enquanto a primeira acostuma-se a ser vilipendiada, traída e abandonada, a segunda assegura um final feliz e a comunhão dos bons sentimentos àqueles que a seguem. A partir daí, uma coletânea surpreendentemente sintética e minuciosa de cenas típicas do cotidiano familiar (tanto alegres quanto tristes) são despejadas, demonstrando o verdadeiro ‘tour de force’ que os cinco montadores do filme (entre eles, o brasileiro Daniel Rezende) tiveram que executar a fim de porem em prática o subjetivismo narrativo do diretor. Sabemos de antemão que um dos três filhos morre (de forma nunca claramente explicada ao espectador), que o pai vivido por Brad Pitt é austero e um tanto contraditório em suas exigências comportamentais e que a criança através de cujo ponto de vista é narrado o filme questiona o tempo inteiro os fundamentos da existência normativa de Deus. Eis o pretexto para que o cineasta se disponha a uma genial e demorada seqüência sobre os primórdios do Universo, através de uma perspectiva físico-existencial que confronta diretamente tanto aqueles que aceitam apaixonadamente a teoria de “Deus criou o céu a terra”, com diz a Bíblia, quanto aqueles que se baseiam prioritariamente em evidências paleontológicas para afixarem-se aos saberes científicos como sendo assaz válidos, em especial num cotejo com as crenças religiosas.
Oscilando narrativamente entre geo-biogênese, memórias de infância e lamentações e arrependimentos da vida adulta, o roteiro escrito por Terrence Malick perfaz um retrato incisivo e epopéico sobre um tema particularmente caro aos católicos: a incidência do sofrimento até mesmo sobre quem é fielmente temente ao Deus criador, o que só torna muito mais evidente a importância de se interpretar os versículos do livro de Jó, pronunciados por Deus em si, que surgem num letreiro inicial: “Sobre o que repousam as suas bases? Quem colocou nelas a pedra de ângulo, quando juntas cantavam as estrelas da manhã e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?” (38: 6-7).
Quem dispõe, portanto, de um acessório entendimento bíblico, sentir-se-á tentado a interpretar o filme como sendo uma releitura contemporânea do livro de Jó, um servo fiel de Deus, que, em razão de uma disputa de forças superiores à sua reles humanidade, é testado no âmago terreno de sua fé, conhecendo a dor, a perda e o abandono, não obstante ser precisamente aquilo o que o Velho testamento entendia como “um bom homem”. Acompanha-se, a partir de então, o embate cada vez mais ferrenho entre Jack e seu pai, a ponto de o primeiro rezar a Deus para que o segundo morra e, não obtendo resposta sobre as suas preces, clama: “Oh, Deus, porque nós temos que ser bons, se Tu mesmo não és?”. À medida que acentua cada vez mais o desamparo religioso do suposto protagonista infantil de seu filme, Terrence Malick prontamente restitui a narração da mãe como sendo vigorosa e onisciente, defendendo o apelo irrestrito ao perdão, à esperança e ao amor incondicional como sendo ferramentas precisas para se enfrentar a vida com a galhardia que ela exige. E é neste ponto que o para-rossellinismo do cineasta atinge o paroxismo de sua genialidade, qualitativo não apenas por suas qualidades meritórias em si, mas também – e principalmente – por ser audacioso o suficiente para demonstrar-se tão pessoal e idiossincrático num contexto fílmico em que o espetáculo e as superficialidades tramáticas são apregoados como únicas garantias de visibilidade exibitória. Ou seja: parafraseando o dito cristão de que “muitos são os chamados, poucos são os escolhidos”, Terrence Malick realiza aqui uma obra autoral e extraordinária que fala diretamente a qualquer ser, mas que, por isso mesmo, é prontamente rejeitada pela maioria deles, justamente porque o mundo circunvizinho logra crescente êxito no que diz respeito à despersonalização e ao esvaziamento referencial de seus espectadores, entendidos e auto-assumidos como meros consumidores epidermicamente saciados.
Além disso, evitando a prioridade de qualquer um dos dois preditos extremos da polarização entre Natureza e Graça, Terrence Malick faz desembocar um filme transcendental que conclama os espectadores a divagarem entre si sobre muito mais do que os parâmetros técnicos e compositivos dos filmes tradicionais os incitam. “A Árvore da Vida” é, portanto, um filme para ser introjetado não apenas pelos cinco sentidos humanos, mas também por uma motivação sobre-humana que justifica o celebre adágio pascaliano que afirma que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Em mais de um sentido, “A Árvore da Vida” é um filme sobre a idéia que alguns ainda insistem em batizar como Deus – e isto, no contexto hodierno de capitalismo evidente, é uma provocação para a qual pouquíssimos são os que ainda estão preparados para (red)argüirem.
Para concluir, posto que os atributos técnicos do filme foram também convocados à pauta, cabe acrescentar que nenhum crítico sentir-se-á plenamente à vontade para escrever o que quer que seja sobre este filme sem destacar a magnânima direção fotográfica de Emmanuel Lubezki, a encantatória trilha musical de Alexandre Desplat (que, dada a exuberância acachapante das imagens, soa justificadamente pusilânime nalguns momentos) e as ótimas interpretações de todo o elenco (ainda que, aqui, os atores ajam mais como avatares simbólico-metafísicos do que necessariamente como intérpretes de seres vivos com preocupações reais).
E, se o filme hesitou em ser perfeito como ele quase conseguiu, é quase como se tivesse se reservando à doação do direito divino de ser a suma e máxima perfeição, inebriando os espectadores com um sobejo de beleza e dor que, assim amalgamadas, grita de forma altissonante que Arte com inicial maiúscula é algo inequivocamente associado ao senso de ousadia. De coração, portanto, é preciso exclamar “amém!” quando a projeção deste filme se conclui. Por muitíssimo pouco, e quiçá propositalmente, não foi uma obra-prima!
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quarta-feira, 22 de junho de 2011
MEIA-NOITE EM PARIS ('Midnight in Paris') EUA/Espanha, 2011. Direção: Woody Allen.
A prática da masturbação sempre foi um tema ou subtema muito comum e determinante nos roteiros de Woody Allen. Entendida em seu sentido físico mais lato (a manipulação genital com vistas à obtenção do orgasmo auto-estimulado), esta prática é ostensivamente associada a alguns desvantajosos efeitos colaterais [vide o hipotético genocídio de espermatozóides em “Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo, Mas Tinha Medo de Perguntar” (1973) ou a infertilidade genética em “Hannah e Suas Irmãs” (1986)] e a recorrentes manutenções salvaguardadoras do ego [vide “O Dorminhoco” (1973), “A Última Noite de Boris Grushenko” (1975) e “Dirigindo no Escuro” (2002) como exemplos imediatos de menção entusiasta aos benefícios de tal prática].
Nos filmes mais recentes do diretor, entretanto, a opção por situar as tramas românticas em cidades européias – e não mais em sua Nova York natal – implica não apenas em uma mudança geográfica, mas também numa ampliação do escopo enredístico do diretor no que tange à detecção afetiva de uma crise manifesta das ‘intelligentsias’ contemporâneas. E, nesse contexto desesperançoso, a masturbação é ampliada para um nível psicológico-cultural e convocada enquanto suporte sobrevivencial, ainda que não mais explicitamente citada, conforme calhava de acontecer nos filmes anteriores. É o que incide aqui, muito mais do que nos demais filmes allenianos europeus: no início de “Meia-Noite em Paris”, o diretor se dedica a uma exposição dos principais pontos turísticos da capital francesa com um rigor e acuidade que só encontra precedente imediato no seminal “Manhattan” (1979), o que já diz bastante sobre o que o mais recente filme representa em sua carreira, por mais morno que ele se demonstre na primeira metade de exibição.
Protagonizado por Owen Wilson (que está absolutamente surpreendente e crível enquanto alter-ego alleniano), “Meia-Noite em Paris” tem como mote inicial a análise da acusação de que nostalgia equivale à “negação de um presente doloroso”. Tal frase é proferida por um rival do protagonista, um pedante professor universitário com extravagâncias pseudo-intelectuais, que critica o escritor Gil Pender, em mais de uma oportunidade, por causa do saudosismo deste último em relação à década de 1920 parisiense, época em que viveu alguns de seus mais notórios ídolos literários. Após alguns repetidos desentendimentos com o professor (vivido com muito cinismo e proposital irritabilidade por Michael Sheen), Gil tem acesso a uma espécie de portal do tempo que lhe permite viajar para a época em que Scott Fitzgerald (Tom Hiddleston), Gertrude Stein (Kathy Bates), Ernest Hemingway (Corey Stoll) e Pablo Picasso (Marcial Di Fonzo Bo) ainda eram vivos e caminhantes na famosa cidade-luz.
Em contato egrégio com estas personalidades, ele revê as impressões de satisfação que regiam sua vida até então, seja no que diz respeito às pretensões de feitura literária, seja no que diz respeito ao intento de levar a cabo o casamento com sua noiva Inez (Rachel McAdams), com quem parece ter divergências cada vez mais irreconciliáveis no plano da apreciação cultural. Quando se percebe, numa genial sacada de metalinguagem temporal, que seus ídolos também nutrem uma nostalgia por uma era anterior à que vivem (no caso, a ‘Belle Epoque’), a própria exacerbação elogiosa das glórias do passado em detrimento das irregularidades do presente é questionada, visto que o espiral de insatisfação é infinito, conforme se constata no magistral instante em que o pintor Edgar Degas (François Rostain) lamenta não estar vivendo durante a Renascença. E, com esse questionamento, Woody Allen demonstra mais uma vez o quanto é genial ao dividir as suas angústias mais pessoais com um público compreensivo e ansioso, que compartilha internamente os seus dilemas.
Reformulando: se, nos filmes anteriores, a masturbação, enxergada prioritariamente através do prisma sexual, era um conforto tênue para a inevitável discrepância entre a paixão carnal e a admissão da (in)compatibilidade ideológica com a pessoa por quem se nutre tal paixão, em “Meia-Noite em Paris” esta prática onanista dominante é compartilhada com o espectador através da identificação precisa de um pessimismo decorrente da exposição à decadência dos valores contemporâneos, que se torna ainda mais premente quando se presta atenção à maioria dos comentários da platéia de qualquer cinema em que o filme esteja sendo exibido. Perseguido por emanações reais dos personagens que interpretam os pais de Inez (Mimi Kennedy e Kurt Fuller), Woody Allen deposita neles alguns dos principais preconceitos depositados contra a sua obra mui singular e autoral, seja a repetição sarcástica do jargão “preço baixo, qualidade baixa”, dito pela mãe, seja a bazófia não-dialógica do pai quando se vê diante de um embate opinativo. Além disso, as cenas encantatórias em que Gil vai, aos poucos, já/ainda no presente, apaixonando-se pela vendedora de discos especializada em Cole Porter, conduzem-nos para um magnânimo desfecho romântico otimista, muitíssimo bem-vindo diante do clima inevitável de depressão contagiosa que a comparação entre o contexto fílmico e análise de sua realidade circunvizinha nos incute.
No plano técnico, este filme reitera os cacoetes de fidelidade que o diretor apregoou ao longo de suas dezenas de filmes: os característicos créditos brancos sobre fundo negro estão lá, a fotografia de Johanne Debas e Darius Khondji é discreta e refinada, os ângulos de câmera investem na prática certeira de, eventualmente, focalizar personagens que dialogam à distância (vide o momento em que Gil e sua noiva falam sobre Claude Monet ao fundo de uma paisagem natural que muito se parece com um de seus quadros) e o roteiro é repleto de piadas e apotegmas genais, como, por exemplo, aquele que é proferido pela ótima vivificação de Kathy Bates, que, por extensão, corresponde a uma lição de moral do próprio filme ao seu diretor: “a função do artista não é sucumbir ao desespero, mas criar um antídoto contra o vazio da existência”. E, por mais que o desfecho encantador deste filme possa ser criticado como utópico por alguns fãs mais rabugentos e/ou imediatistas do diretor, ele com certeza cumpre muitíssimo bem o apelo que esta definição intra-fílmica lhe imputa!
Wesley Pereira de Castro.
Nos filmes mais recentes do diretor, entretanto, a opção por situar as tramas românticas em cidades européias – e não mais em sua Nova York natal – implica não apenas em uma mudança geográfica, mas também numa ampliação do escopo enredístico do diretor no que tange à detecção afetiva de uma crise manifesta das ‘intelligentsias’ contemporâneas. E, nesse contexto desesperançoso, a masturbação é ampliada para um nível psicológico-cultural e convocada enquanto suporte sobrevivencial, ainda que não mais explicitamente citada, conforme calhava de acontecer nos filmes anteriores. É o que incide aqui, muito mais do que nos demais filmes allenianos europeus: no início de “Meia-Noite em Paris”, o diretor se dedica a uma exposição dos principais pontos turísticos da capital francesa com um rigor e acuidade que só encontra precedente imediato no seminal “Manhattan” (1979), o que já diz bastante sobre o que o mais recente filme representa em sua carreira, por mais morno que ele se demonstre na primeira metade de exibição.
Protagonizado por Owen Wilson (que está absolutamente surpreendente e crível enquanto alter-ego alleniano), “Meia-Noite em Paris” tem como mote inicial a análise da acusação de que nostalgia equivale à “negação de um presente doloroso”. Tal frase é proferida por um rival do protagonista, um pedante professor universitário com extravagâncias pseudo-intelectuais, que critica o escritor Gil Pender, em mais de uma oportunidade, por causa do saudosismo deste último em relação à década de 1920 parisiense, época em que viveu alguns de seus mais notórios ídolos literários. Após alguns repetidos desentendimentos com o professor (vivido com muito cinismo e proposital irritabilidade por Michael Sheen), Gil tem acesso a uma espécie de portal do tempo que lhe permite viajar para a época em que Scott Fitzgerald (Tom Hiddleston), Gertrude Stein (Kathy Bates), Ernest Hemingway (Corey Stoll) e Pablo Picasso (Marcial Di Fonzo Bo) ainda eram vivos e caminhantes na famosa cidade-luz.
Em contato egrégio com estas personalidades, ele revê as impressões de satisfação que regiam sua vida até então, seja no que diz respeito às pretensões de feitura literária, seja no que diz respeito ao intento de levar a cabo o casamento com sua noiva Inez (Rachel McAdams), com quem parece ter divergências cada vez mais irreconciliáveis no plano da apreciação cultural. Quando se percebe, numa genial sacada de metalinguagem temporal, que seus ídolos também nutrem uma nostalgia por uma era anterior à que vivem (no caso, a ‘Belle Epoque’), a própria exacerbação elogiosa das glórias do passado em detrimento das irregularidades do presente é questionada, visto que o espiral de insatisfação é infinito, conforme se constata no magistral instante em que o pintor Edgar Degas (François Rostain) lamenta não estar vivendo durante a Renascença. E, com esse questionamento, Woody Allen demonstra mais uma vez o quanto é genial ao dividir as suas angústias mais pessoais com um público compreensivo e ansioso, que compartilha internamente os seus dilemas.
Reformulando: se, nos filmes anteriores, a masturbação, enxergada prioritariamente através do prisma sexual, era um conforto tênue para a inevitável discrepância entre a paixão carnal e a admissão da (in)compatibilidade ideológica com a pessoa por quem se nutre tal paixão, em “Meia-Noite em Paris” esta prática onanista dominante é compartilhada com o espectador através da identificação precisa de um pessimismo decorrente da exposição à decadência dos valores contemporâneos, que se torna ainda mais premente quando se presta atenção à maioria dos comentários da platéia de qualquer cinema em que o filme esteja sendo exibido. Perseguido por emanações reais dos personagens que interpretam os pais de Inez (Mimi Kennedy e Kurt Fuller), Woody Allen deposita neles alguns dos principais preconceitos depositados contra a sua obra mui singular e autoral, seja a repetição sarcástica do jargão “preço baixo, qualidade baixa”, dito pela mãe, seja a bazófia não-dialógica do pai quando se vê diante de um embate opinativo. Além disso, as cenas encantatórias em que Gil vai, aos poucos, já/ainda no presente, apaixonando-se pela vendedora de discos especializada em Cole Porter, conduzem-nos para um magnânimo desfecho romântico otimista, muitíssimo bem-vindo diante do clima inevitável de depressão contagiosa que a comparação entre o contexto fílmico e análise de sua realidade circunvizinha nos incute.
No plano técnico, este filme reitera os cacoetes de fidelidade que o diretor apregoou ao longo de suas dezenas de filmes: os característicos créditos brancos sobre fundo negro estão lá, a fotografia de Johanne Debas e Darius Khondji é discreta e refinada, os ângulos de câmera investem na prática certeira de, eventualmente, focalizar personagens que dialogam à distância (vide o momento em que Gil e sua noiva falam sobre Claude Monet ao fundo de uma paisagem natural que muito se parece com um de seus quadros) e o roteiro é repleto de piadas e apotegmas genais, como, por exemplo, aquele que é proferido pela ótima vivificação de Kathy Bates, que, por extensão, corresponde a uma lição de moral do próprio filme ao seu diretor: “a função do artista não é sucumbir ao desespero, mas criar um antídoto contra o vazio da existência”. E, por mais que o desfecho encantador deste filme possa ser criticado como utópico por alguns fãs mais rabugentos e/ou imediatistas do diretor, ele com certeza cumpre muitíssimo bem o apelo que esta definição intra-fílmica lhe imputa!
Wesley Pereira de Castro.
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segunda-feira, 20 de junho de 2011
INCÊNDIOS ('Incendies') Canadá/França, 2010. Direção: Denis Villeneuve.
Por mais pungente que o enredo deste filme se revele ao longo da projeção, em seu quartel final, o espectador tende a se decepcionar com o excesso de artifícios roteirísticos que anseiam por chamar bem mais atenção involuntária para a concepção do filme em si do que para a estória que ele conta. Ou seja, à medida que a saga genético-cognoscitiva dos irmãos Marwan aproxima-se do seu planejado desfecho, o roteiro demonstra-se exageradamente autoconfiante e dependente da aceitação tácita de seu minucioso elaboracionismo, tornando pouco credível a consecução do percurso efetuado pelos personagens a fim de cumprirem os desejos fúnebres de sua mãe e as promessas que ela deixou interrompidas em vida.
É nesse ponto, portanto, que se constata que, por mais intensa e prenhe de elã que seja a interpretação da diva Luzna Azabal, sua personagem é apenas bidimensional, não ultrapassando a vacuidade compositiva que o ultra-realismo mui convincente de algumas seqüências deixa entrever. Não é um defeito que dirime por completo a perplexidade discursiva contra o absurdo da guerra exalada pelo filme, mas irrita no que tange à percepção do sobejo exibicionista da equipe técnica, que parece muito mais preocupada com láureas e méritos críticos do que com a emoção espectatorial propriamente dita (ou sentida). Quiçá, um mal menor. Talvez, uma advertência de hipocrisia moralista: cada um escolhe como este detalhe afeta ou não a apreciação geral do filme, que, assim mesmo, não deixa de ser recomendadíssimo!
Para que a qualidade destacável deste filme pudesse ser percebida, foi de suma importância o trabalho do elenco, em especial a já destacada interpretação da atriz belga Luzna Azabal, que dota a sua personagem de toda entrega pulsional, expressividade e intimismo militante que a mesma necessita. Isto não impede, porém, que a construção da referida personagem denote uma limitação problemática (no mau sentido do termo) no reconhecimento de seus caracteres psicológicos e afetivos, o que fica ainda mais evidente quando se tenta reconstruir a personalidade maternal da mesma, em sua estadia no Canadá, em comparação com os percalços sobrevivenciais que ela enfrentou no país fictício em que se passa a maior parte da ação.
Reproduzindo vários dos cacoetes gesticulares médio-orientais da intérprete de sua mãe, Mélissa Désormeaux-Poulin também se destaca por uma interpretação oscilante entre o contido e o explosivo, enquanto Maxim Gaudette está desenxabido e inconvincente como seu irmão gêmeo Simon. Rémy Gerard, por sua vez, até que está competente na pele do notário Jean Lebel, mas seu personagem é dispensável e verborrágico.
Dentre os demais aspectos técnicos do filme, pode-se elogiar largamente a direção de fotografia de André Turpin, a montagem consistentemente alinear de Monique Dartonne, e, principalmente, a ótima trilha sonora incidental de Grégoire Hetzel, que se dá ao luxo de incluir a melancólica canção “You and Whose Army?”, do Radiohead, em paroxismos dramáticos. Se, no primeiro momento em que esta canção é ouvida, ainda na seqüência inicial, quando acompanhamos vários garotos órfãos terem seus cabelos raspados, o aspecto da mesma é desviadamente videoclipesco, quando a ouvimos novamente, através dos fones de ouvido da personagem Jeanne, os elementos de identificação entristecida são mais do que funcionais e elogiosos.
O mesmo não pode ser dito sobre a progressão do roteiro, que merece ser analisado num parágrafo à parte em razão de seu decréscimo impactante, para além da insistência auto-evidente em demonstrar o quanto é inventivo em seus estratagemas de choque moral.
Escrito pelo próprio diretor, com base numa peça teatral de Wajdi Mouawad, o roteiro deste filme é, de fato, muitíssimo elaborado e coeso em seus vais-e-vens tramáticos, Entretanto, à medida que o filme avença e os planos de descoberta engendrados por Nawal são postos em prática, uma leve inverossimilhança contextual adiciona-se à feitura do filme, fazendo com que a sinceridade denuncista até então pretendida pelo enredo seja quase obscurecida por seu formalismo técnico. Além disso, a descoberta de que os gêmeos Jeanne e Simon são filhos de um estupro incestuoso não contribui informativamente para a quebra imediata da corrente de ódio que Nawal menciona numa derradeira carta-testamento, mas, pelo contrário, endossa um moralismo tardio que deixa em aberto a pressuposição de que as demonstrações de suma violência ali externadas tornam-se mais justificadamente dramáticas quando associadas a um ambiente trágico familiar, quando já o eram por excelência, mesmo em parâmetros gerais, conforme se detecta na extraordinária, potente e asfixiante seqüência em que um ônibus repleto de mulheres e crianças muçulmanas é queimado por fundamentalistas cristãos, na melhor cena do filme, que, não por acaso, é também a mais famosa imagem de divulgação do mesmo.
Além disso, os melindres legislativos durante a prisão oficial de Nawal, depois que ela assassina o principal político nacionalista do país em que vive, não condiz com o imediatismo vingativo demonstrado não somente na seqüência anteriormente descrita como também nas paqueras insistentes que ela recebe dos responsáveis pela segurança do referido político, quando adentra a sua casa, a fim de trabalhar como professora de francês do filho dele. Mas, conforme defendido antes, tudo isto pode ser convenientemente assumido como males menores, visto que é inegável que não somente “Incêndios” é um filme qualitativamente superior como ele ainda impressiona e irrita bastante ao demonstrar o quão absurdas e recorrentes são algumas posturas genocidas e segregacionistas ainda adotadas – em nome de princípios religiosos ou políticos, que seja – em algumas regiões do mundo. E, por todo o vigor e/ou potência emocional que ele nos faz descarregar, “Incêndios” ainda impressiona – e muito!
Wesley Pereira de Castro.
É nesse ponto, portanto, que se constata que, por mais intensa e prenhe de elã que seja a interpretação da diva Luzna Azabal, sua personagem é apenas bidimensional, não ultrapassando a vacuidade compositiva que o ultra-realismo mui convincente de algumas seqüências deixa entrever. Não é um defeito que dirime por completo a perplexidade discursiva contra o absurdo da guerra exalada pelo filme, mas irrita no que tange à percepção do sobejo exibicionista da equipe técnica, que parece muito mais preocupada com láureas e méritos críticos do que com a emoção espectatorial propriamente dita (ou sentida). Quiçá, um mal menor. Talvez, uma advertência de hipocrisia moralista: cada um escolhe como este detalhe afeta ou não a apreciação geral do filme, que, assim mesmo, não deixa de ser recomendadíssimo!
Para que a qualidade destacável deste filme pudesse ser percebida, foi de suma importância o trabalho do elenco, em especial a já destacada interpretação da atriz belga Luzna Azabal, que dota a sua personagem de toda entrega pulsional, expressividade e intimismo militante que a mesma necessita. Isto não impede, porém, que a construção da referida personagem denote uma limitação problemática (no mau sentido do termo) no reconhecimento de seus caracteres psicológicos e afetivos, o que fica ainda mais evidente quando se tenta reconstruir a personalidade maternal da mesma, em sua estadia no Canadá, em comparação com os percalços sobrevivenciais que ela enfrentou no país fictício em que se passa a maior parte da ação.
Reproduzindo vários dos cacoetes gesticulares médio-orientais da intérprete de sua mãe, Mélissa Désormeaux-Poulin também se destaca por uma interpretação oscilante entre o contido e o explosivo, enquanto Maxim Gaudette está desenxabido e inconvincente como seu irmão gêmeo Simon. Rémy Gerard, por sua vez, até que está competente na pele do notário Jean Lebel, mas seu personagem é dispensável e verborrágico.
Dentre os demais aspectos técnicos do filme, pode-se elogiar largamente a direção de fotografia de André Turpin, a montagem consistentemente alinear de Monique Dartonne, e, principalmente, a ótima trilha sonora incidental de Grégoire Hetzel, que se dá ao luxo de incluir a melancólica canção “You and Whose Army?”, do Radiohead, em paroxismos dramáticos. Se, no primeiro momento em que esta canção é ouvida, ainda na seqüência inicial, quando acompanhamos vários garotos órfãos terem seus cabelos raspados, o aspecto da mesma é desviadamente videoclipesco, quando a ouvimos novamente, através dos fones de ouvido da personagem Jeanne, os elementos de identificação entristecida são mais do que funcionais e elogiosos.
O mesmo não pode ser dito sobre a progressão do roteiro, que merece ser analisado num parágrafo à parte em razão de seu decréscimo impactante, para além da insistência auto-evidente em demonstrar o quanto é inventivo em seus estratagemas de choque moral.
Escrito pelo próprio diretor, com base numa peça teatral de Wajdi Mouawad, o roteiro deste filme é, de fato, muitíssimo elaborado e coeso em seus vais-e-vens tramáticos, Entretanto, à medida que o filme avença e os planos de descoberta engendrados por Nawal são postos em prática, uma leve inverossimilhança contextual adiciona-se à feitura do filme, fazendo com que a sinceridade denuncista até então pretendida pelo enredo seja quase obscurecida por seu formalismo técnico. Além disso, a descoberta de que os gêmeos Jeanne e Simon são filhos de um estupro incestuoso não contribui informativamente para a quebra imediata da corrente de ódio que Nawal menciona numa derradeira carta-testamento, mas, pelo contrário, endossa um moralismo tardio que deixa em aberto a pressuposição de que as demonstrações de suma violência ali externadas tornam-se mais justificadamente dramáticas quando associadas a um ambiente trágico familiar, quando já o eram por excelência, mesmo em parâmetros gerais, conforme se detecta na extraordinária, potente e asfixiante seqüência em que um ônibus repleto de mulheres e crianças muçulmanas é queimado por fundamentalistas cristãos, na melhor cena do filme, que, não por acaso, é também a mais famosa imagem de divulgação do mesmo.
Além disso, os melindres legislativos durante a prisão oficial de Nawal, depois que ela assassina o principal político nacionalista do país em que vive, não condiz com o imediatismo vingativo demonstrado não somente na seqüência anteriormente descrita como também nas paqueras insistentes que ela recebe dos responsáveis pela segurança do referido político, quando adentra a sua casa, a fim de trabalhar como professora de francês do filho dele. Mas, conforme defendido antes, tudo isto pode ser convenientemente assumido como males menores, visto que é inegável que não somente “Incêndios” é um filme qualitativamente superior como ele ainda impressiona e irrita bastante ao demonstrar o quão absurdas e recorrentes são algumas posturas genocidas e segregacionistas ainda adotadas – em nome de princípios religiosos ou políticos, que seja – em algumas regiões do mundo. E, por todo o vigor e/ou potência emocional que ele nos faz descarregar, “Incêndios” ainda impressiona – e muito!
Wesley Pereira de Castro.
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domingo, 12 de junho de 2011
X-MEN: PRIMEIRA CLASSE ('X-Men: First Class') EUA, 2011. Diretor: Matthew Vaughn
Os filmes anteriores do diretor Matthew Vaughn chamaram a atenção do público hollywoodiano por causa de sua sagacidade no que tange ao uso da violência gratuita e de um tipo fantasioso de humor que muito se atrela às alegadas necessidades externas adolescentes. Como tal, é o sobejo destes dois elementos no filme em pauta que configura o seu maior problema, visto que há um descompasso premente entre o apelo dramático e sub-repticiamente político da primeira metade do filme e a empolgação aventuresca da segunda metade. Não obstante tal descompasso, “X-Men: Primeira Classe” não decepciona tanto quando comparado aos ótimos filmes que Bryan Singer realizou com base nos extraordinários personagens criados por Stan Lee.
Se, nos filmes anteriores, o foco do enredo era o auge da complexa oposição ideológica entre os mutantes Magneto e Professor Xavier, neste mais recente filme, a trama é focada nos primórdios do relacionamento entre os dois opositores, explicando como eles se conheceram e vieram a se tornar os ícones personalísticos das Histórias em Quadrinhos, hoje tão admirados por aqueles que lêem com precisão os subtextos políticos deste conflito entre humanos X mutantes anti-humanos X mutantes pró-humanos, que, como se sabe, mescla tanto os clamores reivindicativos dos movimentos identitários dos líderes negros norte-americanos quanto as indagações homossexuais. Nesse sentido, enquanto principal cena associada ao estilo vaughniano de dirigir, pode-se destacar o divertido momento em que os mutantes predominantemente adolescentes que o professor Xavier recruta são mostrados comemorando e comparando os seus poderes no que mais parece uma festa reservada no cômodo da CIA em que eles estavam confinados. Neste momento específico, aliás, Matthew Vaughn merece crédito positivo pela assunção dos valores fílmicos em que acredita, ainda que, nas demais oportunidades, esta assunção pareça concorrente à seriedade que o roteiro exige, em especial se comparado com os quase excelentes dois primeiros filmes anteriores.
Contando com uma seqüência inicial que acrescenta mais detalhes o impactante prólogo de “X-Men – O Filme” (2000, de Bryan Singer), em que as atrocidades dos campos de concentração nazistas contribuem para justificar o ódio que o judeu Eric Lehnsherr, o futuro Magneto, nutre pelos humanos preconceituosos, “X-Men: Primeira Classe” promete um cuidadoso registro das primeiras aparições públicas dos mutantes, registro este que se mantém valorativo no encontro xaroposo entre Charles Xavier, ainda criança, e aquela que se tornaria Mística anos depois. Infelizmente, porém, a má interpretação do pré-adolescente Bill Milner como o gritante Eric juvenil estraga uma seqüência importantíssima de manifestação odiosa, compensada pela firmeza interpretativa de Kevin Bacon, que está ótimo na pele do cruel Sebastian Shaw.
À medida que as tramas paralelas das sagas de Magneto e Professor Xavier são deslanchadas, a adoção de elementos do entrecho que fazem menção a eventos reais da Guerra Fria entre Estados Unidos da América e União Soviética, no início da década de 1960, dilui o impacto tramático, ao depositar sobressalente confiança no chamariz heróico dos agentes dos órgãos governamentais de defesa estadunidense, instaurando um triunfalismo nacionalista que se torna ainda mais incômodo (e quase contraditório) noutros momentos do filme, por mais competente que Rose Byrne esteja enquanto intérprete da destemida Moira MacTaggert.
O clímax belicoso que é pretendido na seqüência em que soldados soviéticos e norte-americanos disparam mísseis contra a ilha em que os mutantes lutavam entre si soa forçoso enquanto momento instaurador da divergência político-valorativa que marcará as trajetórias conflitantes de Professor Xavier e Magneto, no que tange à coexistência com os seres humanos normais, e, infelizmente, faz com que o filme decline seu interesse ideológico, subsumido a uma atualização oportunista do discurso intervencionista pró-capitalismo estatal. Mas, apesar de sua insistência, este mal discursivo ainda é menor do que a inteligência militante naturalmente associada à origem literária dos personagens.
No que tange à vivificação dos personagens, é lamentável que o costumeiramente ótimo James McAvoy ofereça uma configuração actancial tão pálida para o riquíssimo personagem que esteve sob sua responsabilidade, de maneira que o professor Xavier construído por ele não parece digno da majestade interpretativa adotada pelo calvo Patrick Stewart nos outros filmes da cinessérie. Michael Fassbender, por sua vez, está ótimo como o amargurado Eric Lehnsherr, dosando sua poliglotia minuciosa com sutis modificações expressivas que transmitem com esmero a complexidade dos sentimentos e formulações vingativas que explodem no interior de sua personalidade. Jennifer Lawrence e January Jones estão igualmente irrepreensíveis enquanto Raven e Emma Frost, personagens que se tornarão futuras aliadas do iracundo Magneto, e são bem coadjuvadas por Nicholas Hoult (Fera), Caleb Landry Jones (Banshee), Lucas Till (Havoc) e Zoë Kravitz (Angel). Mas uma menção adicional à participação de Edi Gathegi deve ser também destacada aqui, tamanha a relevância funcional do personagem Darwin, que, justamente por ser dotado da invejável capacidade de adaptar-se impressionantemente ao ambiente ao seu redor, calha de ser o primeiro mutante a ser morto no filme, reforçando com precisão os fundamentos separatistas de Magneto.
Enquanto filme arrasa-quarteirão, “X-Men: Primeira Classe” merece ser elogiado pela dosagem pretensamente equilibrada entre o despejo de efeitos visuais e cenas de ação (ambos extraordinariamente competentes e impressionantes) e arquétipos enredísticos que são fácil e propositalmente reinterpretados por minorias do público que se identificam com os anseios e tentativas de defesa que os personagens mutantes manifestam em relação às imposições normativas de uma classe social dominante. Por mais que o roteiro (escrito, entre outros, pelo próprio diretor, com base em argumento de Bryan Singer e Sheldon Turner) sabote involuntariamente algumas de suas próprias virtudes (vide o modo preguiçoso com que se preparam as revelações sobre a nova mutação que assolará o doutor Hank McCoy ou à descoberta de que Banshee pode utilizar seus gritos como um sonar improvisado) e que a direção de Matthew Vaughn, associada à trilha sonora incidentalmente ‘pop’ de Henry Jackman e à montagem bem-humorada de Eddie Hamilton e Lee Smith, dilua um tanto da circunspecção obrigatória ao contraste de práticas e ideais manifestos por Magneto e Professor X, este filme é ainda mui digno de ser recomendado a amantes austeros do Cinema, sem o perigo de que, ao elogiarem este filme, eles estejam compactuando com o decréscimo progressivo da originalidade nos entrechos aventurescos do cinema hollywoodiano contemporâneo. Afinal de contas, os personagens de Stan Lee são, por si só, muitíssimo interessantes e auto-suficientes em sua genialidade estrutural, conforme se pode perceber adicionalmente nas rápidas participações de Hugh Jackman e Rebecca Romijn-Stamos (respectivamente, Wolverine e Mística nos prévios exemplares da cinessérie), mui desvirtuada no primeiro caso, mas ricamente conduzida no segundo. Em síntese: o maior problema de “X-Men: Primeira Classe” é confundir-se involuntariamente com as interseções belicosas que abundam no enredo, mas, ao final, ele opta por um bem-fundamentado ponto de vista, deveras superior àquele aceito por Brett Ratner em “X-Men – O Confronto Final” (2006). E isto, com certeza, o redime enquanto produto cultural hodierno de massa!
Wesley Pereira de Castro.
Se, nos filmes anteriores, o foco do enredo era o auge da complexa oposição ideológica entre os mutantes Magneto e Professor Xavier, neste mais recente filme, a trama é focada nos primórdios do relacionamento entre os dois opositores, explicando como eles se conheceram e vieram a se tornar os ícones personalísticos das Histórias em Quadrinhos, hoje tão admirados por aqueles que lêem com precisão os subtextos políticos deste conflito entre humanos X mutantes anti-humanos X mutantes pró-humanos, que, como se sabe, mescla tanto os clamores reivindicativos dos movimentos identitários dos líderes negros norte-americanos quanto as indagações homossexuais. Nesse sentido, enquanto principal cena associada ao estilo vaughniano de dirigir, pode-se destacar o divertido momento em que os mutantes predominantemente adolescentes que o professor Xavier recruta são mostrados comemorando e comparando os seus poderes no que mais parece uma festa reservada no cômodo da CIA em que eles estavam confinados. Neste momento específico, aliás, Matthew Vaughn merece crédito positivo pela assunção dos valores fílmicos em que acredita, ainda que, nas demais oportunidades, esta assunção pareça concorrente à seriedade que o roteiro exige, em especial se comparado com os quase excelentes dois primeiros filmes anteriores.
Contando com uma seqüência inicial que acrescenta mais detalhes o impactante prólogo de “X-Men – O Filme” (2000, de Bryan Singer), em que as atrocidades dos campos de concentração nazistas contribuem para justificar o ódio que o judeu Eric Lehnsherr, o futuro Magneto, nutre pelos humanos preconceituosos, “X-Men: Primeira Classe” promete um cuidadoso registro das primeiras aparições públicas dos mutantes, registro este que se mantém valorativo no encontro xaroposo entre Charles Xavier, ainda criança, e aquela que se tornaria Mística anos depois. Infelizmente, porém, a má interpretação do pré-adolescente Bill Milner como o gritante Eric juvenil estraga uma seqüência importantíssima de manifestação odiosa, compensada pela firmeza interpretativa de Kevin Bacon, que está ótimo na pele do cruel Sebastian Shaw.
À medida que as tramas paralelas das sagas de Magneto e Professor Xavier são deslanchadas, a adoção de elementos do entrecho que fazem menção a eventos reais da Guerra Fria entre Estados Unidos da América e União Soviética, no início da década de 1960, dilui o impacto tramático, ao depositar sobressalente confiança no chamariz heróico dos agentes dos órgãos governamentais de defesa estadunidense, instaurando um triunfalismo nacionalista que se torna ainda mais incômodo (e quase contraditório) noutros momentos do filme, por mais competente que Rose Byrne esteja enquanto intérprete da destemida Moira MacTaggert.
O clímax belicoso que é pretendido na seqüência em que soldados soviéticos e norte-americanos disparam mísseis contra a ilha em que os mutantes lutavam entre si soa forçoso enquanto momento instaurador da divergência político-valorativa que marcará as trajetórias conflitantes de Professor Xavier e Magneto, no que tange à coexistência com os seres humanos normais, e, infelizmente, faz com que o filme decline seu interesse ideológico, subsumido a uma atualização oportunista do discurso intervencionista pró-capitalismo estatal. Mas, apesar de sua insistência, este mal discursivo ainda é menor do que a inteligência militante naturalmente associada à origem literária dos personagens.
No que tange à vivificação dos personagens, é lamentável que o costumeiramente ótimo James McAvoy ofereça uma configuração actancial tão pálida para o riquíssimo personagem que esteve sob sua responsabilidade, de maneira que o professor Xavier construído por ele não parece digno da majestade interpretativa adotada pelo calvo Patrick Stewart nos outros filmes da cinessérie. Michael Fassbender, por sua vez, está ótimo como o amargurado Eric Lehnsherr, dosando sua poliglotia minuciosa com sutis modificações expressivas que transmitem com esmero a complexidade dos sentimentos e formulações vingativas que explodem no interior de sua personalidade. Jennifer Lawrence e January Jones estão igualmente irrepreensíveis enquanto Raven e Emma Frost, personagens que se tornarão futuras aliadas do iracundo Magneto, e são bem coadjuvadas por Nicholas Hoult (Fera), Caleb Landry Jones (Banshee), Lucas Till (Havoc) e Zoë Kravitz (Angel). Mas uma menção adicional à participação de Edi Gathegi deve ser também destacada aqui, tamanha a relevância funcional do personagem Darwin, que, justamente por ser dotado da invejável capacidade de adaptar-se impressionantemente ao ambiente ao seu redor, calha de ser o primeiro mutante a ser morto no filme, reforçando com precisão os fundamentos separatistas de Magneto.
Enquanto filme arrasa-quarteirão, “X-Men: Primeira Classe” merece ser elogiado pela dosagem pretensamente equilibrada entre o despejo de efeitos visuais e cenas de ação (ambos extraordinariamente competentes e impressionantes) e arquétipos enredísticos que são fácil e propositalmente reinterpretados por minorias do público que se identificam com os anseios e tentativas de defesa que os personagens mutantes manifestam em relação às imposições normativas de uma classe social dominante. Por mais que o roteiro (escrito, entre outros, pelo próprio diretor, com base em argumento de Bryan Singer e Sheldon Turner) sabote involuntariamente algumas de suas próprias virtudes (vide o modo preguiçoso com que se preparam as revelações sobre a nova mutação que assolará o doutor Hank McCoy ou à descoberta de que Banshee pode utilizar seus gritos como um sonar improvisado) e que a direção de Matthew Vaughn, associada à trilha sonora incidentalmente ‘pop’ de Henry Jackman e à montagem bem-humorada de Eddie Hamilton e Lee Smith, dilua um tanto da circunspecção obrigatória ao contraste de práticas e ideais manifestos por Magneto e Professor X, este filme é ainda mui digno de ser recomendado a amantes austeros do Cinema, sem o perigo de que, ao elogiarem este filme, eles estejam compactuando com o decréscimo progressivo da originalidade nos entrechos aventurescos do cinema hollywoodiano contemporâneo. Afinal de contas, os personagens de Stan Lee são, por si só, muitíssimo interessantes e auto-suficientes em sua genialidade estrutural, conforme se pode perceber adicionalmente nas rápidas participações de Hugh Jackman e Rebecca Romijn-Stamos (respectivamente, Wolverine e Mística nos prévios exemplares da cinessérie), mui desvirtuada no primeiro caso, mas ricamente conduzida no segundo. Em síntese: o maior problema de “X-Men: Primeira Classe” é confundir-se involuntariamente com as interseções belicosas que abundam no enredo, mas, ao final, ele opta por um bem-fundamentado ponto de vista, deveras superior àquele aceito por Brett Ratner em “X-Men – O Confronto Final” (2006). E isto, com certeza, o redime enquanto produto cultural hodierno de massa!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 1 de maio de 2011
RIO (‘Rio’) EUA, 2011. Direção: Carlos Saldanha
A abertura do filme “Rio” é muitíssimo honesta acerca de que tipo de impressão sentimental o filme como um todo causará no espectador: um desfile de cores, boníssima música e um clima de festividade que é bruscamente interrompido e solapado pelas sub-necessidades humanas de angariar mais dinheiro do que necessita para satisfazer as suas necessidades básicas.
No plano intradiegético, a sanha monetifágica de alguns seres humanos vilanescos engendra o trauma anti-vôo que persegue o protagonista Blu por toda a sua vida, mas, no plano extradiegético, que diz respeito às interferências críticas sobre o filme, esta sanha monetifágica manifesta-se no modo como a suposta exortação à liberdade que é oferecida ao último espécime masculino vivo de arara-azul, voluntariamente domesticado, é perpassada por uma compleição oportunista a uma festividade pautadamente capitalista, em que os estereótipos carnavalescos associados à cidade de Rio de Janeiro são adotados como sendo positivos no que tange ao equilíbrio emocional e moral dos personagens.
Ou seja, a descrição de liberdade que a personagem Jewel (ou Jade, na versão dublada) oferece como salvação para o confinamento doméstico a que Blu acostumara-se na gelada cidade de Minnesota ampara-se num discurso chavonado sobre diversões coletivas, que teima em ignorar que nem todas as pessoas são obrigadas a se divertir da mesma forma, a gostar dos mesmos ritmos musicais, a imitar rigorosamente os seus convivas a fim de que sejam aceitas numa dada comunidade de semelhantes.
Após o final feliz e convincente deste filme, entretanto, há que se admitir que, mesmo com suas entrelinhas ideológicas dignas de atenção redobrada (vide a dubiedade defensiva dos argumentos com que a amargurada cacatua Nigel justifica a sua malevolência adquirida), a efusão que brota deste filme é bem-vinda e respeitosa aos instintos percussivos dos indivíduos, em especial, os que vivem em países tropicais.
Muito do êxito entretenedor deste filme tem a ver com a extraordinária utilização da trilha sonora de John Powell e com as ótimas composições de Carlinhos Brown, Mikael Mutti, Sergio Mendes e Siedah Garrett, que mesclam magnificamente bem a percussividade somática típica do samba carioca com a percussividade emotiva associada aos refrões caros a músicas-tema de filmes infantis.
Nesse sentido, a canção que é executada durante a ótima seqüência do desfile de escolas de samba permanece, por muito tempo após o término da sessão, ainda reverberando na mente do espectador, de tão contagiante e bem executada que é. No plano fotográfico, o filme também é muitíssimo merecedor de elogios, tanto por aproveitar com riqueza de detalhes o colorido natural dos animais que protagonizam o filme como pela reconstituição animada mui fidedigna de algumas das principais paisagens do panorama turístico da cidade que batiza o longa-metragem. Que os devidos créditos elogiosos sejam, então, redirecionados ao fotógrafo Renato Falcão!
Infelizmente, o sobejo de cópias dubladas nas salas em que o filme está sendo exibido – algo até compreensível, levando-se em consideração que nem sempre o público-alvo deste tipo de filme sequer sabe ler – não permite que seja avaliado o trabalho de interpretação dos astros hollywoodianos que emprestam suas vozes aos personagens (Jesse Eisenberg, Anne Hathaway, will.i.am, Jamie Foxx e Rodrigo Santoro, entre outros), mas a composição da maioria dos caracteres é muito boa. Não somente o personagem do ornitólogo Túlio emula com precisão os personagens abobalhados vividos por Cary Grant na era de ouro do cinema norte-americano como a personagem Linda é crível em suas boas intenções proto-familiares, enquanto que o protagonista Blu chama a atenção por sua bem dosada sinceridade conformista. Jewel/Jade, por sua vez, é delineada como um efetivo contraponto ao arquétipo masculino a quem foi destinada ao acasalamento, oscilando entre a obviedade sedutora de uma mocinha de trama aventuresca e a impavidez cara às mulheres individualistas e determinadas, enquanto que os amigos bonachões Nico e Pedro, o tucano Rafael e o cachorro babão Luiz são construídos com a superficialidade não necessariamente incômoda que este tipo de filme nos habituou a encontrar em personagens secundários que, por sua vez, são essenciais para o casal principal possa procriar tranquilamente no final. O menino de rua brasileiro que se afeiçoa ao casal protagonista, por outro lado, destaca-se negativamente por sua mecanicidade enquanto vilão redimido, ao mesmo tempo em que, na seqüência da corrida de motocicleta, inocula um perigoso adendo à banalização criminal que pretendia ser criticada, visto que um ato de escambo furtivo contribui acriticamente para que Linda e o Dr. Túlio solucionem um esquema ilegal de contrabando de pássaros silvestres perpetrado pelos antigos sub-empregadores do garoto. Talvez seja um detalhe menor, mas deveria ser levado bem mais em consideração pelos eventuais detratores do filme do que as óbvias (e desnecessárias) reprimendas às absolutamente verossímeis mulheres de biquíni que passeiam pela tela.
Num saldo geral, portanto, “Rio” é diversão garantida para crianças e adultos, sendo propagandisticamente viável para quem ainda não conhece as belezas naturais do Rio de Janeiro e/ou para aqueles que ainda possuem uma visão idealizada do carnaval que anima e torna esta cidade famosa. Se, no plano tramático-narrativo, pode-se reclamar que o roteiro escrito a partir de um argumento do próprio diretor Carlos Saldanha seja preguiçoso em seus clichês maniqueístas (a batalha entre pássaros funkeiros e micos ladrões é desagradabilíssima neste sentido!), no plano somático-emotivo, “Rio” é encantador, por mais que o abuso de canções ‘pop’ minuciosamente programadas para serem vendidas durante os créditos finais ameace estragar a leveza da mistura de percussividades que os responsáveis pela trilha sonora original levam a cabo. Seja como for, Carlos Saldanha está de parabéns pela bela homenagem fílmico-publicitária à cidade em que nasceu!
Wesley Pereira de Castro.
No plano intradiegético, a sanha monetifágica de alguns seres humanos vilanescos engendra o trauma anti-vôo que persegue o protagonista Blu por toda a sua vida, mas, no plano extradiegético, que diz respeito às interferências críticas sobre o filme, esta sanha monetifágica manifesta-se no modo como a suposta exortação à liberdade que é oferecida ao último espécime masculino vivo de arara-azul, voluntariamente domesticado, é perpassada por uma compleição oportunista a uma festividade pautadamente capitalista, em que os estereótipos carnavalescos associados à cidade de Rio de Janeiro são adotados como sendo positivos no que tange ao equilíbrio emocional e moral dos personagens.
Ou seja, a descrição de liberdade que a personagem Jewel (ou Jade, na versão dublada) oferece como salvação para o confinamento doméstico a que Blu acostumara-se na gelada cidade de Minnesota ampara-se num discurso chavonado sobre diversões coletivas, que teima em ignorar que nem todas as pessoas são obrigadas a se divertir da mesma forma, a gostar dos mesmos ritmos musicais, a imitar rigorosamente os seus convivas a fim de que sejam aceitas numa dada comunidade de semelhantes.
Após o final feliz e convincente deste filme, entretanto, há que se admitir que, mesmo com suas entrelinhas ideológicas dignas de atenção redobrada (vide a dubiedade defensiva dos argumentos com que a amargurada cacatua Nigel justifica a sua malevolência adquirida), a efusão que brota deste filme é bem-vinda e respeitosa aos instintos percussivos dos indivíduos, em especial, os que vivem em países tropicais.
Muito do êxito entretenedor deste filme tem a ver com a extraordinária utilização da trilha sonora de John Powell e com as ótimas composições de Carlinhos Brown, Mikael Mutti, Sergio Mendes e Siedah Garrett, que mesclam magnificamente bem a percussividade somática típica do samba carioca com a percussividade emotiva associada aos refrões caros a músicas-tema de filmes infantis.
Nesse sentido, a canção que é executada durante a ótima seqüência do desfile de escolas de samba permanece, por muito tempo após o término da sessão, ainda reverberando na mente do espectador, de tão contagiante e bem executada que é. No plano fotográfico, o filme também é muitíssimo merecedor de elogios, tanto por aproveitar com riqueza de detalhes o colorido natural dos animais que protagonizam o filme como pela reconstituição animada mui fidedigna de algumas das principais paisagens do panorama turístico da cidade que batiza o longa-metragem. Que os devidos créditos elogiosos sejam, então, redirecionados ao fotógrafo Renato Falcão!
Infelizmente, o sobejo de cópias dubladas nas salas em que o filme está sendo exibido – algo até compreensível, levando-se em consideração que nem sempre o público-alvo deste tipo de filme sequer sabe ler – não permite que seja avaliado o trabalho de interpretação dos astros hollywoodianos que emprestam suas vozes aos personagens (Jesse Eisenberg, Anne Hathaway, will.i.am, Jamie Foxx e Rodrigo Santoro, entre outros), mas a composição da maioria dos caracteres é muito boa. Não somente o personagem do ornitólogo Túlio emula com precisão os personagens abobalhados vividos por Cary Grant na era de ouro do cinema norte-americano como a personagem Linda é crível em suas boas intenções proto-familiares, enquanto que o protagonista Blu chama a atenção por sua bem dosada sinceridade conformista. Jewel/Jade, por sua vez, é delineada como um efetivo contraponto ao arquétipo masculino a quem foi destinada ao acasalamento, oscilando entre a obviedade sedutora de uma mocinha de trama aventuresca e a impavidez cara às mulheres individualistas e determinadas, enquanto que os amigos bonachões Nico e Pedro, o tucano Rafael e o cachorro babão Luiz são construídos com a superficialidade não necessariamente incômoda que este tipo de filme nos habituou a encontrar em personagens secundários que, por sua vez, são essenciais para o casal principal possa procriar tranquilamente no final. O menino de rua brasileiro que se afeiçoa ao casal protagonista, por outro lado, destaca-se negativamente por sua mecanicidade enquanto vilão redimido, ao mesmo tempo em que, na seqüência da corrida de motocicleta, inocula um perigoso adendo à banalização criminal que pretendia ser criticada, visto que um ato de escambo furtivo contribui acriticamente para que Linda e o Dr. Túlio solucionem um esquema ilegal de contrabando de pássaros silvestres perpetrado pelos antigos sub-empregadores do garoto. Talvez seja um detalhe menor, mas deveria ser levado bem mais em consideração pelos eventuais detratores do filme do que as óbvias (e desnecessárias) reprimendas às absolutamente verossímeis mulheres de biquíni que passeiam pela tela.
Num saldo geral, portanto, “Rio” é diversão garantida para crianças e adultos, sendo propagandisticamente viável para quem ainda não conhece as belezas naturais do Rio de Janeiro e/ou para aqueles que ainda possuem uma visão idealizada do carnaval que anima e torna esta cidade famosa. Se, no plano tramático-narrativo, pode-se reclamar que o roteiro escrito a partir de um argumento do próprio diretor Carlos Saldanha seja preguiçoso em seus clichês maniqueístas (a batalha entre pássaros funkeiros e micos ladrões é desagradabilíssima neste sentido!), no plano somático-emotivo, “Rio” é encantador, por mais que o abuso de canções ‘pop’ minuciosamente programadas para serem vendidas durante os créditos finais ameace estragar a leveza da mistura de percussividades que os responsáveis pela trilha sonora original levam a cabo. Seja como for, Carlos Saldanha está de parabéns pela bela homenagem fílmico-publicitária à cidade em que nasceu!
Wesley Pereira de Castro.
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sábado, 5 de março de 2011
BRUNA SURFISTINHA (Brasil, 2011). Direção: Marcus Baldini
Em 2005, quando publicou o depoimento transformado em livro autobiográfico “O Doce Veneno do Escorpião – O Diário de uma Garota de Programa”, a prostituta Raquel Pacheco já tinha consciência de que sua época de fama estava acabando e confessava que seu maior desejo era igual ao de qualquer pessoa: casar, ter filhos e passar no vestibular para Psicologia, não obstante se considerar muito mais tarimbada para esta profissão pretendida, em razão de sua vivência pessoal, do que muitos terapeutas em atividade remunerada.
Apesar de, em muitos aspectos, este livro de memórias ser execrável, ele ao menos se valia da autenticidade pornográfica para fisgar o leitor e, como tal, merece (pouquíssimo) crédito positivo pela atratividade genérica. Como era de esperar, não demoraria bastante para que a trajetória desta reles figura midiática fosse transportada para os cinemas e, sendo realizada por um diretor estreante em longas-metragens, mas com consagrado currículo publicitário, tal cinebiografia corresponderia ao que de mais nojoso e conservador poderia ser realizado em matéria de pseudo-higienização de um depoimento chulo. Porém, se “O Doce Veneno do Escorpião”, em mais de um momento, consegue realmente excitar os seus leitores e, se não os comove dramaticamente, é porque a sua autora assim não o quis, “Bruna Surfistinha”, a transmutação fílmica do livro, segue o caminho completamente inverso: é demasiadamente falho no que tange à sensualidade e tenta fazer com que os espectadores nutram simpatia pela personagem. Naufraga em ambos os sentidos, portanto, e, se é aqui permitida uma comparação com o universo da protagonista, “Bruna Surfistinha” equivale a uma verdadeira broxada cinematográfica!
Não obstante ser inegável o esforço de Deborah Secco no papel principal, infelizmente sua interpretação é apática e não justifica todo o sucesso que a personagem gozou enquanto garota de programa desejada por homens e mulheres de todo o Brasil. O restante do elenco, todo ele subsumido à superestimada imponência da personagem principal, é ainda mais apático do que ela: Fabíula Nascimento é relegada a uma coadjuvação cômica com breves lampejos de evocação à dignidade feminina; Cristina Lago é desperdiçada no papel que mais poderia render identificação emocional com a platéia; Drica Moraes e Guta Ruiz estão caricatas, apesar de alguns momentos em que introjetam personalismo passional em seus papéis; Cássio Gabus Mendes está tão desenxabido quanto sempre foi, malgrado esta característica ser ideal para o delineamento verossímil de seu personagem; e os atores que interpretam a família (adotiva) de Raquel estão péssimos nos poucos momentos em que aparecem em cena. Se algum membro do elenco merece ser destacado aqui por seu apelo qualitativo/erotógeno, este atende pelo nome de Juliano Cazarré, que, infelizmente, tem poucas oportunidades para demonstrar seu talento iminente na pele do cliente por quem a prostituta–título parece atraída por algum tempo.
Se o elenco do filme está evidentemente subaproveitado, mas ao menos se esforça, o mesmo não pode ser dito acerca da trilha sonora de Rica Amabis, Gui Amabis e Tejo e à equivocada seleção de canções preponderantemente anglofílicas, em que nem mesmo o hino melancólico “Fake Plastic Trees”, do Radiohead, funciona enquanto apelo emocional: a cena derradeira que é musicada por esta canção é absolutamente chinfrim, previsível, mecânica e desprovida do orgulho que a personagem principal tenta imbuir através de sua narração indolente, em que ela reafirma a sua disposição de “não depender de ninguém”, motivo pelo qual ela alega ter saído de casa, quando, para quem leu o livro, os motivos seriam bem outros, muito mais drásticos e justificativos para se entender o porquê de, como explica os créditos finais, Raquel Pacheco nunca mais ter falado com qualquer membro de sua família.
Esta última omissão significativa de um detalhe crucial na biografia da personagem principal, aliás, é apenas mais um dentre os diversos aspectos omissivos do auto-anunciado roteiro de José de Carvalho, Homero Olivetto e Antônia Pellegrino, que adota aqui o ridículo estratagema conservador da sensacionalização de atitudes que se sabem condenadas pela platéia em detrimento de situações que poderiam realmente humanizar a personagem, já fútil e psicologicamente insignificante em sua personificação real. Neste sentido, é lamentável que se tenha concedido tanta atenção aos momentos em que a protagonista cospe esperma, é currada por homens feios, barrigudos e suados ou quando se gaba de seu apelo erótico crescente, ao passo que a reconstituição de momentos pungentes como aqueles em que a personagem transa com antigos colegas de colégio ou com menores de idade uniformizados e enfileirados poderia dotar o filme de maior vigor emotivo.
Conclui-se, portanto, que “Bruna Surfistinha” será deveras lucrativo em suas exibições cinematográficas e que, sim, conforme temem os defensores da moral puritana, ele poderá realmente estimular meninas estabanadas como a protagonista a serem garotas de programa. E o pior: dentre todos os envolvidos nesta empreitada de depravação, a ex-prostituta Raquel Pacheco é a que menos tem culpa!
Wesley Pereira de Castro.
Apesar de, em muitos aspectos, este livro de memórias ser execrável, ele ao menos se valia da autenticidade pornográfica para fisgar o leitor e, como tal, merece (pouquíssimo) crédito positivo pela atratividade genérica. Como era de esperar, não demoraria bastante para que a trajetória desta reles figura midiática fosse transportada para os cinemas e, sendo realizada por um diretor estreante em longas-metragens, mas com consagrado currículo publicitário, tal cinebiografia corresponderia ao que de mais nojoso e conservador poderia ser realizado em matéria de pseudo-higienização de um depoimento chulo. Porém, se “O Doce Veneno do Escorpião”, em mais de um momento, consegue realmente excitar os seus leitores e, se não os comove dramaticamente, é porque a sua autora assim não o quis, “Bruna Surfistinha”, a transmutação fílmica do livro, segue o caminho completamente inverso: é demasiadamente falho no que tange à sensualidade e tenta fazer com que os espectadores nutram simpatia pela personagem. Naufraga em ambos os sentidos, portanto, e, se é aqui permitida uma comparação com o universo da protagonista, “Bruna Surfistinha” equivale a uma verdadeira broxada cinematográfica!
Não obstante ser inegável o esforço de Deborah Secco no papel principal, infelizmente sua interpretação é apática e não justifica todo o sucesso que a personagem gozou enquanto garota de programa desejada por homens e mulheres de todo o Brasil. O restante do elenco, todo ele subsumido à superestimada imponência da personagem principal, é ainda mais apático do que ela: Fabíula Nascimento é relegada a uma coadjuvação cômica com breves lampejos de evocação à dignidade feminina; Cristina Lago é desperdiçada no papel que mais poderia render identificação emocional com a platéia; Drica Moraes e Guta Ruiz estão caricatas, apesar de alguns momentos em que introjetam personalismo passional em seus papéis; Cássio Gabus Mendes está tão desenxabido quanto sempre foi, malgrado esta característica ser ideal para o delineamento verossímil de seu personagem; e os atores que interpretam a família (adotiva) de Raquel estão péssimos nos poucos momentos em que aparecem em cena. Se algum membro do elenco merece ser destacado aqui por seu apelo qualitativo/erotógeno, este atende pelo nome de Juliano Cazarré, que, infelizmente, tem poucas oportunidades para demonstrar seu talento iminente na pele do cliente por quem a prostituta–título parece atraída por algum tempo.
Se o elenco do filme está evidentemente subaproveitado, mas ao menos se esforça, o mesmo não pode ser dito acerca da trilha sonora de Rica Amabis, Gui Amabis e Tejo e à equivocada seleção de canções preponderantemente anglofílicas, em que nem mesmo o hino melancólico “Fake Plastic Trees”, do Radiohead, funciona enquanto apelo emocional: a cena derradeira que é musicada por esta canção é absolutamente chinfrim, previsível, mecânica e desprovida do orgulho que a personagem principal tenta imbuir através de sua narração indolente, em que ela reafirma a sua disposição de “não depender de ninguém”, motivo pelo qual ela alega ter saído de casa, quando, para quem leu o livro, os motivos seriam bem outros, muito mais drásticos e justificativos para se entender o porquê de, como explica os créditos finais, Raquel Pacheco nunca mais ter falado com qualquer membro de sua família.
Esta última omissão significativa de um detalhe crucial na biografia da personagem principal, aliás, é apenas mais um dentre os diversos aspectos omissivos do auto-anunciado roteiro de José de Carvalho, Homero Olivetto e Antônia Pellegrino, que adota aqui o ridículo estratagema conservador da sensacionalização de atitudes que se sabem condenadas pela platéia em detrimento de situações que poderiam realmente humanizar a personagem, já fútil e psicologicamente insignificante em sua personificação real. Neste sentido, é lamentável que se tenha concedido tanta atenção aos momentos em que a protagonista cospe esperma, é currada por homens feios, barrigudos e suados ou quando se gaba de seu apelo erótico crescente, ao passo que a reconstituição de momentos pungentes como aqueles em que a personagem transa com antigos colegas de colégio ou com menores de idade uniformizados e enfileirados poderia dotar o filme de maior vigor emotivo.
Conclui-se, portanto, que “Bruna Surfistinha” será deveras lucrativo em suas exibições cinematográficas e que, sim, conforme temem os defensores da moral puritana, ele poderá realmente estimular meninas estabanadas como a protagonista a serem garotas de programa. E o pior: dentre todos os envolvidos nesta empreitada de depravação, a ex-prostituta Raquel Pacheco é a que menos tem culpa!
Wesley Pereira de Castro.
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