Tendo uma carreira consolidada como crítico de cinema, a primeva incursão de Kleber Mendonça Filho na direção, através do curta-metragem “A Menina do Algodão” (2002, co-dirigido por Daniel Bandeira), deixava evidente o seu interesse observacional pelos elementos urbanos da cidade populosa em que vive, redimensionado o chamariz temático associado à lenda citadina que intitula o filme e engendrando uma obra curta porém contundente que (se) interroga muito mais do que entretém.
Os curtas-metragens seguintes, cada vez mais inventivos e fundamentados, impressionavam não apenas pela escolha de seus temas mas principalmente por causa do apurado rigor técnico com que eram conduzidos: em “Eletrodoméstica” (2005), por exemplo, uma cena antológica em que uma dona-de-casa masturba-se com o auxílio de uma máquina de lavar possui uma extensão aprimorada em “O Som ao Redor”, sendo internamente prenunciada, tanto quanto no filme anterior, por utilizações inusuais de aparelhos eletrônicos, como servir-se de um aspirador de pó para impelir a fumaça de um cigarro de maconha ou improvisar alguns passos rápidos no que parece uma esteira ergométrica antes de atender à porta.
No divertidamente genial “Recife Frio” (2009), a crítica social bem-humorada, porém talhante, que leva o diretor a registrar, em tom falsamente documental, uma inversão oportunista dos ambientes domésticos das classes aquisitivamente mais elevadas (a apropriação do quarto de empregada por um adolescente, depois que se constata que aquele era o cômodo mais quente da residência, dada a inusitada inversão climática que tematiza o filme) antecipa a maestria sociológica que o diretor escancara em seu longa-metragem mais recente, em que cada cena é milimetricamente programada para instaurar uma tensão permanente. Ao contrário do que costuma acontecer noutros filmes, esta tensão não redunda num clímax isolado, ainda que se possa constatar uma causalidade estrutural na última seqüência, que, se parece teleológica – e, de fato, o é – é porque se atém percucientemente às conseqüências inevitáveis do fenômeno que Karl Marx eternizou literariamente como “acumulação primitiva de capital”, num capítulo célebre de um dos mais definitivos frutos de seu labor teorético.
Ou seja, para além de ser um rigoroso estudo da luta de classes, atravessado pelo espectro da violência urbana numa das cidades mais violentas do Brasil, Kleber Mendonça Filho não abdica dos mais inteligentes recursos cinematográficos para compartilhar com o espectador as suas impressões sociais, concebendo uma obra-prima em que cada seqüência é prenhe de sentido em si mesma, podendo, numa elucubração hipotética, ser remontada em qualquer ordem cronológica e causar o mesmo impacto.O que mais assombra no entrecho deste filme é justamente a potente hipertrofia do cotidiano, a gênese dos sons que todos ouvem, mas, por motivos diversos, fingem ou preferem não prestar atenção.
A menção nos créditos finais do diretor e roteirista Kleber Mendonça Filho exercendo também as funções de montador e desenhista de som não é causal: além de o título do filme ser magnificamente perfeito em sua amplitude perscrutadora, o domínio integral da ambientação cênica alinha o cineasta às teses de Michel Foucault acerca do panóptico benthaminiano: todos os ângulos de cada um dos cenários reais do filme são multiplamente observados tanto por espectadores quanto por vários personagens, num cruzamento de olhares que, aos poucos, tece a minuciosa rede de vínculos entre eles. A insistência oportuna do diretor em enquadrar as seqüências a partir de planos comumente dispostos atrás de grades reforça a sua inteligentíssima astúcia, chegando ao paroxismo em mais um instante aparentemente trivial em que um dos habitantes da rua em que se passa(m) a(s) trama(s) aparece carregando um gato numa gaiola, oferecendo-nos denotativamente a imagem de um enjaulamento dentro de um enquadramento no interior de um recorte social, para ficar apenas numa tríplice percepção do efeito pretendido pelo diretor.
Aliás, a recorrência ao nome de Michel Foucault neste parágrafo não é nada gratuita, visto que este teórico parece ter sido a inspiração-motriz do cineasta, visto que cada diálogo e cada imagem de seu excelente filme expõem a legitimação classista da “microfísica do poder” que o autor francês tão bem identificou em suas obras. A extrapolação da vigilância, ainda mais evidente que no já citado “Eletrodoméstica”, aparece sob as mais diferentes formas: da vizinha que utiliza um binóculo para conferir o estado de saúde de um cão que entorpecera com um sonífero ao porteiro ameaçado de demissão (justamente por ter sido filmado dormindo) que espiona um casal se beijando no elevador através do circuito interno das câmeras do edifício, passando pelos instantes concentrados nos vigilantes urbanos que oferecem seus serviços aos moradores recifenses. E, escancarando ainda mais a translação foucaultiana, até mesmo a instauração da punição que acompanha a fórmula de dominação social contida em “Vigiar e Punir” é aplicada na seqüência derradeira do filme, numa exalação vingativa que enviesa os atributos de controle diagnosticados no livro.
As três partes que compõem “O Som ao Redor” [“Cães de Guarda”, “Guardas Noturnos” e “Guarda-Costas”] também estão rigorosamente coadunadas ao ‘corpus’ foucaultiano anteriormente mencionado, ainda que o filme não fique cativo desta base teórica excelsa: por ser sobretudo um crítico de cinema [aliás, um crítico autocrítico, conforme deixou evidente em seu ótimo documentário em longa-metragem intitulado apropriadamente “Crítico” (2008)], Kleber Mendonça Filho proporciona momentos egrégios de cinefilia, sendo os mesmos transcendentes à mera nostalgia, mas carregados de denúncia social.
A onipresença de televisões ligadas nos apartamentos focalizados pela soberba direção fotográfica de Pedro Sotero e Fabrício Tadeu [numa cena genial, uma criança assiste ao curta-metragem animado, mas com fortíssima dosagem erótica, “Yansan” (2006, de Carlos Eduardo Nogueira)], a assimilação tramática das declarações de amor pintadas no asfalto (após ler uma delas, a personagem de Irma Brown rompe o relacionamento ainda recente com seu namorado) e a surpreendente seqüência em que um casal passeia por um cinema rural abandonado e, na banda sonora, ouve-se trechos de um filme antigo patenteiam, entretanto, que este posicionamento cinefílico do diretor não envereda por uma referencialidade ostensiva – como faz um dos cineasta foucaultianos mais egrégios, o norte-americano Brian De Palma – mas pela criticidade perene, obrigando o espectador a se posicionar eticamente diante do que vê, tomando partido, confundindo-se com os personagens, legitimando atitudes que parecem banais (como aceitar um aparelho de som automobilístico roubado muito melhor do que aquele que fora frutado) e, assim, complementando o ciclo capitalista de poderio e violência desmascarado no extraordinário roteiro, em que cada gesto humano é provido de uma atitude conseqüencial em relação ao próximo, seja estapear a irmã quando esta adquire um aparelho televisivo com mais polegadas do que aquele que foi comprado recentemente, arranhar a parte traseira de um veículo quando a sua proprietária mostra-se arrogante e esnobe, telefonar para um bandido familiar e ameaçá-lo de morte ou financiar o tráfico de drogas sob o disfarce conveniente da entrega de água mineral. No plano técnico, isto é exponenciado de forma insigne num jogo de enquadramentos que focaliza as coberturas de ricos apartamentos, as favelas circunvizinhas e, por fim, uma porca metálica em primeiríssimo plano que será manuseada circunstancialmente por um personagem.
Em meio ao sobejo de elogios técnicos a este filme discursivamente grandiloqüente, o trabalho do elenco deve ser destacado: por mais que se possa detectar um decréscimo de segurança na condução dos atores, quase todos primorosos em sua comunicação do sotaque tipicamente pernambucano, Irandhir Santos (impecável como Clodoaldo, um másculo vigilante noturno), Waldemar José Solha (dúbia e perigosamente simpático como Francisco, um patriarca proprietário de diversas residências), Yuri Holanda (irremediavelmente sedutor como Dinho, um delinqüente juvenil endinheirado) e Gustavo Jahn (cativante e crível como João, uma espécie de agente imobiliário improvisado e apaixonado) destacam-se por causa do modo como conduzem firmemente as seqüências que protagonizam, por mais corriqueiras que sejam ou pareçam, como, por exemplo, no instante gratuita e propositalmente suspeitoso em que um velho resolve se banhar, em plena madrugada, numa praia onde há uma imensa placa advertente sobre o perigo de ataque de tubarões. Maeve Jinkings (Bia) e as crianças Clara Pinheiro de Oliveira (Fernanda) e Felipe Bandeira (Nelson) também estão ótimos em sua transmissão da artificialidade ensaiada que rege os comportamentos diuturnos das famílias ricas, que vão de inusitadas aulas domésticas do idioma chinês a um maravilhoso momento de carinho filial em que ambos os meninos massageiam a sua mãe cansada, depois que esta discute agressivamente com a empregada que queimou o aparelho importado de que se utilizava para calar um cachorro que insistia em latir durante toda a madrugada.
Por falar em empregada, a onipresença percebida mas velada destas profissionais ao longo do filme também é aguçada em seu caráter denuncista, seja em relação à mocinha (Clébia Souza) que se encontra sexualmente com o vigilante Clodoaldo , seja em relação à substituta materna de João (Mauricéia Conceição) que leva seus filhos para divertirem-se, descansarem e, por extensão, trabalharem enquanto ela exerce as suas tarefas diárias, estando estas funcionárias comumente maltratadas por seus patrões em evidência desde uma inspirada tomada inicial, em que a focalização de crianças que brincam num ‘playground’ é contrabalançada pela visão de babás entediadas e alinhadas numa grade. Além disso, o ambicioso e bem-sucedido (no melhor sentido de ambos os termos, o intelectual) projeto cinematográfico de Kleber Mendonça Filho, permite que personagens secundários brilhem em momentos aparentemente casuais [vide o diálogo sobre a perda do olho de um dos vigilantes (Nivaldo Nascimento) e sua impávida comparação ao cangaceiro Lampião, a cena do argentino que se perde quando sai para comprar cerveja durante uma festa ou o momento em que duas meninas recitam a integralidade do texto de uma peça audiovisual enquanto refrescam-se numa anacrônica cerimônia de aniversário de uma garota de 13 anos], consagra o músico DJ Dolores como um excelente compositor de trilhas sonoras incidentais, e torna dotado de significados cada plano posterior ao título do filme, com destaque para a idílica foto em preto-e-branco de uma família camponesa que é mostrada sem explicação no início, mas que, ao final, se revela categórica para o entendimento dos motivos pessoais que justificaram os tiros desferidos contra Francisco, cujo som foi coincidentemente abafado pelo som de bombas juninas que uma família de classe média acende.
As aparições quase sobrenaturais de um adolescente negro que escala árvores e invade casas, as impressionantes e assustadores seqüências oníricas e a breve porém angustiante visão de uma cachoeira que, de repente, parece se tornar uma cascata de sangue demonstram que, por mais que o (roteiro do) filme seja auto-evidente em suas explicações sociopolíticas, “O Som ao Redor” contribui para ampliar a percepção sensorial do espectador, que, aqui, é agraciado com as possibilidades mais semioticamente refinadas de engrandecimento cultural que uma configuração fílmica brasileira contemporânea pode legar.
Wesley Pereira de Castro.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
terça-feira, 22 de janeiro de 2013
A VIAGEM ('Cloud Atlas') EUA/Alemanha/Hong Kong/Cingapura, 2012. Direção: Lana Wachowski, Tom Tykwer & Andy Washowski.
A conjunção directiva entre o estiloso Tom Tykwer e os efusivos Andy & Lana Wachowski (esta última recém-convertida em mulher após uma mudança de sexo, tendo assinado como Larry Wachowski até então) era aguardada com ansiedade: tanto porque o livro no qual o filme se baseia (“Cloud Atlas”, de David Mitchell) era considerado muito difícil de ser filmado quanto porque se demonstrava bastante pitoresco um projeto que conjugasse as tendências merencórias do cineasta alemão, em sua sucessiva ode à contingência, e os determinismos e/ou simplificações libertárias que atravessam a pretensiosa (e comercialmente bem-sucedida) obra dos irmãos Wachowski.
Não obstante o roteiro ser bastante coerente em sua propensa interligação minuciosa dos personagens através das seis estórias contadas, a realização como um todo apresenta alguns problemas de coesão, vinculados ao fato de os segmentos terem sido realizados por diretores diferentes [os irmãos Wachowski ficaram com os episódios desenrolados em 1849, 2144 e 2346, enquanto Tom Tykwer se responsabilizou pelas tramas desenvolvidas em 1936, 1973 e 2012]. Assim sendo, ao se analisar integralmente o filme, percebe-se que ele é atravessado por uma irregularidade constitutiva, mas, verificando-se isoladamente os méritos de cada segmento, constata-se que os cineastas norte-americanos foram muito mais exitosos que o realizador teutônico em seus intentos.
Malgrado ter dirigido a trama mais bem-acabada do filme (a do músico homossexual que se suicida, inclusive responsável pelo contexto que justifica o seu título), e o episódio com a melhor reconstituição estilística de época (aquele passado na década de 1970), Tom Tykwer teve o seu desempenho diretorial prejudicado pela composição estereotipada e desagradavelmente cômica do personagem de Jim Broadbent no episódio contemporâneo, absolutamente forçado em seu tom aventuresco.
A interpretação de Ben Whishaw, alguns paroxismos climáticos da trilha sonora (composta por Reinhold Heil, Johnny Klimek e pelo próprio co-diretor) e a sobriedade da personificação de Halle Berry destacam-se nos episódios destacados, ainda que os momentos mais ridículos do filme também estejam contidos neles: o momento em que um jovem britânico que acabara de perder a virgindade cobre a sua genitália com uma gata quando é flagrado pelos pais iracundos de sua namorada; os conselhos detetivescos conferidos por uma criança (Brody Nicholas Lee) a uma experiente e destemida repórter investigativa; e a piada interna antecipada do personagem de Tom Hanks, que, vivendo um escritor medíocre e marginal (no mau sentido do termo), vocifera que “um crítico é alguém que consome uma obra de arte de maneira afobada e sem sabedoria”, sendo posteriormente responsável pela morte de um deles. Esta foi uma maneira bastante grotesca de se defender, aprioristicamente, dos ataques setoriais que o filme – em sua metade tykweriana – poderia receber...
Em relação aos segmentos dirigidos por Andy & Lana Wachowski, por mais que se possa reclamar que eles reciclaram muitos elementos de seu próprio clássico recente “Matrix” (1999) e misturaram referências visuais oportunas a “Blade Runner, o Caçador de Andróides” (1982, de Ridley Scott), para ficar apenas num exemplo paradigmático, as tramas que eles conduzem são interessantes, com exceção do trecho primitivo/pós-futurista protagonizado por Tom Hanks e Halle Berry, que engendram uma história de amor inter-racial ou interespecista que serve de prólogo e epílogo narrativo-discursivos ao filme. Afinal de contas, é justamente neste segmento que encontramos um dos aspectos mais positivamente problemáticos do roteiro, que é a assunção da crença parateológica como constituição ideologizada e sua concomitante necessidade de preservação através de um avantesma demoníaco visto apenas pelo pastor rabugento que se apaixona pela alienígena nômade.
As outras duas tramas que eles dirigem são excessivamente simplificadas em seus elogios abolicionistas, mas bem-geridas mesmo assim: a estória passada em 1849 beneficia-se da ótima protagonização de Jim Sturgess (também ótimo como o sul-coreano subversor Chang Hae-Joo), da eficiente coadjuvação de Keith David (muito competente em todas as suas aparições, aliás) e da boa reconstituição de época, ao passo que a trama de 2144 é agraciada por excelentes efeitos especiais, pelo carisma de James D’Arcy como o interrogador arquivista e por elementos sinópticos que, num cotejo com a trama de “No Mundo de 2020” (1973, de Richard Fleischer, ainda não visto, mas cujo desfecho é desvendado chistosamente no episódio contemporâneo dirigido por Tom Tykwer), são beneficiados pelo estupor reivindicativo.
Ou seja, não apenas os clamores por subjetividade defendidos pela personagem maquinal de Doona Bae são persuasivos como estas três tramas são as que melhor se interligam entre si e as que melhor se coadunam com o filme inteiro, em sua costura encomiástica do amor enquanto força revolucionária que modifica e redime os destinos dos indivíduos ao longo das eras.
Numa abordagem generalizante, todas as personificações de Hugo Weaving merecem elogios demorados, o trabalho de maquiagem para algumas das vivificações de Susan Sarandon e Hugh Grant é primoroso, a direção fotográfica de Frank Griebe e John Toll é excelente, a menção comparativa ao jogo de gato e rato contido no clássico “Trama Diabólica/Jogo Mortal” (1972, de Joseph L. Mankiewicz) não é gratuita e as boas intenções enredísticas são convincentes.
Encontrando um saudável ponto intermediário entre os estilos dos diretores, “A Viagem” consegue servir-se tanto da abordagem analítica sobre as influências do acaso contida em “Corra, Lola, Corra” (1998) e das perseguições classudas que caracterizam “Trama Internacional” (2009), ambos de Tom Tykwer, quanto a pujança policialesca de “Ligadas Pelo Desejo” (1996) e o frescor infantil-juvenil de “Speed Racer” (2008), dirigidos por Andy & Lana (quando ainda se chamava Larry) Wachowski.
Vale lembrar que os 172 minutos de projeção deste filme transcorrem muito agradavelmente, no que tange ao seu ritmo de execução, o que demonstra que, para além de um ou outro atropelo composicional, das concessões piadistas exacerbadas ao público e da languidez que sobeja no roteiro, “A Viagem” merece ser laudatoriamente enxergado como um filme que agrega audaciosamente a tendência hollywoodiana ao espetáculo e sua legítima subsunção a gêneros consagradamente cinematográficos. Um filme que cumpre muito bem o que promete, portanto!
Wesley Pereira de Castro.
Não obstante o roteiro ser bastante coerente em sua propensa interligação minuciosa dos personagens através das seis estórias contadas, a realização como um todo apresenta alguns problemas de coesão, vinculados ao fato de os segmentos terem sido realizados por diretores diferentes [os irmãos Wachowski ficaram com os episódios desenrolados em 1849, 2144 e 2346, enquanto Tom Tykwer se responsabilizou pelas tramas desenvolvidas em 1936, 1973 e 2012]. Assim sendo, ao se analisar integralmente o filme, percebe-se que ele é atravessado por uma irregularidade constitutiva, mas, verificando-se isoladamente os méritos de cada segmento, constata-se que os cineastas norte-americanos foram muito mais exitosos que o realizador teutônico em seus intentos.
Malgrado ter dirigido a trama mais bem-acabada do filme (a do músico homossexual que se suicida, inclusive responsável pelo contexto que justifica o seu título), e o episódio com a melhor reconstituição estilística de época (aquele passado na década de 1970), Tom Tykwer teve o seu desempenho diretorial prejudicado pela composição estereotipada e desagradavelmente cômica do personagem de Jim Broadbent no episódio contemporâneo, absolutamente forçado em seu tom aventuresco.
A interpretação de Ben Whishaw, alguns paroxismos climáticos da trilha sonora (composta por Reinhold Heil, Johnny Klimek e pelo próprio co-diretor) e a sobriedade da personificação de Halle Berry destacam-se nos episódios destacados, ainda que os momentos mais ridículos do filme também estejam contidos neles: o momento em que um jovem britânico que acabara de perder a virgindade cobre a sua genitália com uma gata quando é flagrado pelos pais iracundos de sua namorada; os conselhos detetivescos conferidos por uma criança (Brody Nicholas Lee) a uma experiente e destemida repórter investigativa; e a piada interna antecipada do personagem de Tom Hanks, que, vivendo um escritor medíocre e marginal (no mau sentido do termo), vocifera que “um crítico é alguém que consome uma obra de arte de maneira afobada e sem sabedoria”, sendo posteriormente responsável pela morte de um deles. Esta foi uma maneira bastante grotesca de se defender, aprioristicamente, dos ataques setoriais que o filme – em sua metade tykweriana – poderia receber...
Em relação aos segmentos dirigidos por Andy & Lana Wachowski, por mais que se possa reclamar que eles reciclaram muitos elementos de seu próprio clássico recente “Matrix” (1999) e misturaram referências visuais oportunas a “Blade Runner, o Caçador de Andróides” (1982, de Ridley Scott), para ficar apenas num exemplo paradigmático, as tramas que eles conduzem são interessantes, com exceção do trecho primitivo/pós-futurista protagonizado por Tom Hanks e Halle Berry, que engendram uma história de amor inter-racial ou interespecista que serve de prólogo e epílogo narrativo-discursivos ao filme. Afinal de contas, é justamente neste segmento que encontramos um dos aspectos mais positivamente problemáticos do roteiro, que é a assunção da crença parateológica como constituição ideologizada e sua concomitante necessidade de preservação através de um avantesma demoníaco visto apenas pelo pastor rabugento que se apaixona pela alienígena nômade.
As outras duas tramas que eles dirigem são excessivamente simplificadas em seus elogios abolicionistas, mas bem-geridas mesmo assim: a estória passada em 1849 beneficia-se da ótima protagonização de Jim Sturgess (também ótimo como o sul-coreano subversor Chang Hae-Joo), da eficiente coadjuvação de Keith David (muito competente em todas as suas aparições, aliás) e da boa reconstituição de época, ao passo que a trama de 2144 é agraciada por excelentes efeitos especiais, pelo carisma de James D’Arcy como o interrogador arquivista e por elementos sinópticos que, num cotejo com a trama de “No Mundo de 2020” (1973, de Richard Fleischer, ainda não visto, mas cujo desfecho é desvendado chistosamente no episódio contemporâneo dirigido por Tom Tykwer), são beneficiados pelo estupor reivindicativo.
Ou seja, não apenas os clamores por subjetividade defendidos pela personagem maquinal de Doona Bae são persuasivos como estas três tramas são as que melhor se interligam entre si e as que melhor se coadunam com o filme inteiro, em sua costura encomiástica do amor enquanto força revolucionária que modifica e redime os destinos dos indivíduos ao longo das eras.
Numa abordagem generalizante, todas as personificações de Hugo Weaving merecem elogios demorados, o trabalho de maquiagem para algumas das vivificações de Susan Sarandon e Hugh Grant é primoroso, a direção fotográfica de Frank Griebe e John Toll é excelente, a menção comparativa ao jogo de gato e rato contido no clássico “Trama Diabólica/Jogo Mortal” (1972, de Joseph L. Mankiewicz) não é gratuita e as boas intenções enredísticas são convincentes.
Encontrando um saudável ponto intermediário entre os estilos dos diretores, “A Viagem” consegue servir-se tanto da abordagem analítica sobre as influências do acaso contida em “Corra, Lola, Corra” (1998) e das perseguições classudas que caracterizam “Trama Internacional” (2009), ambos de Tom Tykwer, quanto a pujança policialesca de “Ligadas Pelo Desejo” (1996) e o frescor infantil-juvenil de “Speed Racer” (2008), dirigidos por Andy & Lana (quando ainda se chamava Larry) Wachowski.
Vale lembrar que os 172 minutos de projeção deste filme transcorrem muito agradavelmente, no que tange ao seu ritmo de execução, o que demonstra que, para além de um ou outro atropelo composicional, das concessões piadistas exacerbadas ao público e da languidez que sobeja no roteiro, “A Viagem” merece ser laudatoriamente enxergado como um filme que agrega audaciosamente a tendência hollywoodiana ao espetáculo e sua legítima subsunção a gêneros consagradamente cinematográficos. Um filme que cumpre muito bem o que promete, portanto!
Wesley Pereira de Castro.
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