Julgar os recentes filmes – rodados na Europa e não mais em sua Nova York natalícia – de Woody Allen é uma atividade que exige que sejam levados em consideração bem mais aspectos paradigmáticos do que sintagmáticos na análise das atuais narrativas enquanto moldadas aos cacoetes formais e conteudísticos do diretor, que, conforme consentem tanto admiradores quanto detratores, abordam sempre temas recorrentes, como os fins de relacionamentos, a crise existencial diante da proximidade da morte e, tal qual é repetido peremptoriamente neste filme em particular, a certeza moral de que “ilusões são mais efetivas do que remédios”. Se se pode reclamar que o elenco está dissonante (enquanto Gemma Jones está soberba como a doce velhinha divorciada Helena, Antonio Banderas, Anthony Hopkins e Josh Brolin estão atrofiados em seus personagens masculinos irritantes) em “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos”, no plano técnico, o envelhecido Woody Allen ainda demonstra muita sapiência na escolha das músicas-temas adequadas a cada situação e compõe pelo menos um punhado de diálogos inteligentíssimos e multi-referenciais (o momento em que o personagem de Anthony Hopkins explica a uma garota de programa que os avantesmas em peças teatrais de Henrik Ibsen são mais simbólicos do que assustadores é simplesmente genial!), mas não consegue deixar de transparecer a impressão de que a supressão de financiamentos norte-americanos distancia seus roteiros de focos críticos que lhe tornaram célebres, como os incisivos ataques religiosos de caráter institucional ou os chistes apologéticos à masturbação. Ainda assim, o filme é suficientemente divertido e comedidamente dramático para se impor na programação de cinema hodierna, garantindo que o ainda muito prolífico autor seja merecedor do título de genial até mesmo em produções menos demonstrativas de sua veia autoral.
Reutilizar chavões tramáticos de seus próprios filmes anteriores não configura necessariamente um problema nos filmes de Woody Allen, mas esta subsunção auto-formulaica demonstra sinais de cansaço quando se pretende surpreendente em seu efeito de “reviravolta do destino”, conforme se manifesta na situação do escritor em crise criativa Roy (Josh Brolin), que surrupia material literário alheio, lança como se fosse de sua autoria, e depois descobre que o autor original está a se recuperar do estado de coma em que se encontrara desde que sofrera um acidente, situação esta que parece uma vulgarização do tipo de conflito que atormenta os personagens do ótimo “Crimes e Pecados” (1989). A crescente adesão da personagem Helena (a já citada e iluminada Gemma Jones) ao misticismo para-religioso parece uma diluição temática da magia que se mostra também mais efetiva do que os tratamentos psicológicos convencionais no injustiçado “Simplesmente Alice” (1990). Tais como estes problemas, a modorra actancial dos personagens masculinos (Anthony Hopkins, por exemplo, está francamente desinteressante) e a incapacidade do elenco em reproduzir os chavões neurastênicos que se tornaram famosos enquanto reproduções das próprias atuações do diretor em seus filmes (vide a placidez mal-trabalhada da personagem de Freida Pinto) retiram muito do impacto pretendido por “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos”, que funciona melhor enquanto passatempo cinematográfico rasteiro do que enquanto exercício de vitalidade fílmica, por mais que ainda seja evidente o talento de seu realizador, muito feliz na impecável adoção de “When You Wish Upon a Star” como sintomática canção de abertura e de encerramento.
No patamar técnico propriamente dito, Woody Allen obteve as boas colaborações de praxe, destacando-se a sóbria direção de fotografia do veterano Vilmos Zsigmond e a edição dinâmica de Alisa Lepselter (com a qual trabalhou em 12 filmes desde 1999), mas é mesmo o uso gracioso da trilha sonora o que mais chama a atenção (os temas recorrentes de Tali Roth emocionam sempre que executados), bem como as interpretações inspiradas dos coadjuvantes Pauline Collins (como a divertida vidente Cristal), Ewen Bremmer (como o escritor iniciante que se torna comatoso Henry Strangler) e, principalmente, Roger Ashton-Griffiths (divertidíssimo e encantador como o livreiro ocultista Jonathan, que ainda ama a sua falecida esposa, “uma das rivais mais duras [para Helena], com o perdão do trocadilho” - risos). Lucy Punch tem alguns bons momentos como Charmaine, mas, no geral, sua personagem sofre do mesmo desleixo composicional que a de Naomi Watts (Sally). Ainda assim, porém, as interpretações femininas estão muito superiores aos desempenhos desenxabidos dos atores masculinos, com exceção dos dois coadjuvantes destacados.
Finalmente, qualquer julgamento adequado sobre qualquer filme de Woody Allen, recente ou não, mais inspirado ou não, deve destacar o brilhantismo de seus diálogos filosoficamente corriqueiros. Se, logo na abertura, ele parafraseia um aforismo shakespeareano para dizer que “a vida é cheia de som e fúria, mas logo se revela como um nada sem sentido”, durante o decorrer do enredo, vários ditos espirituosos merecem citação, como a conclusão do patrão de Sally, Greg (Antonio Banderas, que dota seu personagem com um sotaque deveras artificial), que constata que eles eram colegas/amigos, mas tornaram-se concorrentes: “a vida é assim, irônica... e bela”. Noutro momento, Helena comenta que a vidente Cristal disse que ela iria conhecer o estranho alto e moreno do título (uma metáfora recorrente para a inevitável chegada da morte noutros filmes allenianos), mas que, afinal, ela contentou-se apenas com o “estranho”, personificado na figura do livreiro com quem se beija na graciosa última cena do filme. Mas, se não somente de bons diálogos se faz um bom filme, a beleza circunspecta das cenas em que o personagem de Josh Brolin observa a sua vizinha eritro-indumentária se despir ou tocar violão na janela demonstra que Woody Allen ainda sabe como encantar seus espectadores com seqüências contagiosas de encantamento passional. Mesmo envelhecido, um gênio é, antes de qualquer outro adjetivo, um gênio!
Wesley Pereira de Castro.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
domingo, 5 de dezembro de 2010
A REDE SOCIAL ('The Social Network') EUA, 2010. Direção: David Fincher.
Numa definição geral, a noção de algoritmo equivale a um “conjunto de instruções ‘passo a passo’ para execução de determinada tarefa ou solução de um problema qualquer”. No caso do filme ora resenhado, a compreensão de tal noção aplicada à Informática é essencial para se compreender os intentos do cineasta David Fincher através da opção de biografar Mark Zuckerberg, idealizador ainda vivo do Facebook, sítio virtual de relacionamentos deveras popular na Internet. Uma síntese rasteira dos temas comuns aos filmes até então dirigidos por David Fincher permite indicar uma amargura contextual em relação aos efeitos do ambiente urbano sobre os comportamentos típicos de cidadãos tão (in)comuns quanto diferenciados, seja a astronauta que sobrevive a uma raça predadora de extraterrestres [a tenente Ripley no interessante “Alien3” (1992)], seja o ‘workaholic’ dominado pela psicose consumista [o personagem sem nome que protagoniza o extraordinário “Clube da Luta” (1999)], seja o personagem que nasce velho e vai rejuvenescendo aos poucos [o protagonista do excelentemente acadêmico “O Curioso Caso de Benjamin Button” (2008)], para ficar em apenas três exemplos conhecidos de sua pitoresca e laudável filmografia.
Neste seu mais recente filme, a amargura personalística é anunciada logo na cena de abertura, um diálogo surpreendentemente veloz entre o personagem principal e sua então namorada Erica Albright (Rooney Mara), que não somente é efetivo ao anunciar o tom de emoções recônditas propositadamente secundarizadas pelo capitalismo tardio abordado no enredo como faz com que se perceba de antemão o quanto “A Rede Social” é um filme cifrado e hermético em sua pletora de siglas, termos técnicos, metáforas cibernéticas e situações julgamentais que soam enfadonhas para quem não está habituado a filmes de tribunal ou que reconstituam os cotidianos especulativos de ‘yuppies’ tachados como rudes por seus convivas. Neste sentido, a impecável interpretação de Jesse Eisenberg merece elogios desde o primeiro segundo e execução, tamanho o sucesso que ele obtém ao preservar a ambigüidade moral do protagonista, ainda que o roteiro tenda a formatá-lo como um personagem negativo, até que a magnífica cena final restitua a simpatia renegada, novamente conflitada pela canção executada durante os créditos de encerramento (“Baby, You’re a Rich Man”, de The Beatles), cujo sarcasmo interrogativo proíbe novamente o personagem de ser tomado como um modelo positivo para os espectadores.
Em outras palavras, Mark Zuckerberg (ao menos, aquele visto no filme) está pouco se importando em ser uma boa pessoa e, mesmo assim, conseguiu galgar o título de mais jovem bilionário do mundo, algo que, conforme notam alguns poucos interlocutores sensatos, não é suficiente. O perfil sorridente de Mark Zuckerberg no próprio endereço virtual que criou, por outro lado, vai de encontro ao seu retrato severo no filme. Surge aí o primeiro ponto francamente genial do filme, não obstante sua indefinição qualitativa tornada assaz ostensiva pelo já destacado ciframento do mesmo. E tal genialidade faz coro com a estupenda mensagem publicitária que propagandeia o filme: “não se consegue 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos”.
À parte este brilhante estratagema de indefinição identificativa com que o espectador se depara diante do filme, em que o estranhamento e a impressão constante de deslocamento etário se confundem em relação à portentosa efemeridade dos componentes de seu roteiro [escrito por Aaron Sorkin com a mesma pecha tribunalística que marcou algumas de suas obras anteriores, como “Questão de Honra” (1992, de Rob Reiner) ou “Jogos do Poder” (2007, de Mike Nichols)], o elemento mais estritamente cinematográfico que o diretor David Fincher aplica para tornar marcante seu filme enquanto obra significativa do século XXI é precisamente um uso magistral dos ‘close-ups’ faciais, que garante o reconhecimento minucioso da inventividade comparativa com o nome do grande projeto zuckerberguiano, o Facebook (literalmente, “livro de rostos”).
Em três cenas cruciais do filme [o primeiro diálogo entre Mark e Erica; uma conversa entre o primeiro e Sean Parker (o cantor Justin Timberlake, escolha inusitada para interpretar o idealizador do Napster) numa boate barulhenta; e o momento em que o brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield, ator que mais destoa negativamente em relação ao restante do ótimo elenco) descobre que se tornou um empregado minoritário na firma que ajudara a construir e da qual fora presidente], o uso reiterado de campos/contracampos aproximados obriga o espectador a inquirir as motivações sub-reptícias da equipe do filme a utilizar tal recurso técnico de forma bastante acentuada, algo que se torna ainda mais prenhe de sentido depois do único ‘fade-out’ demorado da produção, quando vemos os gêmeos Cameron e Tyler Winklevoss (Armie Hammer) perderem uma competição importante de remo, ao som de uma versão introduzida de forma quase paródica de uma peça musical de Georg Friedrich Handel, e logo em seguida descobrir que o Facebook já está vigorando na Inglaterra.
Por mais que, na maioria das situações, o filme pareça estar subsumido ao seu tema, aos desígnios régios do capital especulativo e às reconstituições processuais das denúncias efetuadas contra o protagonista, o diretor introduz sorrateiramente seus toques de gênio, fazendo com que assistir a este filme corresponda a uma verdadeira diligência epistemológica, na qual se precisa estar atento a pequenos detalhes compositivos, como as sutis variações de expressão colérica do protagonista, a já citada magnificência emocional da última cena, o brilhante uso de canções incidentais (um breve excerto de “Califórnia Über Alles”, do Dead Kenneds, é executado num momento célebre de cinema) e a estranha montagem paralela entre as atividades computadorizadas de Mark Zuckerberg e um grupo de alunos que digita em computadores pessoais enquanto se divertem numa festa orgiástica. A mesma cena, aliás, torna mui evidente a destoação entre aplicação climática e qualidade musical da trilha sonora e sua aplicação (dis)funcional do filme.
Composta por Atticus Ross e Trent Reznor (vocalista e multi-instrumentista da “banda de um homem só” Nine Inch Nails), a trilha sonora deste filme mescla sonoridades eletrônicas com ‘rock’ pesado e, como tal, dispõe de uma agradabilíssima recepção espectatorial. Porém, enquanto componente fílmico, não soa de todo adequada: em mais de uma seqüência, a trilha sonora cria um desconforto diferencial justamente por não se adequar ritmicamente à cena, visto que parece que, com esta sonoridade essencialmente juvenil, o diretor David Fincher tenta emular a euforia sinestésica daquele que talvez seja a sua obra-prima, o filme “Clube da Luta” (1999). Se o filme anterior era beneficiado pelas deturpações psicóticas do protagonista, esta produção mais recente apóia-se numa sobriedade tipicamente empresarial, em que até mesmo uma reclamação urgente por furto de idéias deve ser anunciada com bastante antecedência para ser ouvida. Ou seja, não é o contexto apropriado para os paroxismos dos decibéis rítmicos proporcionados pelos músicos que colaboram na trilha sonora.
Além deste problema de inadequação, outros elementos podem ser somados à trilha sonora: a má caracterização do personagem de Andrew Garfield, o sobejo de personagens secundários [Divya Narendra (Max Minghella), por exemplo, é francamente sub-aproveitado] e o hermetismo contextual do filme dificultam a acessibilidade de platéias mais vastas às denúncias e apelos que este filme transmite enquanto “sintoma de uma geração”, diagnosticando o que pode ser considerado (ao menos, por enquanto) o “novíssimo mal-do-século”, conforme se pode notar na insuperável magnificência da cena final, em que o triunfante Mark Zuckerberg (mesmo quando não obtém o resultado desejado nas pelejas judiciais de que participa) hesita em adicionar ou não sua ex-namorada ao rol de amigos virtuais no endereço virtual que ele mesmo criou.
Analisando-se o desfecho do filme sob um viés teorético, cabe trazer à tona alguns pareceres do sociólogo francês Dominique Wolton, que, num texto famoso em que destaca as limitações aplicativas das novas tecnologias digitais de informação e comunicação, enumera os conceitos de “compressão do tempo”, “distâncias intransponíveis”, “impossível transparência”, e, principalmente, “solidão interativa” como problemas perenemente atrelados aos proveitos vantajosos destas tecnologias no que tange aos incrementos de autonomia, domínio e velocidade nos processos comunicativos e de troca de informações entre indivíduos. No filme, há uma cena mui pertinente em que, ao reconhecer o idealizador do Facebook numa palestra, uma garota pede para que ele a adicione naquela rede social virtual para, logo em seguida, poderem sair juntos e beberem, foderem ou qualquer outra atividade socialmente praticável por duas pessoas que interajam ‘in loco’. Esta situação, tão chistosamente apresentada quando a denúncia por maus tratos contra a imposição de canibalismo a uma galinha que é imposta ao deslumbrado Eduardo Saverin, confirmam as teses woltonianas no que tange ao esmagamento da vida pessoal pelo tempo diferenciado da Internet, aos obscurecimentos relacionais induzidos a partir das artimanhas que visam a retroalimentar a distinção classista que fundamenta qualquer sistema capitalista, às defasagens elementares entre emissores e receptores de mensagens eletrônicas, e, principalmente, como já foi dito, ao abismo cada vez mais comum entre popularidade virtual sobressalente e fracasso interativo real, que acomete o próprio personagem principal, tachado não somente de “babaca”, mas de alguém que luta muito para sê-lo.
Nesse sentido, a ainda não suficientemente elogiada beleza da seqüência final do filme, paralela aos créditos que anunciam os destinos atuais dos personagens, é uma liberdade poética do diretor e do roteirista que confirma magistralmente a suspeita de que a genialidade deste filme é sob-reptícia e não detectável na superfície. Um filme que urge pela confrontação com a realidade analítica do século XXI de uma forma tão pungente que nem mesmo a obsolescência oportunamente programada deste tipo de temática (e/ou de reflexão a ela atrelada) consegue obnubilar!
Wesley Pereira de Castro.
Neste seu mais recente filme, a amargura personalística é anunciada logo na cena de abertura, um diálogo surpreendentemente veloz entre o personagem principal e sua então namorada Erica Albright (Rooney Mara), que não somente é efetivo ao anunciar o tom de emoções recônditas propositadamente secundarizadas pelo capitalismo tardio abordado no enredo como faz com que se perceba de antemão o quanto “A Rede Social” é um filme cifrado e hermético em sua pletora de siglas, termos técnicos, metáforas cibernéticas e situações julgamentais que soam enfadonhas para quem não está habituado a filmes de tribunal ou que reconstituam os cotidianos especulativos de ‘yuppies’ tachados como rudes por seus convivas. Neste sentido, a impecável interpretação de Jesse Eisenberg merece elogios desde o primeiro segundo e execução, tamanho o sucesso que ele obtém ao preservar a ambigüidade moral do protagonista, ainda que o roteiro tenda a formatá-lo como um personagem negativo, até que a magnífica cena final restitua a simpatia renegada, novamente conflitada pela canção executada durante os créditos de encerramento (“Baby, You’re a Rich Man”, de The Beatles), cujo sarcasmo interrogativo proíbe novamente o personagem de ser tomado como um modelo positivo para os espectadores.
Em outras palavras, Mark Zuckerberg (ao menos, aquele visto no filme) está pouco se importando em ser uma boa pessoa e, mesmo assim, conseguiu galgar o título de mais jovem bilionário do mundo, algo que, conforme notam alguns poucos interlocutores sensatos, não é suficiente. O perfil sorridente de Mark Zuckerberg no próprio endereço virtual que criou, por outro lado, vai de encontro ao seu retrato severo no filme. Surge aí o primeiro ponto francamente genial do filme, não obstante sua indefinição qualitativa tornada assaz ostensiva pelo já destacado ciframento do mesmo. E tal genialidade faz coro com a estupenda mensagem publicitária que propagandeia o filme: “não se consegue 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos”.
À parte este brilhante estratagema de indefinição identificativa com que o espectador se depara diante do filme, em que o estranhamento e a impressão constante de deslocamento etário se confundem em relação à portentosa efemeridade dos componentes de seu roteiro [escrito por Aaron Sorkin com a mesma pecha tribunalística que marcou algumas de suas obras anteriores, como “Questão de Honra” (1992, de Rob Reiner) ou “Jogos do Poder” (2007, de Mike Nichols)], o elemento mais estritamente cinematográfico que o diretor David Fincher aplica para tornar marcante seu filme enquanto obra significativa do século XXI é precisamente um uso magistral dos ‘close-ups’ faciais, que garante o reconhecimento minucioso da inventividade comparativa com o nome do grande projeto zuckerberguiano, o Facebook (literalmente, “livro de rostos”).
Em três cenas cruciais do filme [o primeiro diálogo entre Mark e Erica; uma conversa entre o primeiro e Sean Parker (o cantor Justin Timberlake, escolha inusitada para interpretar o idealizador do Napster) numa boate barulhenta; e o momento em que o brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield, ator que mais destoa negativamente em relação ao restante do ótimo elenco) descobre que se tornou um empregado minoritário na firma que ajudara a construir e da qual fora presidente], o uso reiterado de campos/contracampos aproximados obriga o espectador a inquirir as motivações sub-reptícias da equipe do filme a utilizar tal recurso técnico de forma bastante acentuada, algo que se torna ainda mais prenhe de sentido depois do único ‘fade-out’ demorado da produção, quando vemos os gêmeos Cameron e Tyler Winklevoss (Armie Hammer) perderem uma competição importante de remo, ao som de uma versão introduzida de forma quase paródica de uma peça musical de Georg Friedrich Handel, e logo em seguida descobrir que o Facebook já está vigorando na Inglaterra.
Por mais que, na maioria das situações, o filme pareça estar subsumido ao seu tema, aos desígnios régios do capital especulativo e às reconstituições processuais das denúncias efetuadas contra o protagonista, o diretor introduz sorrateiramente seus toques de gênio, fazendo com que assistir a este filme corresponda a uma verdadeira diligência epistemológica, na qual se precisa estar atento a pequenos detalhes compositivos, como as sutis variações de expressão colérica do protagonista, a já citada magnificência emocional da última cena, o brilhante uso de canções incidentais (um breve excerto de “Califórnia Über Alles”, do Dead Kenneds, é executado num momento célebre de cinema) e a estranha montagem paralela entre as atividades computadorizadas de Mark Zuckerberg e um grupo de alunos que digita em computadores pessoais enquanto se divertem numa festa orgiástica. A mesma cena, aliás, torna mui evidente a destoação entre aplicação climática e qualidade musical da trilha sonora e sua aplicação (dis)funcional do filme.
Composta por Atticus Ross e Trent Reznor (vocalista e multi-instrumentista da “banda de um homem só” Nine Inch Nails), a trilha sonora deste filme mescla sonoridades eletrônicas com ‘rock’ pesado e, como tal, dispõe de uma agradabilíssima recepção espectatorial. Porém, enquanto componente fílmico, não soa de todo adequada: em mais de uma seqüência, a trilha sonora cria um desconforto diferencial justamente por não se adequar ritmicamente à cena, visto que parece que, com esta sonoridade essencialmente juvenil, o diretor David Fincher tenta emular a euforia sinestésica daquele que talvez seja a sua obra-prima, o filme “Clube da Luta” (1999). Se o filme anterior era beneficiado pelas deturpações psicóticas do protagonista, esta produção mais recente apóia-se numa sobriedade tipicamente empresarial, em que até mesmo uma reclamação urgente por furto de idéias deve ser anunciada com bastante antecedência para ser ouvida. Ou seja, não é o contexto apropriado para os paroxismos dos decibéis rítmicos proporcionados pelos músicos que colaboram na trilha sonora.
Além deste problema de inadequação, outros elementos podem ser somados à trilha sonora: a má caracterização do personagem de Andrew Garfield, o sobejo de personagens secundários [Divya Narendra (Max Minghella), por exemplo, é francamente sub-aproveitado] e o hermetismo contextual do filme dificultam a acessibilidade de platéias mais vastas às denúncias e apelos que este filme transmite enquanto “sintoma de uma geração”, diagnosticando o que pode ser considerado (ao menos, por enquanto) o “novíssimo mal-do-século”, conforme se pode notar na insuperável magnificência da cena final, em que o triunfante Mark Zuckerberg (mesmo quando não obtém o resultado desejado nas pelejas judiciais de que participa) hesita em adicionar ou não sua ex-namorada ao rol de amigos virtuais no endereço virtual que ele mesmo criou.
Analisando-se o desfecho do filme sob um viés teorético, cabe trazer à tona alguns pareceres do sociólogo francês Dominique Wolton, que, num texto famoso em que destaca as limitações aplicativas das novas tecnologias digitais de informação e comunicação, enumera os conceitos de “compressão do tempo”, “distâncias intransponíveis”, “impossível transparência”, e, principalmente, “solidão interativa” como problemas perenemente atrelados aos proveitos vantajosos destas tecnologias no que tange aos incrementos de autonomia, domínio e velocidade nos processos comunicativos e de troca de informações entre indivíduos. No filme, há uma cena mui pertinente em que, ao reconhecer o idealizador do Facebook numa palestra, uma garota pede para que ele a adicione naquela rede social virtual para, logo em seguida, poderem sair juntos e beberem, foderem ou qualquer outra atividade socialmente praticável por duas pessoas que interajam ‘in loco’. Esta situação, tão chistosamente apresentada quando a denúncia por maus tratos contra a imposição de canibalismo a uma galinha que é imposta ao deslumbrado Eduardo Saverin, confirmam as teses woltonianas no que tange ao esmagamento da vida pessoal pelo tempo diferenciado da Internet, aos obscurecimentos relacionais induzidos a partir das artimanhas que visam a retroalimentar a distinção classista que fundamenta qualquer sistema capitalista, às defasagens elementares entre emissores e receptores de mensagens eletrônicas, e, principalmente, como já foi dito, ao abismo cada vez mais comum entre popularidade virtual sobressalente e fracasso interativo real, que acomete o próprio personagem principal, tachado não somente de “babaca”, mas de alguém que luta muito para sê-lo.
Nesse sentido, a ainda não suficientemente elogiada beleza da seqüência final do filme, paralela aos créditos que anunciam os destinos atuais dos personagens, é uma liberdade poética do diretor e do roteirista que confirma magistralmente a suspeita de que a genialidade deste filme é sob-reptícia e não detectável na superfície. Um filme que urge pela confrontação com a realidade analítica do século XXI de uma forma tão pungente que nem mesmo a obsolescência oportunamente programada deste tipo de temática (e/ou de reflexão a ela atrelada) consegue obnubilar!
Wesley Pereira de Castro.
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