sábado, 29 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: GRADE (2022, de Lucas Andrade)


Na primeira e na última cena deste documentário, há uma importante rima visual: o 'close-up' de um olho que observa algo através de um orifício circular. Ao invés de designar a escopofilia típica dos filmes de suspense, a intenção aqui é metaforizar os protocolos de entrada e saída das instituições penitenciárias, em que os dias de visitação são prévia e rigorosamente estabelecidos. Pelo que costa dos créditos finais, o diretor elaborou este filme a partir de reflexões acadêmicas sobre privação da liberdade, enfocando os métodos peculiares de reabilitação da APAC - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. A sede escolhida foi a de São João del Rei, em Minas Gerais, e as filmagens ocorreram entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020. 


Caracterizada como uma entidade civil de direito privado (com origem visivelmente missionária), a APAC propõe um tipo de sistema prisional em que os "reformandos" assumem a responsabilidade pela manutenção, vigilância e demais tarefas do local em que estão confinados. O diretor emulou esse colaboracionismo através de uma estrutura coletiva de roteiro, no qual os próprios detidos puderam dar vazão às suas idéias. Disso, resultaram seqüências inusitadamente lúdicas, em que os prisioneiros imaginam-se surfando, desviando de tubarões, tricotando no espaço e até mesmo imitando o programa sensacionalista apresentado por Marcelo Rezende  [1951-2017], numa representação bem-humorada que zomba do discurso preconceituoso que considera os Direitos Humanos benesses concedidas apenas para quem infringiu a lei... 


Por vezes, o documentário flerta com a publicidade institucional, no sentido de que demonstra a efetividade freireana desse tipo de organização, em que os detentos interagem construtivamente entre si. É um defeito menor, visto que esta faceta é também autocrítica e ostensivamente ficcional: malgrado o excesso de versículos religiosos e frases de auto-ajuda pronunciados ou pintados na parede, um dos artífices diegéticos ousa atuar numa anedota fílmica em que um padre insere fotos de uma mulher nua em sua Bíblia Sagrada. Os conflitos são escassos, pois as tarefas e deveres dos presos são continuamente rememorados, e todos estão cientes de que devem seguir as regras definidas e compartilhadas entre eles. No turbilhão de ódio atrelado às manifestações de extrema-direita no país, um filme como esse devolve a esperança nas pessoas. Que não saibamos quais crimes foram cometidos pelos detentos foi mais um importante mérito. Para diretor, espectador e personagens reais, o que importa é a possibilidade de amar e seguir em frente, conforme fica evidenciado na seqüência em que os parentes comparecem ao lugar: em meio às grades, valiosas brechas! 


Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: EXTREMO OCIDENTE (2022, de João Pedro Faro)


A execução de "Ainda Queima a Esperança" (composta por Raul Seixas e Mauro Motta, mas eternizada na voz de Diana), durante os créditos de abertura, deixa evidente o quanto este jovem diretor sabe utilizar a ambigüidade como recurso narrativo que preenche as lacunas de uma 'mise-en-scène' tão multifacetada quanto espontânea. Na primeira metade do filme, o corpo alvo de Miguel Clark é fetichizado ao extremo, na preparação para o banquete solitário em que ele será servido e deglutido, enquanto deleite final. Por mais de trinta minutos, não há diálogos, apenas o cotidiano recluso do soldado, constantemente descamisado, escondido numa caserna. Se, por um lado, a paranóia bélica deste rapaz é evidente (vide a maneira alucinada como ele manuseia as armas que carrega), por outro, o espectador é sensorialmente convencido a acreditar que o estado de sítio é real: ouvimos barulhos de explosões em meio à mata, assustamo-nos ao perceber o cadáver de uma tartaruga na praia... 


Através de um primoroso desenho de som, marcado por muita distorção e breves excertos das mais variegadas canções - num rádio a pilha em persistente sintonização -, a perturbação mental e a solidão do protagonista são transmitidas: o arremedo de trama é apenas um pretexto para encontros que acentuam a fome sentida por todos os personagens. A aparição do temível Canibau (Daniel Brito) - não obstante confirmar a sua anunciada periculosidade , visto que ele dilacera o protagonista, numa sangrenta e demorada seqüência - reitera a profusão de significados que o diretor induz através de cada mínimo elemento: a lentidão cerimoniosa com que este vilão alisa o corpo do efebo protagonista transborda homoerotismo. "Ainda pior que a fome é a comida", confessou o soldado num monólogo anterior!


Ratificando a solidez de sua curta mas já marcante filmografia (este é apenas o seu segundo longa-metragem), João Pedro Faro chama a atenção pela efetividade com que emula a estética do VHS em seus planos, chegando ao ápice de, no encontro do soldado com um homem que faz churrasco de cachorros (Bruno Lisboa), ser oferecido um "chá de fita", que faz com que o protagonista passe mal. Na verdade, apenas reforça o torpor que ele já sentia, a ponto de ignorar a rapacidade de seu arquiinimigo. Quando perguntado se ele já escrevera algo, a resposta é a de que rascunhara cartas de suicídio; quando o flagramos lendo alguma coisa, trata-se do "Almanaque do Recruta Zero" ou de um manual sobre técnicas de socos atribuído a Bruce Lee [1940-1973]. O elã masturbatório atravessa todo o filme, sobretudo em seu clímax 'gore': valendo-se da suspeição antropofágica que alega que, ao ingerirmos a carne de alguém, inoculamos também com as suas características e traços de personalidade, o Canibau fuma os charutos fullerianos ao som da mesma trilha marcial que acompanhava os passos repetitivos do soldado. Neste filme, a sobrevivência é dependente do gozo. Um exercício de estilo imperfeitamente magistral! 



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra Tiradentes 2022: BEM-VINDOS DE NOVO (2021, de Marcos Yoshi)


Num contexto produtivo em que as tanto as câmeras quanto os equipamentos de montagem tornaram-se sobremaneira acessíveis, proliferam os filmes íntimos, sobre peculiaridades das famílias dos realizadores. Aliadas à sensibilidade dos mesmos, a coragem de auto-exposição e a disponibilidade de material de arquivo podem render trabalhos valorosos de compartilhamento existencial e humanista. Mas também podem desencadear julgamentos morais irrefreáveis, quando as discordâncias entre o que é mostrado e o arcabouço emocional dos espectadores são confrontadas pela narração condutiva em primeira pessoa, eventualmente demarcada pelas expectativas de (re)encontro. Quando esse diálogo não dá certo, a impressão é a de que o desenlace fílmico chafurda no pior tipo de chantagem emocional... 


A despeito de suas ótimas intenções, este ensaio cinematográfico pertence ao segundo grupo: por mais que nos sensibilizemos diante do projeto do jovem diretor em documentar a sua dupla tentativa de reaproximar-se dos pais e, a partir daí, "realizar um bom filme", lamenta-se que os êxitos tenham sido aparentemente parcos em ambos os anseios. Versão estendida de um produto audiovisual apresentado numa qualificação de Mestrado em 2017, este longa-metragem registra uma série de chavões relacionais sobre os 'dekasseguis' (termo japonês que designa quem "trabalha distante de casa"), sobre o preenchimento das satisfações de continuidade heterossexual e sobre uma noção empresarial de família. De acordo com o eu-lírico desta produção, a ambição dos imigrantes nas regiões em que se instalam é a de obterem bastante dinheiro, a fim de que possam voltar ricos para os seus países de origem. A família Yoshisaki realmente acredita nisso: o modo como o pai do diretor, Roberto, relaciona-se com os seus parentes parece atender a uma cartilha de completa adesão ao toyotismo. Neste sentido, ele acha justificável trabalhar doze horas por dia, em rotinas de seis dias por semana, para "garantir um futuro melhor para a família". Cada abraço entre Roberto e seu neto é como se fosse um procedimento empregatício. Lembramos categoricamente que a família é um Aparelho Ideológico de Estado, conforme definiu o filósofo Louis Althusser [1918-1990].


Acerca de si mesmo, Marcos Yoshi fala pouco: tudo o que interessa ao filme é o seu crescimento como "órfão de pais vivos", de modo que a volta de seus genitores ao Brasil faz com que ele cogite o preenchimento dos instantes de convivência não desfrutados na adolescência. Para sua mãe, não valeu a pena passar tanto tempo longe dos filhos e não testemunhar o crescimento deles, mas, para Roberto, quedar no Brasil equivale à confirmação de um fracasso. Após uma série de empreendimentos comerciais falhos (em razão das crises econômicas que caracterizam o país), ele decide voltar para o Japão. Evita-se qualquer observação de cunho político, mas sabemos que Roberto é irritadiço e obcecado pela lógica financeira. Assistir a este filme é como observar um programa de condicionamento: tudo é organizado para exortar a importância do sacrifício enquanto valor necessário à existência na Terra (entendida como metonímia capitalista). Trata-se da faceta nipônica da ética protestante, involuntariamente convertida em tema de um documentário que flagra o descompasso afetivo entre pai e filho (vide a seqüência em que este último pede para tocar na cabeça do primeiro). No quartel final, quando o próprio diretor vaja para o Japão, ele homenageia algumas cenas de um curta-metragem primevo da cineasta Naomi Kawase: os resultados são radicalmente opostos, infelizmente!


Wesley Pereira de Castro. 

Mostra Tiradentes 2022: MAPUTO NAKUZANDZA (2021, de Ariadine Zampaulo)


Numa observação imediata, este filme parece uma versão moçambicana do clássico brasileiro "Se Segura, Malandro!" (1977, de Hugo Carvana), visto que ambas as produções são constituídas por esquetes urbanos alinhavados por uma onipresente locução radiofônica. As intenções da diretora são distintas: o filme possui um viés acentuadamente dramático, não obstante a profusão de momentos cômicos. Logo no começo, uma situação tão banal quanto revoltante: um grupo de jovens masculinos encontra uma garota desmaiada num carro, provavelmente após ter sido estuprada. Ao invés de ajudarem-na, eles decidem responsabilizá-la pelo que aconteceu: "se saiu com uma roupa curta dessas, quem mandou estar sozinha?". Tratar-se-á de uma abordagem política do cotidiano, portanto. 


A montagem do filme obedece à progressão cronológica de um único dia, e acompanhamos um grupo de personagens aleatórios (uma noiva que desiste do casamento no dia da cerimônia, um rapaz que deambula pela praia, as pessoas que amontoam-se diante de uma mesquita, uma mulher enciumada que reclama das escapadas sexuais de seu marido), enquanto as locutoras da estação de rádio titular recitam poemas e executam canções. No momento mais poético, o bailarino Domingos Bié (já falecido, conforme verificamos nos créditos finais) dança ao som de alguns versos do escritor Ungulani Ba Ka Khosa, que exalta a necessidade da resistência africana: "estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia". A mensagem é fortíssima!


Nem todas as seqüências são tão expressivas, entretanto: algumas são meramente casuais, porém dotadas de inequívoca beleza, como naqueles instantes em que uma moça arruma-se diante do espelho, no cair da noite, complementando o ciclo de eventos que possivelmente desembocará - por causa do machismo dominante na sociedade - nos dizeres preconceituosos que ouvimos dos transeuntes ébrios no início do filme. Enquanto consolo, algo que ressoa poderosamente na transmissão: "através da Arte, podemos identificar o diagnóstico para as doenças da alma". Procede, muito obrigado pela rememoração!



Wesley Pereira de Castro. 
 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: PANORAMA (2021, de Alexandre Wahrhaftig)


Demonstrando, mais uma vez, possuir excelente manejo das vinculações emocionais entre passado e futuro dos ambientes urbanos, este cineasta paulista erige poderosos alicerces em seu novo documentário, mas falha ao depositar paredes inconsistentes sobre eles, da mesma maneira que algumas moradoras comentam acerca das residências precárias com mais de dois andares construídas nas cercanias de onde vivem. Há poucas explicações diretas sobre como surgiu a região em pauta (o Jardim Panorama, na valorizada Zona Oeste da cidade de São Paulo), mas logo compreendemos que trata-se de uma favela gradualmente invadida pelas imposições condominiais do capitalismo especulativo... 


É interessante como a polissemia de algumas palavras é estrategicamente adotada no roteiro do filme: que o diga a imbricação de sentidos entre o título - que é também o nome da comunidade - e a abordagem panorâmica efetivada pelo realizador. O que sabemos sobre aquelas pessoas provém do que elas nos contam, através de diálogos permeados pela observação de fotografias antigas e pelos desenhos de plantas arquitetônicas rudimentares das moradias idealizadas. Quando verificam a abundância de andaimes ao redor, dois amigos comentam sobre o que será construído ali, com base nos rumores circundantes: "estas são as especulações"!


Malgrado a relevância dos discursos e a pungência dos testemunhos sobre reabilitação e resistência espacial e identitária ("dizem que não existimos, mas estamos aqui"), o documentário não é bem sucedido ao emular, via montagem, as noções comunitárias levadas a cabo pelos moradores entrevistados. Ficam os bons exemplos do homem que, na infância, via o seu avô medir diuturnamente o espaço em que residiam e dos versos tronchos porém sinceros da banda de 'hip-hop' Realidade Humana, cujos membros lutam para continuarem dignos, no que tange às condições de moradia, empregabilidade e recondicionamento social. O que o filme nos mostra é valioso, ainda que as seqüências funcionem muito mais isoladamente (vide a festinha de aniversário que acontece num determinado momento) que em sua concatenação enquanto longa-metragem. Afinal, favela é espaço de harmonia em meio ao desequilíbrio



Wesley Pereira de Castro. 
 

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: SESSÃO BRUTA (2022, direção coletiva: As Talavistas e ela.ltda)


Cada segundo deste longa-metragem despeja jorros de iconoclastia: a direção é coletiva, o discurso das personagens não-produtivas (em sentido capitalista) reivindica a valorização racial e não-binária (em termos de gênero), as imagens e sons fundem-se num halo continuamente psicodélico e o tom despojado das gravações emula tanto as produções da Belair quanto os filmes de Jack Smith [1932-1989]. Misturando canções românticas ou religiosas norte-americanas com a alegria eufórica em ritmo de 'funk', além de questionamentos diretos à modorra do espectador e de relatos pessoais de agressão e resistência, as travestis que se manifestam ao longo dos quase noventa minutos de duração denunciam os preconceitos advindos de homossexuais masculinos, dos cineastas brancos e da sociedade em geral. Em monólogos confusos e poucos audíveis, as personagens reclamam e dançam...


Na trilha musical, há desde composições de Tiago Mata Machado (que também colabora na montagem) até o tema instrumental de um clássico média-metragem anarquista francês: tudo é assimilado pela antropofagia contemporânea dessas reivindicantes de uma liberdade revolucionária que é interditada para os marginalizados. No início, um chiste dialogístico envolvendo a voz eletrônica de um sistema virtual de pesquisas (desafiado a falar sobre maconha e LSD); no final, coreografias diante de um caminhão de lixo. No meio, borrões, ensimesmamento, gritos e cantorias. Se as diretoras não chegam a apresentar uma proposta anti-fílmica efetivamente original, suas intenções são ostensivamente afrontosas: assistir a esta baderna audiovisual na íntegra é um verdadeiro desafio de sanidade!


Na falta de algo decoroso a ser dito sobre este exercício de revolta e vacuidade, a transcrição de sua sinopse: "rodado a quente com uma câmera Mini-DV, em 2018, sem grandes preparativos, mas com muito suor e cerveja, o filme se apresenta como uma sucessão de prólogos de um filme sempre por fazer. O que une todos é o desejo de pegar para si uma fatia do mundo". Elas conseguiram, é isso mesmo: os aforismos identitaristas aqui pronunciados transmutam-se numa sucessão arrítmica de torturas. Haja brutalidade


Wesley Pereira de Castro. 

Mostra Tiradentes 2022: A COLÔNIA (2021, de Mozart Freire & Virgínia Pinho)


 Apesar do título sintético e da campanha publicitária que aparece no início (sobre os estatutos de reclusão num leprosário, em meados do século XX), este filme evita a estrutura documental predominante, em que a abordagem do assunto é didaticamente centralizada: quem não pesquisou sobre a sinopse e a conjuntura de formação do bairro Antônio Justa, na cidade cearense de Maracanaú, talvez não compreenda adequadamente o que unifica os três personagens reais acompanhados ao longo da projeção. A assistente social Jaqueline de Aquino Silva é quem faz a intermediação discursiva, visto que ela mantém um projeto de valorização do bem-estar dos pacientes ainda internados. Alguns deles são entrevistados e compartilham pungentes declarações de vida, como o idoso que canta um repente sobre as condições do divórcio de sua mãe... 


A despeito destes liames denuncistas, a coesão entre os demais personagens e situações é tênue: percebemos que a especulação imobiliária surge como tema central, mas o enfoque é assimétrico, em razão de uma amostragem pouco enfática do cotidiano dos protagonistas. A jovem Rayane, por exemplo, está em busca de uma casa para alugar e chama a atenção por sua simpatia, mas não contribui muito para o que é deslindado no roteiro; o entregador de água mineral Francisco Lucas, por sua vez, possui relevância na exposição de seus dilemas enquanto pai solteiro, mas comporta-se de maneira inespontânea diante das câmeras. As seqüências em que ele conversa com um 'rapper' branco soam bastante sintomáticas neste sentido, não obstante a trilha musical ser interessante - destaque para a canção "Pensam que Eu Não Sei", de Payaço Abu.


Quando os três personagens encontram-se numa mesa de bar e, ao final participam de uma cerimônia de aniversário da Colônia, o filme revela com mais clareza as suas intenções, reverberando a militância abnegada de Jaqueline quanto à ressignificação histórica daquele ambiente, como ela própria faz questão de declarar. Os instantes de diversão de Francisco Lucas e seu filho no parque aquático são contundentes na imputação dos caracteres globalizantes comuns aos espaços nordestinos contemporâneos, mas essa questão foi explorada de maneira insuficiente pelos diretores. Seja como for, eles incitam-nos a querer saber mais sobre o que é narrado. Isso, enquanto reação documental (por mais ficcionalizado que o filme demonstre ser, em vários momentos), é uma ótima conseqüência! 



Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: ÍMÃ DE GELADEIRA (2022, de Carolen Meneses & Sidjonathas Araújo)


Se, em termos históricos, o cinema sergipano é lembrado sobretudo pela sua fase superoitista com forte acento documental, as produções contemporâneas surpreendem pelo modo como alinhavam subversões dos gêneros tradicionais e discursos ostensivamente políticos. Este curta-metragem, por exemplo, impressiona pela precisão de seus efeitos visuais (a cargo do versátil artista itabaianense Marlon Delano) e pelo modo como o contexto social é respeitado em sua duração e substrato comunicativo: o rádio a pilha é quase onipresente, em razão de a sinopse preconizar quedas constantes de energia elétrica. Na programação das estações ouvidas pelos personagens, notícias sobre o desaparecimento de pessoas, assassinatos de rapazes negros e a voz potente da 'rapper' Anne Carol e sua canção "Epidérmica", executada novamente nos créditos finais. Cada detalhe é repleto de sentido: os diretores foram percucientes em suas opções fotográficas e na caprichada direção de arte. 


Dentre os aspectos mais elogiáveis deste filme, destaca-se a presença de Severo D'Acelino, importantíssima entidade actancial do Estado, que traz muitas referências antropológicas consigo, no pouco tempo em que aparece: a sua máscara facial 'high tech' e o modo como interage com o pequeno (e eloqüente) Joaquim Gael, na oficina que serve de cenário, diz muito sobre as intenções militantes do curta-metragem, que não são exclusivas aos elementos chocantes da trama. Amalgamando situações que já puderam ser verificadas em filmes de John Carpenter e Jordan Peele, para ficar em exemplos imediatos, o roteiro funciona tanto em sua denúncia antirracista quanto em sua coerência genérica: a cena em que o costureiro Gigante (Ícaro Olavo) arruma os alimentos antes de inseri-los na geladeira é prenhe de tensão!


Entretanto, alguns problemas também são verificados, quiçá relacionados à ainda incipiente produção cinematográfica com envergadura ficcional em Sergipe: apesar de belíssima e expressiva, Margot Oliveira exagera na solenidade com que executa os seus movimentos cênicos. A interação afetiva com seu parceiro é muito boa, bem como os instantes em que ela executa o labor de costureira, mas os diálogos parecem desengonçados, o que fica ainda mais evidente na seqüência em que ela dirige-se à oficina, para escolher um eletrodoméstico usado (numa conjuntura dramatúrgica pouco verossímil, em comparação com o restante da obra). Mas é um defeito que não macula a efetividade da produção: em termos técnicos, o filme é muito bem produzido; no que tange à sua mensagem, que chegue à maior quantidade de espectadores!



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS (2022, de Fábio Leal)


 Tal qual já se podia perceber em seus curtas-metragens, dois elementos possuem importância central na filmografia de Fábio Leal: a naturalização da nudez (e, por extensão, a comunhão dialogística através dos corpos, metonimizada no instante em que um personagem utiliza a sua abertura uretral para emular uma lembrança infantil) e a importância das transformações do espaço urbano no comportamento dos protagonistas (não sendo casual que ouçamos ruídos de reforma dentro do apartamento onde acontece a maior parte das ações). Antes que conheçamos Francisco (interpretado pelo próprio diretor), vemos a região em que ele habita: há vários azulejos caídos num prédio e, mais à frente, veremos trabalhadores atolados no esgoto. Tanto a solidão do confinamento quanto os enlaces fortuitos advêm de condições externas - neste caso, atreladas à pandemia da Covid-19... 


Caracterizando-se ostensivamente como o que já se convencionou chamar "filme de quarentena", este novo trabalho do cineasta combina as supramencionadas recorrências estilístico-discursivas com uma reflexão muito particular sobre o cotidiano homossexual: não deparamo-nos com interações evidentes entre o protagonista Francisco e seus parentes e a relação com os amigos dá-se primordialmente através do enfado acerca do que é publicado nas redes sociais. Ocorrem, entretanto, três encontros decisivos: no primeiro deles, virtual, Francisco conversa com Ronaldo (Marcus Curvelo), um rapaz com quem conviveu por cerca de dez meses, após um flerte carnavalesco, mas cuja falta de afinidade torna-se cada vez mais evidente, em razão dos cacoetes identitaristas do personagem, que é indefinidamente bissexual; no segundo, após uma série de regras pré-estabelecidas, Francisco aceita receber em sua casa um motoqueiro (Paulo César Freire), desde que ele mantenha-se continuamente higienizado; e, no terceiro, Francisco é intimamente desafiado pelo médico Vinícius (Lucas Drummond), que insiste em testar a sua paranóia anticontaminação. "Não quero sair daqui sem gozar", assevera o belo profissional de saúde, que é refutado por Chico: "pois vai. Eu preciso ficar sozinho"!



Há um quarto encontro no filme, que é justamente o retorno do motorista de aplicativo com quem Francisco ousa passear pelas ruas recifenses, na madrugada, ambos completamente despidos (exceto pelo uso de máscaras faciais), na seqüência antológica que encerra o filme. Simpatizamos bastante com o protagonista, não obstante alguns traços de sua personalidade continuarem obscuros ao término da sessão. Uma dúvida: onde ele consegue dinheiro para se manter? Não o vemos trabalhando, ainda que testemunhemos a sua rotina constate de medicação e os seus posicionamentos políticos embasados numa providencial "dieta de informações" (ele não deseja saber nada sobre as sandices bolsonaristas, por exemplo). O diretor foi muito exitoso ao inserir excertos decisivos do acompanhamento midiático sobre a pandemia, como as notícias de falecimentos nos telejornais ou a revolta da bióloga Natalia Pasternak, ao ser confrontada com a futilidade de uma enquete num programa televisivo. 


O tom do roteiro é assaz humorado, mas também reflexivo, com várias observações contundentes sobre as dificuldades de comunicação na atualidade. Em determinado momento, Ronaldo envia para Francisco uma canção cujos versos renitentes ("tudo está terrível, tudo vai mal") opõem-se frontalmente às mensagens de autoajuda ("vai passar, tudo vai melhorar") que lemos no gancho onde o protagonista guarda as suas máscaras e chaves. Durante os créditos finais, ouvimos a voz de Amelinha: "sou diariamente a dor que me passeia/ a dor que me anseia ser". Isso equivale a uma brilhante extensão poética do que é sentido pelo personagem e compartilhado para os espectadores. O filme, portanto, cumpriu à risca o que é anunciado no título: é um profilático diário de sobrevivência através do afeto! 



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 23 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: QUAL É A GRANDEZA? (2021, de Marcus Curvelo)


Para quem acostumou-se à associação sardônica entre este cineasta baiano e o alter-ego Joder, este mais recente curta-metragem surpreende pela guinada actancial e pela potente adição de melancolia: o protagonista é Murilo Sampaio (amigo íntimo do diretor), que interpreta Isaías, um realizador decepcionado com as frustrações acumuladas de sua profissão, de modo que resolve doar os DVDs com seus filmes ao moradores de uma ilha turística. A estrutura aparentemente documental é subvertida por inúmeras camadas de interpretação: Marcus Curvelo dubla todas as pessoas com quem Isaías interage, até chegar ao cúmulo de dublar o próprio Isaías, não mais reconhecido como tal - que vende água de côco na praia, mas não sabe sequer como abrir este fruto. Ou sabe, mas não quer? As dúvidas são multiplicadas nos jogos especulares do diretor, que finalmente pronuncia o próprio nome, quando recita as cláusulas informais do contrato de colaboração com os entrevistados, em que fica estabelecido que não serão reproduzidas as falas explícitas contra o (des)governo bolsonarista... 


Num exercício de genialidade contornado por sumo alquebramento - realçado pela trilha musical com notas tristemente renitentes, além de versos cantarolados pelo diretor, que lamenta "não poder lavar o coração" -, diversas questões são abordadas nos menos de treze minutos do curta-metragem: desde a ausência de financiamentos ministeriais aos artistas até o violento processo de especulação imobiliária na ilha. Marcus Curvelo desvela uma série de golpes reflexivos que realçam o questionamento titular: a quem serve desistir? Felizmente, para os admiradores deste jovem e inteligentíssimo realizador, ele confirma que "é do Axé e, portanto, não desiste". Ele fala sobre si, ele está representando, há mais ficção que metalinguagem? Tudo se mistura brilhantemente nesta aula de superposição merencória e exortação à colaboração entre amigos (alguns dos filmes que Isaías exibe são dirigidos por Ramon Coutinho, em verdade). Que Marcus Curvelo siga vivo, resistente, firme e valorizando a beleza física de Murilo Sampaio em suas produções. Se houver futuro possível neste Brasil em que (sobre)vivemos atualmente, seus filmes funcionam como galhardos testemunhos de autoafirmação desiludida. Parabéns! 



Wesley Pereira de Castro. 
 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

FORTALEZA HOTEL (2021, de Armando Praça)


No segundo longa-metragem de Armando Praça, notamos um percurso semelhante à estrutura geral do que ocorre em "Greta" (2019): após um encontro fortuito possibilitado pelo ambiente de trabalho, os personagens envolver-se-ão em progressivas contravenções, quanto mais íntimos tornam-se entre si. Naquele filme, lidávamos com a solidão pederástica e uma perseguição policial; neste, com o desamparo de mulheres enfrentando perdas recentes: proveniente da Coréia do Sul, Shin (Lee Young-Lan) é hostilizada pelo gerente do hotel titular por estar com o pagamento de sua hospedagem atrasado. Seu marido acabara de suicidar-se e deixou-lhe situações bastante complicadas para serem resolvidas. É quando ela pede auxílio à camareira Pilar (Clébia Souza), em razão de ela saber falar Inglês...


Ocorre que Pilar anseia por sair do Brasil. Possui uma relação turbulenta com sua filha Jamille (Larissa Góes), envolvida com criminosos, e está prestes a viajar para a Irlanda. Até que uma tragédia anunciada acontece: Jamille é seqüestrada por bandidos locais depois que seu namorado é assassinado, e cabe a Pilar buscar o dinheiro necessário ao pagamento do resgate. Em meio a essas duas situações, as duas mulheres aproximam-se afetivamente, utilizando um idioma estrangeiro para identificar as intersecções que permeiam as suas dores. 


Em dado momento, quando perguntada se deseja voltar ao seu país-natal, Shin responde que a Coréia do Sul não faz mais sentido para ela. Pilar responde que o Brasil também não faz mais sentido, "exceto pelas praias e pela música". Num instante de bebedeira, elas dançam ao som de um forró romântico - mais precisamente, uma canção da banda Mastruz com Leite - enquanto tentam afogar as suas dores com vinho barato. Como se fosse um herdeiro contemporâneo do dramaturgo Plínio Marcos [1935-1999], o diretor e roteirista afeiçoa-se a personagens marginalizados, e evita julgá-los mesmo quando eles cometem atos graves de traição. As situações anteriormente descritas ocorrem na semana que separa as comemorações natalinas e o Réveillon: os fogos de artifício não conseguem abafar os choros das duas mulheres, ainda que estes sejam silenciosos. Durante uma brincadeira de amigo secreto, uma amiga de Pilar diz que "ela é uma das melhores pessoas que eu conheci". O que caracteriza um bom relacionamento? Dívidas e tristezas comuns?



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A PRAIA DO FIM DO MUNDO (2021, de Petrus Cariry)


 A cada novo trabalho do cineasta cearense Petrus Cariry, confirmamos que ele é um esteta: o cuidado minucioso com a fotografia (que extrai o máximo de expressividade das belezas naturais) e o desenho de som (que transporta-nos a diversas atmosferas) faz com que o filme transcenda as suas eventuais restrições tramáticas. Ou melhor, a insistência do diretor em fazer com que seus enredos sejam apenas pontos de partida: o que importa são as relações entre as pessoas e o ambiente circundante. Neste caso, a praia de Ciarema é um personagem próprio, a verdadeira protagonista do filme, conforme o próprio título antecipa!


Numa casa prestes a desabar - uma pousada que faliu, e que está à mercê da proximidade agressiva das ondas - vivem uma mãe e uma filha: a primeira, interpretada por Marcélia Cartaxo, é introspectiva e tão afeiçoada a memórias internamente preservadas que gasta parte do seu tempo rasgando fotografias antigas. Insiste em permanecer na casa erigida por seus familiares; a segunda, entretanto, quer sair dali o quanto antes. Envolve-se com as questões políticas locais e luta para fazer com que sua mãe conte algo sobre seu pai, que desapareceu no mar quando ela ainda era pequena. As lembranças que ela tem são fugidias, de modo que associa o amor à ausência, algo que também manifesta-se na gravidez que ela adquire, de um homem que nunca aparece. Onde elas vivem, a única presença masculina é a de um mendigo (Carlos César) que perambula pelas pedras, catando material reciclável. Seria ele o pai desaparecido de Alice (Fátima Macedo)?


Apesar de declarar a uma amiga que sente muito amor por sua mãe, a relação entre elas é tumultuada, geralmente marcada por diálogos rudes: a mãe sente-se invadida pelos cuidados da filha, impedindo inclusive que ela adentre o seu quarto. Neste cômodo, um escafandro direciona-nos a breves instantes de fuga, onde ouvimos ruídos submarinos, condizentes com as metáforas recorrentes envolvendo cetáceos, que obsedam Alice. Nos momentos mais fascinantes do filme, destaca-se a voz solene de Marcélia Cartaxo, sobre um fundo negro. A água não pára de jorrar na varanda das personagens, num cenário de abandono que faz com que o lugar pareça "um favelão classe média", como diz a personagem de Larissa Góes, que também desaparecerá. No desfecho, a opção pelo mistério: a diegese torna quase obrigatório que as baleias voem!


Wesley Pereira de Castro.