domingo, 21 de março de 2010

ILHA DO MEDO (‘Shutter Island’) EUA, 2009. Direção: Martin Scorsese.

Ainda na primeira cena do filme, quando somos apresentados ao protagonista Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio, em sua quarta colaboração consecutiva com o diretor Martin Scorsese), percebemos um elemento de estranhamento positivo que fará com que fiquemos comparando os exercícios primorosos de estilo contidos neste filme aos estratagemas suspensivos e referenciais do cineasta Brian De Palma: ao sair da cabine sanitária em que vomitava, o personagem vê seu parceiro profissional Chuck Aule (Mark Ruffalo) por detrás de uma grade. No plano seguinte, percebemos que o personagem atravessou a grade para conversar com seu interlocutor, mas fica a impressão proposital de ‘faux raccord’ semiótico que nos acompanhará pelo restante do filme. Há um diálogo sobre a forma como a esposa do protagonista morreu (“ela pereceu num incêndio, mas foi a fumaça, e não o fogo, que a matou – isto é importante!”) e, logo em seguida, o protagonista percebe que deixou cair seu maço de cigarros, ao que seu companheiro prontamente lhe oferece algo para fumar. Em menos de 5 minutos de projeção, inúmeros signos incriminadores e importantíssimos são despejados através do roteiro de Laeta Kalogridis, que inicialmente suplanta as denúncias policialescas do renomado escritor Dennis Lehane a fim de que percebamos o porquê de este filme ceder a um formalismo ostensivo e brilhante: para além das similaridades estilísticas com Brian De Palma e das referências ‘noir’ que pululam até o impressionante final, “Ilha do Medo” é um apelo consciencioso a um tipo insigne de cinema que vem sendo esquecido por Hollywood, um cinema clássico, genérico, primoroso, que funciona tanto enquanto diversão quanto enquanto “contrabandista” de mensagens sociais. Nesse sentido, não somente Alfred Hitchcock é homenageado através de signos como escadas sinuosas ou chuveiros focalizados em ‘contra-plongée’, nem somente o Orson Welles que a interpretação de Leonardo DiCaprio volta a emular através de seus cacoetes actanciais, mas Samuel Fuller, Robert Aldrich, Stanley Kubrick, Jacques Tourneur e toda uma geração de cineastas que enxergavam na tensão crescente a dica multifacetada para a resolução de conflitos reais metonimizados através das estórias desenvolvidas na tela grande.


Não obstante Martin Scorsese sempre deixar evidente a sua cinefilia aprimorada, poucas vezes ele adotou num mesmo filme tantas referências diretas a obras-primas da “era de ouro” do cinema norte-americano, o que faz com que sintamo-nos bastante desafiados em relação à significação mais geral pretendida por este filme complexo e tecnicamente irrepreensível, que une o talento de companheiros habituais do cineasta (a montadora Thelma Schoonmaker, o fotógrafo Robert Richardson, a figurinista Sandy Powell, o desenhista de produção Dante Ferretti) a artistas de vanguarda como John Cage, Nam June Paik, Györgi Ligeti e Krzysztof Penderecki, músicos que, sob a supervisão de Robbie Robertson, instauram um clima demasiado lúgubre sobre a narrativa, cujo momento mais revelador é quando Warden (Ted Levine), o diretor da instituição psiquiátrica em que se passa o filme, questiona Teddy sobre a violência inerente ao universo, em que os fenômenos da natureza como tempestades e ventanias revelariam o ímpeto violento de Deus. “Se eu enfiasse o meu dente em seu olho, agora mesmo, tu irias tentar me impedir?”, pergunta Warden a Teddy, que prontamente responde que o mesmo descobrirá caso tente. “Este é o espírito da coisa!” é a assunção argumentativa e categórica que se ouve após a resposta.

A tese que o roteiro intenta demonstrar é, portanto, perfeitamente demonstrada nesta cena-chave, cujo realismo providencial entra em choque com o clima delirante que contamina a perspectiva directiva, propositalmente associada à esquizofrenia persecutória do protagonista, que nunca ficará patente acerca do quanto foi lisergicamente incutida ou não. Nesse sentido, a comparação com os filmes de Brian De Palma volta a ser bastante pertinente, visto que o diretor Martin Scorsese apóia-se em seu foucaultianismo para pôr em xeque os tratamentos psiquiátricos desumanos usualmente adotados contra pacientes criminais, não somente no ano em que se passa a narrativa (1954), mas em qualquer contexto, conforme deixa clara a breve e extraordinária participação da excelente atriz Patricia Clarkson, que funciona como alter-ego coletivo durante o seu discurso contra a transformação de acusações reais em paranóias delirantes por aqueles que detêm o poder institucional e/ou governamental mais lato.


Insinuar que o diretor baliza seu filme através do conceito jamesoniano de pasticho – em que, ao contrário de ser algo demeritório, esta palavra indica uma tendência de avaliação sintagmática do que se está sendo homenageado através da reciclagem de formas clássicas dominantes – não quer dizer que ele abandonou as suas particularidades facilmente reconhecíveis. Muito pelo contrário: o estilo cumulativo tipicamente scorseseano de criar tensão através de elementos recorrentes e reiterativos como luzes vermelhas que se acendem em ‘close-up’ ou lembranças e alucinações que surgem em momentos tramaticamente inoportunos explicam por que ele é considerado um dos mais brilhantes cineastas estadunidenses em atividade, obtendo um aproveitamento superlativo de sua destacada equipe técnica e atuações bem-sucedidas de todo o elenco, seja do protagonista Leonardo DiCaprio, que, como já se disse, emula os cacoetes wellesianos, seja de veteranos como Max Von Sydow e Ben Kingsley, aterradores como os psiquiatras que oprimem o personagem principal, seja da jovem e engenhosa Michelle Williams, que dignifica sobremaneira as aparições da depressiva Dolores Chanal. Aliás, um dos poucos momentos em que o filme se equivoca é justamente quando o protagonista passeia pelos corredores mal-iluminados da Ala C da prisão de Ashecliff, onde estão confinados os mais perigosos e insanos internos da ilha correcional.

Por outro lado, esta seqüência passada no interior da Ala C permite que constatemos que o estranhamento acerca do enquadramento de Leonardo DiCaprio atrás das grades na cena inicial foi proposital, visto que ele é mostrado várias vezes em situação semelhante, cerceado pelas barras metálicas das cenas dos personagens com quem interage. A partir daí, portanto, o filme finge que é previsível, já que nos permite desvendar de antemão que Teddy Daniels é também um interno de Ashecliff, que ele está sendo afligido por delírios traumáticos violentos (ou induzidos, conforme fica em aberto até o final) e que a perspectiva com que os espectadores acompanham o filme não é objetiva, mas sim subjetivamente influenciada. E, para tal, a insistência supra-onírica das horrendas memórias do protagonista no campo de concentração nazista de Dauchau é determinante, bem como a suposição desviante de que as intenções malévolas dos dirigentes da instituição comungam das ameaças divulgadas pelos retroalimentadores voluntários da Guerra Fria que se estendeu até a década de 1990, através de suspeitas de atividades antiamericanas em livros, filmes e atividades corriqueiras dos cidadãos.


Durante os créditos finais deste ótimo filme, a jazzista Dinah Washington interpreta a bela canção “This Bitter Earth”, cuja letra fala sobre “quão bom é o amor que ninguém compartilha”. A amargura fascinante que emana desta canção responde magistralmente a pergunta definitiva que Teddy Daniels (ou Andrew Laeddis?) faz a seu suposto parceiro policial (ou psiquiatra?): “é melhor viver como um monstro ou morrer como um homem bom?”. Perguntado isto, Teddy se levanta e atravessa o jardim do hospital magnificamente fotografado por Robert Richardson, depois de rememorar uma dolorosa experiência, quando assassinou sua esposa enlouquecida, que supostamente afogou os três filhos do casal no lago situado no quintal de casa.

Seja ao associar a música etérea de Gustav Mahler a um estopim dramático do Nazismo num ‘flashback’, seja ao utilizar ‘travellings’ aéreos que maximizam toda a beleza e periculosidade da ilha que intitula o filme, Martin Scorsese realiza aqui um filme absurdamente pessoal, mesmo que precise recorrer a citações amontoadas de seus mestres favoritos para tal. Afinal de contas, não se é gênio à toa. É necessário um rico arcabouço de referências para ser digno de tal título e não somente o diretor possui este arcabouço como ele é modesto e brilhante o suficiente para compartilhá-lo conosco. “Ilha do Medo” é mais do que um filme: é uma verdadeira aula de estilo!

Wesley Pereira de Castro.

3 comentários:

José Leonardo Ribeiro Nascimento disse...

Sendo absolutamente sincero: sua maneira de escrever é incrivelmente peculiar. Você emprega uns termos tão "sofisticados" e usa uns neologismos tais que é impossível não reconhecer talento. Digo isso para afirmar que, na minha opinião, você escreve muito bem. Deveria fazer isso de forma profissional (você já o faz como um profissional, o que quero dizer é que você deveria ganhar dinheiro com isso). Esse parágrafo ignorando completamente o conteúdo do texto é inevitável e é fruto da minha paixão pela língua portuguesa. Acredito que Reinaldo já deve ter comentado sobre isso. Gosto de analisar textos não para apontar erros (apesar de que isso faz parte da atividade :D), mas simplesmente porque quando leio um texto bem escrito, não importa o tema, soa como uma bela música. Acho que deveria ter estudado letras...
Indo ao texto em si, este conseguiu me impressionar ainda mais. Não sei se você assistiu ao filme apenas uma vez, mas a quantidade de detalhes e mensagens que você percebeu exigem duas coisas: argúcia e, sem dúvida, um vasto conhecimento acerca de muitas coisas, em especial, do cinema.
Quando o filme acabou, firmei intimamente o propósito de vê-lo novamente, para buscar exatamente os detalhes (apesar de, no meu caso, restringirem-se aos detalhes intrínsecos à trama, sendo eu, por absoluta falta de conhecimento, incapaz de perceber as referências ao cinema que você citou). Conversando com um amigo pianista, perguntei-lhe sobre Mahler, tendo-me dito que era um de seus compositores favoritos. Disse onde o tinha ouvido e ele foi atrás da trilha sonora de Ilha do Medo e teceu enormes elogios para os compositores, dizendo eram os melhores que existiam na atualidade. Para mim, isso tornou-se mais um motivo para rever o filme, em busca das sutilezas musicais que eu havia deixado escapar (como é óbvio, Mahler - que eu não conhecia - não me passou desapercebido, mas a cena foi tão gritantemente construída em torno da música que ignorá-la era praticamente impossível).
Gostei da sua conclusão: aula de estilo. Por mais que seja uma aula em um nível deveras avançado para que um pupilo como eu tenha captado todas as nuanças, a genialidade do professor perpassa tudo isso, fazendo do filme um deleite para quem o vir.

Pseudokane3 disse...

Ia dizer que minha idade e dificuldade voluntária de inserção aos cânones defasados da contemporaneidade não me permitem mais ensejos de modéstia (risos), mas... Muito obrigado. Sabes bem que qualquer observação de tua parte - seja formal ou conteúdística - é deveras prezada por mim, Respeito e muito o teu conhecimento geral sobre o mundo...

Já tentei trabalhar com algo relacionado a isso, mas... Não sou "mercadológico" o suficiente.

Escrevo o que me vem à cabeça assim que termina o filme, em estilo de escrita quase automática mesmo... O que tu definiste como percepção aguçada eu defendo como paixão incandescente mesmo (risos)

E, quanto ao Mahler, é ele quem sobeja de graça o já sublime MORTE EM VENEZA e fico contente em encontrá-lo dentre os compositores elogiados. Ele é fabuloso! E a trilha sonora deste filme é vanguarda erudita pura. Na primeira cena, já gemi de gozo!

De resto, agradeço, agradeço...

E sigo em frente, tremendo diante de exercícios belos de estilo como este e dos males da contemporaneidade que insistem em deturpar o que eu antes definia como cinema... Sorte que, de vez em quando um Scorsese vem e redime... Sorte que, mais de vez em quando ainda, espectadores devotos como eu e tu aparecemos para procurar a beleza que ainda existe nalgo. Sorte?

Mais uma vez, OBRIGADO!

WPC>

Claudia disse...

desculpe se minha gramática não está à altura de seu comentários.
assisti esse filme duas vezes e as cenas da Sinfonia de Mahler várias vezes, mas depois de ler seus comentários, confesso que vou assistir novamente.
Estou impressionada e estou adicionando seu blog à meus favoritos, quero ler tudo o que já escreveu e quem sabe aprender um pouco desse belíssimo Português e uma nova visão de cinema.
humildemente sua mais nova fã,
Claudia