quarta-feira, 14 de abril de 2010

CHICO XAVIER (Brasil, 2010). Direção: Daniel Filho


Antes que este filme estreasse, um crítico de cinema brasileiro parafraseou um célebre aforismo do escritor André Gide (“não se faz boa literatura com boas intenções nem com bons sentimentos”) para antecipar que sua recepção espectatorial estaria balizada por um discurso proto-hagiográfico, em que o personagem biografado em pauta seria assumido como uma manifestação por excelência do amor humano terreno. Ou seja, bastaria assistir ao anúncio publicitário do filme para conhecer todas as suas reviravoltas tramáticas programadas e as manipulações discursivas em prol dos fatos reais da vida do protagonista, em detrimento da qualidade técnico-lingüística exigida ao se assumir este produto audiovisual como “filme”. Quando entramos em contato com um letreiro que prediz que “nenhum filme é suficiente para caber uma vida humana e que o roteiro pretende apenas ser fiel aos acontecimentos e à vida das pessoas envolvidas”, tem-se a impressão certeira de que os resultados cinemáticos aqui pretendidos estarão muito aquém de julgamentos qualitativos proveitosos e se equalizarão com a nulidade. Assim sendo, é mister interrogar-se sobre que tipo de observação crítica poderia ser publicada acerca deste filme a fim de considerá-lo como tal, visto que, não obstante seus eventuais interesses narrativos, ele é sub-qualitativamente obnubilado até mesmo pelos padrões decadentes da Globo Filmes. Tentemos encontrar algo nele que sirva, portanto!

A entrega da trilha sonora ao músico de vanguarda Egberto Gismonti é um elemento que chama atenção, no sentido de que a adesão deste irrequieto artista ao projeto talvez indicasse uma regeneração ideológica por parte dos envolvidos, mas, infelizmente, o que acontece é justamente o contrário: não somente o roteiro do filme dilui ardilosamente toda a sua negatividade oportunista como a trilha sonora composta pelo virtuoso arranjador fluminense pouco faz além de acentuar os vazios discursivos do filme, que se estrutura permissivamente através do revezamento entre a reprodução de uma famosa entrevista do médium mineiro a uma emissora de televisão na década de 1970 e a reconstituição dos fatos que ele narra, desde a lambida forçada que ele é obrigado a aplicar sobre uma ferida no joelho de um menino, quando ainda era criança (época em que é interpretado hiperestimadamente por Matheus Costa) e constantemente espancado por sua madrinha Rita (Giulia Gam), até os anos finais de sua velhice, em que se dedicara sobremaneira ao trabalho de psicografador, ignorando as moléstias oculares e prostáticas que lhe afligiam. É neste ponto que cabe ser renitente acerca de um aspecto deveras preocupante do filme: seus elementos isolados até que não são de todo ruins, mas o modo como estes são concatenados comercialmente – e moralmente, já que o discurso ecumênico do filme é bastante suspeito – faz com que seus 125 minutos de duração soem bastante incômodos, mesmo não sendo necessariamente enfadonhos.

A má direção previsível do televisivamente esquemático Daniel Filho é um dos principais defeitos do filme, visto que ele prejudica a linearidade expositiva do filme, desperdiçando bons atores (Christiane Torloni, por exemplo, está insuportavelmente caricata como a atormentada Glória) e inserindo momentos de comicidade que, ainda que tenham sua veracidade confirmada pelo personagem real, vão de encontro à seriedade religiosa e/ou doutrinária que, sob o comando de um realizador minimamente competente, mereceria crédito ao menos pela sinceridade. Nesse sentido, a cena em que o jovem Francisco (Ângelo Antônio) congrega as prostitutas de um bordel numa oração, o instante em que este mesmo personagem é açoitado por uma bíblia depois de um exorcismo e a seqüência em que o velho Chico Xavier se apavora durante uma viagem de avião são contraproducentes em relação à simpatia até então desenvolvida sobre o personagem principal, mesmo que inicialmente discordássemos ou descrêssemos de seus preceitos espirituais. O mesmo pode ser dito em relação às cenas protagonizadas por Giovanna Antonelli e Cássio Gabus Mendes, ambos injustamente prejudicados pela má composição de seus personagens. Quanto ao papel desempenhado por Tony Ramos, que vivifica um editor de televisão atormentado pela morte recente de um filho, o roteiro de Marcos Bernstein é bem-sucedido quando lhe dá voz, dado que ele condensa com precisão experiências que o diretor Daniel Filho pode ter vivido e que tencionava valorizar enquanto subtexto profissionalizante, o que explica a pusilanimidade formal da fotografia de Nonato Estrela e faz com que questionemos o sentido metafórico equivocado do primeiríssimo plano que abre o filme, quando uma gota de colírio é mostrada pingando sobre a córnea do líder espírita.


Supondo que o espectador consiga relevar diálogos abomináveis como quando o protagonista diz que só vai morrer “quando o Brasil inteiro estiver feliz” (declaração confirmada durante os créditos finais pela coincidência entre a morte do religioso e a conquista de um importante campeonato de futebol pela seleção brasileira) ou a misteriosa declaração do mesmo sobre o sexo (em que ele afirma que deveríamos destinar energias canalizadas nesta atividade para outras situações afetivas mais gerais), este será obrigado a concordar que algo neste filme é excepcional: a interpretação praticamente mediúnica de Nelson Xavier, que capta com riqueza de detalhes a extrema afetação comportamental do personagem, conforme podemos confrontar ao vermos imagens reais de Chico Xavier durante os créditos finais, em que são exibidos vários trechos da famosa entrevista reproduzida no filme, o que, por outro lado, faz com que questionemos novamente os interesses que permeiam esta reprodutividade transmidiática. Palavras conclusivas: o filme é minimamente agradável enquanto potencial narrativa biográfica, mas contentar-se com este tipo dominante de fórmula enredística durante uma nova tradição emergente de cinematografia nacional popularesca é engessar-se na mesmice financiada dia após dia pela emissora de TV de onde proveio a maior parte dos técnicos envolvidos no projeto. E isto é mau, muito mau (com u mesmo)!

Wesley Pereira de Castro.

Um comentário:

Elaine Crespo disse...

Oi Wesley!

Vou ver, com mamãe!
Adoro aos seus ensinamentos!
Para ser franca entendi muito pouco a postagem!

Mais como sempre você estar certo no que escreveu!

Um grande beijo!

Te amo

Beijos
Elaine