domingo, 24 de junho de 2012

SOMBRAS DA NOITE ('Dark Shadows') EUA, 2012. Direção: Tim Burton.

O lançamento do filme “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003) foi um divisor de águas na carreira do inspirado diretor Tim Burton, por pelo menos dois motivos: primeiro, porque foi a demonstração efetiva de que ele tornaria oficial a colaboração com a atual esposa Helena Bonham Carter, iniciada anteriormente em “Planeta dos Macacos” (2001), último filme em que ele trabalhou com sua antiga namorada Lisa Marie, que costumava aparecer em quase todos os seus filmes; e, segundo, porque dialogava diretamente com um problema pessoal que afligia o cineasta, no caso, o falecimento recente de seu pai. Tendo realizado os piores filmes de sua carreira imediatamente em seguida a esta produção e mergulhando numa sucessão de regravações que desperdiça as soluções criativas adotadas em suas obras-primas [“Edward Mãos de Tesoura” (1990), “Batman – o Retorno” (1992) e “Ed Wood” (1994)], Tim Burton redime-se em “Sombras da Noite”.

 Apesar de também ser uma regravação (no caso, de um seriado de TV homônimo que foi ao ar entre 1966 e 1971 e cujos atores principais fazem uma breve participação na cena do baile), este filme beneficia-se sobremaneira das vantagens de sua transição lingüística (ou seja, da continuidade televisiva para a centralização cinematográfica) e de sua abertura psiquiátrica, ostensividade clínica até então evitada no ‘corpus’ do diretor, por mais evidente que ela já fosse demonstrada ou insinuada em obras como “Vincent” (1982) e o já citado “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”, com o qual interage diretamente, não apenas através de diálogos que destacam as (des)vantagens de ser “um peixe grande num lago pequeno” como também graças às situações que justificam um embate entre as noções confluentes de realismo e sobrenaturalidade. Em outras palavras: além de ser o melhor filme recente de Tim Burton, ele surpreende deveras por sua sinceridade autoral e pela assunção terapêutica.

O personagem principal do filme, Barnabas Collins (interpretado por Johnny Depp, em sua oitava colaboração com o diretor) acorda transformado em vampiro depois de permanecer enterrado por cento e noventa e seis anos, em razão de uma maldição lançada pela bruxa Angelique Bouchard (interpretada pela francesa Eva Green), que alega estar apaixonada por ele. Barnabas, entretanto, queda-se enamorado pela falecida Josette, que, anos depois, reencarna na babá da família Collins, Victoria (Bella Heathcote). Depois de se alimentar do sangue de alguns empregados que o desenterram por acaso, Barnabas tenta se readaptar à sua família, outrora economicamente próspera, mas agora falida e considera pária pela cidade de Collinwood, que ajudou a fundar. Daí para a frente, o roteiro (escrito por Seth Grahame-Smith, a partir de um argumento adaptado por ele e John August) se perde entre as piadas envolvendo as dificuldades de Barnabas para esconder ou adaptar a sua condição vampiresca em relação aos demais membros de sua família, o relacionamento estranho com a psiquiatra Julia Hoffman (Helena Bonham Carter), os instantes românticos com Victoria e os embates de sexo e ódio com Angelique.

Se a primeira situação rende os mais engraçados momentos do filme, graças à excelente direção de arte e à esplêndida fotografia de Bruno Delbonnel, as outras três desencadeiam elementos que parecem um tanto desarticulados na trama, mas que deixam extravasar problemas pessoais e traços recorrentes da carreira do diretor. No que tange ao relacionamento com a Dra. Hoffman, personagem estranhamente inserida no seio da família Collins, Barnabas ouve um veredicto profissional (“enxergar fantasmas é um modo de enfrentar os transtornos psíquicos de outras épocas da vida”), que deslinda tanto as obsessões temáticas burtonianas quanto os traços de caráter que farão o vampiro se interessar pela meiga Victoria, afligida desde a infância por visões paramediúnicas e internada pela família numa instituição psiquiátrica, onde foi submetida a sessões de eletrochoque. A decisão idealizada por Barnabas de intentar uma transfusão de sangue, a fim de demonstrar que “se um ser humano pode ser transformado num monstro, um monstro também pode ser transformado num ser humano” explica o porquê de ele prestar tanta atenção aos conselhos da desdenhosa adolescente Carolyn (Chloë Grace Moretz) sobre paquera, ao som de uma elogiada canção passional do Black Sabbath, o que justifica a inspiradíssima seqüência em que o roqueiro Alice Cooper aparece representando a si mesmo numa festa, cuja canção executada (“Ballad of Dwight Fry”) tem como estopim literal justamente a ausência paterna [“Mommy where's daddy?/ He's been gone for so long/ Do you think he'll ever come home?”] e serve de trilha sonora para o primeiro beijo entre Victoria e Barnabas. A candura deste beijo nos conduz, por inversão, à confusa e renitente atração sexual exercida por Angelique na (pós-)vida do hematófago. Não obstante insistir que a odeia, Barnabas concentra a sua inimizade numa relação comercial (ambos são mercadores em larga escala de peixes) e eventualmente se permitem fazer sexo, numa cena espalhafatosamente cômica (muito mal-sucedida, por sinal) ao som de uma chavonada canção de Barry White (“You’re the First, The Last, My Everything”), que trai a cativante atmosfera sombria através da qual o filme é conduzido.

 Tecnicamente irrepreensível (inclusive no que diz respeito à recorrente contribuição musical de Danny Elfman e à deslocada canção “Go All the Way”, interpretada do grupo The Killers), contando com parte do elenco em estado de graça (vide as participações de Christopher Lee, muso do diretor, como um velho pescador hipnotizado pelo vampiro, e de Michelle Pfeiffer, deslumbrante como a matriarca Elizabeth Collins Stoddard) e agraciado por um senso de humor magistral e minucioso (vide a hilária seqüência em que Barnabas lamenta a sua existência solitária enquanto se deita sobre um teclado mecânico, que, de repente, começa a funcionar e executar uma canção brega e chistosa), “Sombras da Noite” corrige tudo o que parecia duplamente problemático em “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”, tanto em nível diegético quanto discursivo, resolvendo o conflito – muito bem metonimizado na descrição empolgada de Barnabas acerca do estilo gótico de sua residência como sendo “uma perfeita combinação entre a elegância européia e o empreendedorismo norte-americano” – anteriormente manifesto entre o enredo realista e as irrupções fantásticas através da concomitância entre ambos, como também se permite emular diversos filmes anteriores, em especial, “Os Fantasmas se Divertem” (1988), com o qual se filia tanto no que diz respeito à convivência de pessoas de duas épocas distintas vivendo numa mesma casa, no que tange à cena em que uma figura talhada no corrimão da escada se torna uma assustadora entidade ofidioforme, e na exortação à convivência possível entre pessoas consideradas diferentes dos demais mas aceitas em sua singularidade por aqueles que os amam, no caso, a família.

Numa interpretação mais geral, este filme e as demais produções recentes equivocadas de Tim Burton são centrados na diferenciação entre amor e idéia fixa (afinal de contas, “uma maldição despejada em alguém não revela ódio, mas sim devoção”), que, fora das telas, corresponde à figura da forçosamente peculiar Helena Bonham Carter, infelizmente não tão naturalmente bizarra quanto o acachapante universo do diretor, e que, no interior do filme, é tanto simbolicamente assassinada quanto ressuscitada no derradeiro momento, na cena prévia aos créditos finais que homenageia os clímaxes interrompidos ao final de cada episódio da telessérie criada e produzida por Dan Curtis, homenageado com carinho pelo diretor nesta produção tão imanentemente qualitativa quanto sintomática acerca das crises psicológicas compartilhadas pelo diretor ao longo de cada um de seus filmes.

Wesley Pereira de Castro.

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