quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

UMA CERTA TENDÊNCIA DO CINEMA SERGIPANO?


Para além das diversas outras atividades e eventos realizados ao longo do dia, a noite de 26 de dezembro de 2012 ficará marcado para alguns espectadores como o dia em que foram lançados mais alguns curtas-metragens que, talvez, erijam a nova geração de cineastas ou videastas sergipanos. Agraciados por um edital público de financiamento estatal, cinco produções foram apresentadas na referida noite, numa cerimônia que se iniciou com pelo menos uma hora de atraso. Antipatias pessoais e conhecimento prévio acerca das limitações teóricas ou presunções exacerbadas de alguns dos envolvidos na produção destes curtas-metragens levaram algumas personalidades criticamente influentes a negarem-se ostensivamente a ver os mesmos, ao passo em que eu, por estar imbuído da necessidade cinefílica de avaliar o que está sendo produzido no Estado em que resido, dispus a ver pelo menos quatros dos cinco filmes apresentados. Recusei-me a ver o último por causa da bazófia de seu realizador em alegar que o corte de 15 minutos então exibido foi uma imposição que ia de encontro às suas pretensões criativas, de modo que uma “versão do diretor” seria exibida noutra data e aquilo que estávamos prestes a conferir era apenas uma “mostra” do seu trabalho. A própria configuração terminante do evento negava a justificativa do diretor para a insatisfação em relação à duração instituída pelo edital para o seu curta-metragem, de modo que isso feriu a minha sensibilidade espectatorial: levantei-me audaciosamente da sala e, se for o caso, deixo para ver o documentário sobre o Hotel Palace quando ele estrear do modo que o diretor achar conveniente. Mas, por ora, vamos a algumas considerações pessoais prévias acerca do que foi visto:


  • ·         “Luzeiro” (2013, de Raphael Borges): oficialmente, este filme a ser lançado apenas em janeiro do ano vindouro padece de um problema similar àquele que justificou o meu boicote íntimo ao último filme, mas o comentário de uma amiga de que ele seria “uma obra-prima” (palavras dela, juro!) levaram-me a desafiar uma idiossincrasia e quase me arrepender de tê-lo feito. Na trama do filme, os habitantes de um povoado do município de Lagarto ficam ansiosos com a instalação de fiação elétrica em sua localidade, de modo que um agricultor em particular, cuja família trabalha com produtos alimentícios derivados da mandioca, declara publicamente o seu sonho de ter uma televisão de plasma. Declara publicamente o seu intento de comprar o referido eletrodoméstico, enquanto a trama passa a acompanhar as promessas políticas de um candidato em campanha pela reeleição como prefeito, que, em seus momentos mais tragicômico, no sentido mais lancinantemente anti-democrático do termo, faz pensar em "Terceiro Milênio" (1981, documentário antológico e pouco visto de Jorge Bodanzky & Wolf Gauer).  O desfecho do filme é um anticlímax proposital, em que o candidato assegura ao agricultor que ele disporá da energia elétrica necessária para a utilização de sua televisão de plasma. A idéia é original, a crítica é bem-feita (ao menos, em teoria), mas algo prejudicou a desenvoltura do filme. Talvez o fato de esta não ser a montagem oficial do curta-metragem, mas aí é outra história: por ora, falo apenas do que vi...;


  • ·         “Tudo Vai Ficar Bem” (2012, de Cleiton Lobo): sem dúvida, o grande chamariz publicitário-quantitativo do evento, este filme chamou previamente a atenção de muitos dos interessados por causa de sua temática homossexual e parabiográfica. A partir de um roteiro de Cláudio Pereira, acompanhamos o idílio romântico de um casal ‘gay’ ser interrompido pela morte de um deles, que exerce a função de professor universitário, supostamente assassinado pelo pai do sobrevivente, definido como “uma figura emblemática” pela sinopse do filme que foi lida antes do início da sessão. Ao final, a angústia progressiva do pai, afligido tanto pelo que parece ser um sentimento de culpa (teria sido ele o assassino do genro?) quanto pelas dificuldades de comunicação com seu filho, destaca-se – inclusive pelo fato de a atuação de Flávio Porto ser meritória – mas o curta-metragem é amplamente prejudicado pelas atuações excessivamente empostadas  de Carlos Augusto de Lima e Leandro Handel, atreladas a uma afetação que pode ter provindo tanto da experiência teatral prévia de ambos os intérpretes quanto por uma apreensão equivocada do tom dramático conferido pelas poesias de Fernando Pessoa que são lidas na narração inicial. Apesar de um ou outro esforço directivo (a insistência na câmera subjetiva, por exemplo), os resultados desagradaram: entre as pessoas que consultei, foi quase unânime a decepção em relação ao filme, que, num vaticínio pessoal direcionado ao diretor, periga ser muito mais lembrado pelo demorado beijo entre dois homens que por suas características audiovisuais num futuro próximo;


  • ·         “Aracajoubert” (2012, de Jade Moraes): documentário sobre o talentoso artista plástico Joubert Moraes, que, por acaso, é pai da diretora e roteirista, mas que, ao invés de incorrer num problema, assume-se como uma grande virtude, visto que a intimidade com que ela conduz as entrevistas com personalidades importantes da cena cultural sergipana de décadas anteriores é muitíssimo bem-vinda (vide, por exemplo, a ótima declaração de Ilma Fontes, acerca da tendência ‘up to date’ de seus companheiros intelectuais de geração). Além de apresentar com louvor fotografias que mostravam o vigor da juventude – tanto pessoal quanto artística – do pintor, sua filha faz questão de mostrá-lo em plena atividade, cantando ao lado de alguns parceiros musicais hodiernos, em relação aos quais ele é tratado como um padrinho, e diante de suas criações pictóricas, sendo comparado por uma admiradora pessoal a um não-renascentista. O detalhe: uma das funções precípuas de um documentário (apresentar um tema real a um público que porventura o desconhece) foi cumprida à risca, de modo que não apenas ouvi de várias pessoas o interesse de conhecer melhor a obra do artista como, no local em que estávamos, O Museu da Gente Sergipana, deparamo-nos com um belo quadro do pintor, analisado já á sombra das declarações emocionadas que vimos no filme. Gracioso e funcional, portanto: vale a pena ser mais bem conhecido!;


  • ·         “Caixa D’Água – Qui-Lombo É Esse?” (2012, de Everlane Moraes, mostrado em foto): já havia tido acesso a algumas imagens iniciais de uma pré-montagem da diretora, num debate em que a mesma expôs a grandiosidade antropológica e mnemônica de seu projeto, mas surpreendi deveras com a qualidade da versão final. Não apenas o filme resolveu muito bem a conjunção entre uma linguagem poética e, ao mesmo tempo, preocupada com a oralidade dos depoentes como algumas soluções estilísticas mui criativas (uma animação durante a narrativa da fundação espontânea de um cemitério infantil, projeções fotográficas sobre o corpo da própria diretora e de um ator, superposição de vozes, etc.), o teor bakhtiniano da narrativa documental impressiona pelo respeito aos moradores da comunidade onde a própria diretora vive, sendo que o curta-metragem é ainda agraciado por trechos antológicos de uma apresentação do cantor e compositor Irmão num programa da TV Aperipê, em que o artista cunha o neologismo “sofreviventes” para referir-se aos quilombolas. Emocionante e muito realizado: de longe, o melhor da longe e uma das produções mais interessantes do panorama audiovisual sergipano!

Ao término deste último curta-metragem, conforme já disse, saí da sala exibitória e fui interagir com os presentes no local, coletar mais opiniões, cotejar com minhas próprias impressões e pensar numa maneira de responder modestamente ao que é perguntado no título desta postagem, em referência cínica a um polêmico artigo do então crítico de cinema François Truffaut. Pensando bem, é muito cedo para responder qualquer coisa: ainda é necessário ler, ver e ouvir muita coisa sobre cinema aqui em Sergipe, mas, por ora, talvez eu precise admitir que um passo importante foi dado nesta noite. O problema é que, infelizmente, a grande maioria dos passantes não conhecem direito as dimensões ou para que servem os seus pés cinematográficos...

Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

AS AVENTURAS DE PI ('Life of Pi') EUA/China, 2012. Direção: Ang Lee.

Num texto datado de 1957, fundamental para a arregimentação teórica do que foi consagrado como “Política dos Autores”, o cineasta e crítico de cinema François Truffaut afirma que “um diretor possui um estilo perceptível em todos os seus filmes, e isso vale para os piores cineastas e seus piores filmes”. Alegando que, para além das diferenças técnicas e produtivas imputadas de um filme para outro, um cineasta inteligente e talentoso permanece merecedor de ambos os adjetivos não importa que filme esteja a realizar, François Truffaut acrescenta que “um filme de diretor não visa à perfeição; é menos homogêneo, porém mais vivo, mais belo de rever”.

Ainda que alguns considerem precipitada a consideração do taiwanês Ang Lee como um cineasta autoral, é inegável que, ao transitar por filmes dos mais variegados gêneros, ele consegue imprimir uma sutil marca registrada permanente, estando esta atrelada à temática recorrente da autoridade paterna questionada pela rebeldia de sua prole. Transitando entre a figura ostensiva do pai em crise [“Comer, Beber, Viver” (1994), “Tempestade de Gelo” (1997), “Hulk” (2003)] e a figura paterna ausente, omissa ou substituída [“Razão e Sensibilidade” (1995), “Desejo e Perigo” (2007), “Aconteceu em Woodstock” (2009)], esta temática explica por que filmes tão distintos quanto os excelentes “O Tigre e o Dragão” (2000) e “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005) possuem aspectos em comum que ultrapassam as suas convenções genéricas específicas e asseguram a impressionante versatilidade do diretor Ang Lee.

 Em “As Aventuras de Pi”, como era esperado, tal temática é novamente importante para se entender as motivações pulsionais dos personagens, mas, no caso do protagonista Piscine Patel (Suraj Sharma), o que surpreende é a elevação do questionamento da autoridade paterna a um nível teológico, visto que, numa cena-chave, uma criança hindu tendente à conversão ao cristianismo interroga-se pungentemente acerca dos motivos que levaram Deus a conduzir a própria figura humana de Seu filho para sofrer na Terra...

A introdução oportuna das questões religiosas no roteiro deste filme – escrito por David Magee a partir de um conceituado romance de Yann Martel – transporta o espectador por um terreno muito mais árduo do que parecia demonstrar a assunção de que Ang Lee é um cineasta autoral e com preocupações assaz íntimas acerca da reiteração das relações familiares anteriormente descritas. Além de se considerar simultaneamente hindu, cristão e muçulmano, o personagem principal ainda dialogará com um budista, sendo este último fundamental para o pretenso deslindamento de uma chave interpretativa justificadora dos panegíricos destinados ao filme, ao qual seria ofensivo dedicar uma análise meramente técnica ou centrada apenas em suas peculiaridades tramáticas. 

Um dos méritos mais evidentes do filme é a sua apresentação narrativa ambígua, inicialmente conduzida pelo protagonista envelhecido (Irrfan Khan) que conta a sua estória de sobrevivência para um audiente (Rafe Spall) prontamente identificado como alter-ego do escritor Yann Martel. Se, no princípio, esta narração intercalada parece incômoda ou equivocada, numa das seqüências finais ela instaura a dúvida acerca da veracidade intradiegética dos eventos narrados, quando estes se bifurcam numa trama convencional e noutra simbólica, em que um quarteto de animais desempenha funções antropomorfizadas. O problema (no melhor sentido do termo): mesmo que associemos a zebra ferida, a hiena agressiva, a orangotanga maternal e o tigre instintivo a um budista feliz, a um marinheiro chistoso, à mãe do protagonista e a ele próprio, como tenta fazer alguém durante o filme, a co-presença de Pi em relação a estes mamíferos exige que analisemos o seu espectro enredístico a partir de um prisma crítico/narratológico mais ousado.

Obrigando o espectador a se posicionar diante de duas ficções possíveis envolvendo as mesmas possibilidades de interação entre personagens, Ang Lee, através do roteiro que dirige, lança-nos na mesma encruzilhada conteudística que balizava “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003, de Tim Burton), não por acaso um filme sobre um filho que se desentende com seu pai fantasioso. Porém, dois filmes com os quais se pode cotejar diretamente “As Aventuras de Pi” são “Stromboli” (1949, de Roberto Rossellini) e “Náufrago” (2000, de Robert Zemeckis). 

Em relação à segunda obra, as associações são óbvias, visto que existem diversas conexões entre ambos os filmes, como a valorização encantatória e, ao mesmo tempo, periculosa de misteriosos seres vivos marinhos e a perda dalgum objeto que assegura a sanidade do protagonista à deriva em meio à solidão concernente à sua espécie (uma bola de futebol humanizada a partir de uma mancha de sangue que parece uma efígie sorridente, no filme zemeckisiano, e um caderno onde relatava as suas memórias de sobrevivência, no filme mais recente). Já no que diz respeito ao clássico de Roberto Rossellini, o filme de Ang Lee irmana-se no que tange à aceitação de aspectos epifânicos da crença monoteísta, de modo que a invocação exaltada que Ingrid Bergman faz em relação à supremacia de um Deus Todo-Poderoso quando um vulcão entra em erupção ao lado dela tem muitíssimo a ver com as exclamações religiosas adoradoras de Pi em meio a uma tempestade permeada por apavorantes relâmpagos. Mas, sendo original em relação aos filmes com os quais foi comparado, “As Aventuras de Pi” se destaca pela grandiosidade heteróclita do relacionamento entre o protagonista indiano e o tigre-de-Bengala Richard Parker (maravilhosamente recriado a partir de efeitos computadorizados digitais).

Por mais limitador que seja analisar este filme em vista de seus atributos técnicos, não há como não se impressionar diante da extrema segurança directiva relacionada aos diversos animais em cena, que, reais ou não, em termos de atuação não deixam nada a dever a nenhum dos atores humanos com quem contracenam. O brilhantismo da fotografia de Claudio Miranda, a majestosidade da trilha sonora de Mychael Danna, a edição firme de Tim Squyres (que colaborou com o diretor em quase todos os seus longas-metragens) e as habilidades versáteis já mencionadas de Ang Lee (que, neste filme, faz uma breve aparição à la Alfred Hitchcock) estão à mercê das questões sumamente filosóficas que o filme elenca, tendo como motrizes dois diálogos essenciais e repetidos em momentos roteiristicamente convenientes: o primeiro deles diz respeito à teimosia do pequeno Piscine (então interpretado por Gautam Belur) em acreditar que os animais têm alma, até que a exposição, por parte de seu pai (Adil Hussain), de como um carnívoro se alimenta o leva a acreditar que a afeição que ele percebeu nos olhos do tigre Richard Parker não passava de seus próprios sentimentos refletidos; o segundo, por sua vez, é mais categórico e pontual, quando o náufrago Pi atrela o medo que sente do tigre também náufrago à força que o fez permanecer alerta e seguir em frente. 

Por extensão, poder-se-ia deduzir daí que o filme filia-se ao tipo de pensamento contido no vigésimo segundo parágrafo da sexta meditação cartesiana, quando o filósofo, em primeira pessoa, insinua que “tudo o que a natureza me ensina contém alguma verdade. Pois, por natureza considerada em geral, não entendo outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas”. Não sendo mais inoportuno, portanto, chegar à conclusão que Ang Lee é, sim, um autor de cinema, no caso em pauta talvez seja muito mais urgente ler a obra original de Yann Martel no qual o filme se baseia. Mas, enquanto não se tem acesso a ela, as perguntas suscitadas pelo filme são o que ele tem de mais precioso: deveras gratificante encontrar este tipo de reflexão metafísica num filme hollywoodiano atual, aliás!

Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O IMPOSSÍVEL ('The Impossible/ Lo Imposible') Espanha/EUA, 2012. Direção: Juan Antonio Bayona.

Apesar de não ser um ótimo filme, “O Orfanato” (2007) tinha como principais méritos a boa direção de atores, a sustentação inspirada de um clima de tensão e a estréia em longa-metragem de um diretor que prometia ser uma das bem-vindas anexações à renovação do horror hispânico que tem em Guillermo Del Toro (produtor executivo do referido filme) e Aléx de la Iglesia dois dos nomes hodiernos mais relevantes. “O Impossível”, encargo posterior do mesmo diretor, não apenas destoa como é muitíssimo decepcionante no que tange à percepção dos talentos outrora aventados do realizador Juan Antonio Bayona. 

Ao contrário do que aconteceu no filme anterior, em que os espaços físicos eram minuciosamente respeitados, até mesmo por conta da relevância titular dos mesmos, em “O Impossível” um dos elementos que mais saltam negativamente aos olhos, ouvidos e cérebro do espectador é a proliferação de elipses classistas que obliteram as razões socioeconômicas da pletora de estrangeiros entre os afligidos pelo tsunami que atingiu o litoral tailandês em 26 de dezembro de 2004: a extrema especulação turística sobre o local e o desconhecimento imaginado dos hóspedes estrangeiros em relação às particularidades ambientais do lugar são suplantadas pelo roteiro de Sergio G. Sánchez a fim de que as impressionantes agruras e sofrimentos enfrentados pela rica família branca e britânica Bennet, filmicamente concebidos a partir de um argumento biográfico da sobrevivente Maria Belon, sejam priorizados em relação ao desespero anônimo das centenas de famílias desfeitas (inclusive, tailandesas) focalizadas através de reiteradas tomadas em ‘plongée’. 

Não obstante ser uma co-produção espanhola, “O Impossível” é um filme balizado pelo sadomasoquismo técnico que justifica a supremacia quantitativa dos investimentos hollywoodianos em relação a outras cinematografias mundiais!


Ainda que a breve (e, nalguns aspectos, surpreendente) participação de uma muito envelhecida Geraldine Chaplin permita o direcionamento dalguns panegíricos desculpados ao filme, no sentido de que a associação do título do mesmo à dificuldade inicial em saber quem permanece vivo e quem morre durante uma tragédia é inteligente, “O Impossível” insiste em render-se ao que de mais cruel poderia ser engendrado a partir daquele enredo, mobilizando o público a torcer por focalizações atrozes de ferimentos ou pelas repetições oportunistas de imagens da correnteza marítima que se seguiu ao tsunami mencionado. 

Por este motivo, a direção de Juan Antonio Bayona faz péssimo uso de uma montagem exageradamente entrecortada (a cargo de Elena Ruiz e Bernat Vilaplana), abusa da horrenda trilha sonora xaroposa (e quase onipresente) de Fernando Velázquez, fica refém de efeitos visuais que não podem ser descritos como abaixo de muitíssimo eficientes e desperdiça as capacidades actanciais de ótimos intérpretes como Naomi Watts e Ewan McGregor, que pouco podem fazer em relação aos papéis sem legítimas inspirações dramáticas que ficaram a seus cargos. Ou seja, apesar de o filme ser categorizado como drama, os clichês familiares mais rasos e as imagens exuberantes de destruição são muito mais importantes para a equipe produtiva que as reações humanas acerca do que estava acontecendo ao redor dos personagens...


Por mais de um motivo, a atuação do garoto Tom Holland e, principalmente, a composição de seu personagem Lucas Bennet merecem um comentário denegrido especial, no sentido de que, desde a primeira aparição em cena, ele se demonstra como um pré-adolescente egoísta, sarcástico e tendente à misantropia, mas que, por funções inconvincentes e caras à manipulação emotiva mais vergonhosa, é elevado à condição de motivador salvacionista, de agente de reencontro não apenas dos seus entes familiares mas dos pais e filhos internados em um hospital improvisado, angustiados para saber das condições vitais de seus parentes. A forçação de barra heróica relacionada a este personagem juvenil entoja os membros da platéia do filme, especialmente quando associada aos elementos técnicos desagradáveis (trilha sonora, montagem, atuações) já mencionados.


Para que não se diga que “O Impossível” é um desastre completo – no intento mais proposital do trocadilho – deve-se mencionar que as boas imagens subaquáticas do primeiro quartel do filme são bastante funcionais na arquitetura de um clima de suspense antecessor às imagens do fenômeno natural fetichizado pela produção. O compêndio de situações triviais que deixam entrever a catástrofe vindoura (as páginas de um livro sendo levadas por uma corrente de vento, um liquidificador que subitamente pára de funcionar, pássaros voando estridentemente) foi muito bem explorado pelo diretor, que, nos minutos iniciais, parecia levar à frente as qualidades condutivas de seu filme anterior.

 Infelizmente, ele preferiu as benesses de um suposto sucesso de bilheteria à valorização de sentimentos reais, incutindo a legitimação do sadomasoquismo espectatorial como traço característico dos audientes massificados. Financeiramente falando, “O Impossível” é mais do que possibilitado: é induzido pelo ‘studio system’ global!

Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 2 de dezembro de 2012

A ESTÉTICA DA CRUELDADE EM CLÁUDIO ASSIS: POR UMA POSTURA ADULTA NO CINEMA BRASILEIRO!

Associado à “estética da crueldade” por causa do modo desafiador e mordaz com que filma Pernambuco, seu Estado-natal – a ponto de ser considerado ‘persona non grata’ por alguns representantes da classe média do mesmo, que não compreendem os seus radicais intentos artísticos – Cláudio Assis erigiu uma das carreiras mais impressionantes do cinema brasileiro nas últimas décadas. Se a palavra “crueldade”, quando associada ao estilo deste cineasta autoral, parece secundária em relação ao seu filme mais recente, considerado “utópico” por alguns, isto se deve a um desentendimento crasso da redefinição que lhe conferiu o crítico e cineasta François Truffaut quando editou alguns textos de seu mentor André Bazin (1918-1958) sobre o título “O Cinema da Crueldade”.

Para além do sexteto de cineastas ancorado sobre este epíteto (Erich Von Stroheim, Carl Theodor Dreyer, Preston Sturges, Luis Buñuel, Alfred Hitchcock e Akira Kurosawa) estar embasado num contexto deveras particular, o da redefinição da cinefilia francesa pós-II Guerra Mundial, uma declaração de seu autor acerca da exigência de um cinema mais adulto estabelece o devido contraponto com a vinculação hodierna de Cláudio Assis: “que não venham dizer que há gosto para tudo, no ponto em que estamos, muito abaixo do gosto. A verdade é outra, é que a crise do cinema é muito menos de ordem estética que de ordem intelectual. Aquilo de que a produção basicamente sofre é de burrice e uma burrice tão evidente que as querelas sobre esteticismos ficam relegadas ao segundo plano”. É uma citação longa mas percuciente, pois, ainda que proferida em 1943, num contexto artístico bastante diverso do atual, aplica-se muitíssimo bem às soluções que o genial Cláudio Assis oferece em relação à crise estrutural e conteudística do cinema brasileiro.

Tendo realizado apenas três longas-metragens, além de alguns curtas-metragens [sendo um deles, “Texas Hotel” (1999), bastante conhecido pelo modo como adiantou os embates sociais e personalísticos dos seus filmes posteriores], Cláudio Assis é tachado de bêbado alucinado por seus detratores e seus filmes não raro enfrentam problemas com uma censura inassumida como tal por causa de incômodos deslocados acerca do excesso de palavrões em seus roteiros ou do sobejo de nudez em suas filmagens. Uma verificação rasteira nos filmes deixa facilmente entrever o quanto são infundadas as alegações demeritórias contra este cineasta: a exacerbação do naturalismo em seus filmes tem por função denunciar as mazelas infligidas pelo tardo-capitalismo contra as populações ditas subdesenvolvidas, às quais restam estrebuchar ou entregar-se aos instintos animalescos básicos, sendo a segunda opção muitíssimo mais coerente em relação aos afãs dos personagens assisianos.

Da assunção de que “o ser humano é só estômago e sexo” em “Amarelo Manga” (2002) à elaboração melancólica de “Baixio das Bestas” (2006), em que as opressões de classe são literalmente convertidas em estupros, Cláudio Assis demonstrou uma evolução técnica tão elogiável quanto urgente, que desemboca na opção contra-hegemônica de sobrevivência e enfrentamento que emerge em “Febre do Rato” (2011), um filme muito mais complexo em sua demonstração de que “a anarquia não deve se tornar dogma”.

 Dentre os aspectos comuns aos três filmes, destacam-se a presença de Matheus Nachtergaele no elenco, a deslumbrante direção fotográfica de Walter Carvalho (com matizes diversos em cada uma das obras) e a constância do anticonformismo, minuciosamente fundamentado e transmutado em imagens e sons, nos roteiros de Hilton Lacerda. Em “Amarelo Manga”, o ator referido interpreta um homossexual obcecado por um açougueiro e as tonalidades fotográficas acentuam a cor mencionada no título do filme, estando o roteiro a serviço da demonstração dos conflitos oriundos da exacerbação famélica (em sentido existencial, inclusive), tornando concomitantes a adesão de uma evangélica ao sexo anal fetichista, a necrofilia, o transe de um mulherengo arrependido no clímax ruidoso de uma igreja, o vício em aerossóis vaginais, o assassinato legitimado de animais, e até mesmo a leitura oportuna de Friedrich Nietzsche pelo dono de um bode! Em “Baixio das Bestas”, Matheus Nachtergaele vive o influenciador de um rapaz mimado e perverso de classe média, que confunde o desbunde exalado num filme clássico de Cláudio Cunha [“Oh! Rebuceteio” (1984)] com a capacidade de empalar genitalmente uma prostituta crédula, estando a fotografia de Walter Carvalho marcada por tonalidades mais lúgubres, tanto quanto o são o prólogo poético do filme e o desfecho do mesmo, em que uma encenação de macaratu exalta a violência como potencial mecanismo de luta contra a miséria e a exploração do homem pelo homem. Em “Febre do Rato”, a sutileza contida da interpretação do ator e a deslumbrante captação em preto-e-branco do fotógrafo exigem um parágrafo adicional para coadunar este filme à tarefa anunciada no título desta resenha.

 Centrado na figura do poeta Zizo (interpretado apaixonadamente por Irandhir Santos), o que configura uma importante – e problemática – mudança de tom em relação às produções anteriores, muito mais explícitas em sua estrutura de filme-painel, “Febre do Rato” é absolutamente original em sua postura de dissenso em relação ao poder vigente, abdicando das cenas-choque dos filmes anteriores em prol da reiteração imagética do discurso de seu protagonista, que propõe, contra a opressão e a desunião dos ricos, “a alegria e a camaradagem; o sexo e a anarquia”. Nesse sentido, o filme erige aquilo que ele tem de mais defeituoso e, simultaneamente, encantador: o apelo à poesia.

 Se, por um lado, parecem inconvincentes o modo como os habitantes da comunidade onde vive Zizo aderem à profusão erudita e pornográfica de seus versos e a falta de explicações para a subsistência material do poeta (visto que ele aparece diversas vezes consumindo muitas garrafas de cerveja em bares, além de possuir uma máquina moderna de fotocópias, a qual ele utiliza sem qualquer preocupação evidente com o esvaziamento de tinta), por outro, os personagens que o rodeiam são agraciados por manifestações epifânicas encontradas na realidade e demonstradas através de uma moça que se movimenta nua num balanço ou na diegetização da trilha sonora original de Jorge du Peixe, conforme executada pelo laudatório pianista Vitor Araújo (que aparece despido numa das mais belas seqüência do filme, quando a mesma moça do balanço brinca com os testículos de seu trio de amantes, como se fossem ovos de Páscoa).

 A autenticidade do travestismo de Tânia Granussi, a nudez quase permanente e o carisma iridescente de Mariana Nunes, a coadjuvação à altura do também bastante desnudado Juliano Cazarré, as cenas de sexo gerontofílico co-protagonizadas por Maria Gladys e Conceição Camarotti, o resgate actancial de Ângela Leal e a indefinição conscienciosa de Nanda Costa são alguns dos aspectos magnos do elenco, que explodem em dois momentos célebres do filme: o protesto dos excluídos no desfile de sete de setembro e o desfecho que rejeita a nostalgia paralisante, não obstante a saudade que todos sentem do desaparecido Zizo – que, por uma ironia deveras sagaz, talvez tenha morrido em decorrência de leptospirose, depois que é atirado pela Polícia num rio poluído.

Analisando-se adequadamente o filme, não é de se estranhar que estejam ausentes as conseqüências homicidas do narcotráfico ou a comiseração diante da pobreza, características recorrentes na maioria dos filmes recentes que abordam o cotidiano das pessoas com menor poder aquisitivo no Brasil: o que Cláudio Assis deseja mostrar (e exaltar) em seu filme deve ser lido nas entrelinhas, nas paredes, nos muros, nos panfletos subversivos e no arcabouço cultural dos espectadores que não se deixam hipnotizar pelo maniqueísmo oportunista que pulula nas representações cinematográficas vendáveis das contradições políticas da atualidade!


 Wesley Pereira de Castro.