domingo, 24 de março de 2013

INFÂNCIA CLANDESTINA ('Infancia Clandestina') Argentina/Brasil/Espanha, 2011. Direção: Benjamín Ávila.

Filmes como “Um Lugar no Mundo” (1992, de Adolfo Aristarain) e “Kamchatka” (2002, de Marcelo Piñeyro) são demonstrações assaz eficazes de que o cinema argentino transmite com ternura e inteligência as percepções infantis sobre os impactos violentos da ditadura militar na década de 1970. No Brasil, “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” (2006, de Cao Hamburger) possui méritos semelhantes, de modo que esta co-produção argentino-brasileiro-espanhola contemporânea tem como principal premissa o seu excelente ponto de partida dramático, positivamente antecipado pelas referências anteriormente destacadas.

As expectativas depositadas em “Infância Clandestina”, entretanto, logo desbotam quando somos apresentados ao apático protagonista infantil vivido por Teo Gutiérrez Moreno, tão desenxabido e mal-construído que a sua perspectiva observacional acerca dos eventos que ocorrem ao seu redor perde a oportunidade de ser organicamente desenvolvida pelo roteiro autobiográfico de Marcelo Müller e do próprio diretor. Acumulando situações que priorizam as intenções namorativas em detrimento da justificada ingenuidade política de uma criança, este roteiro irresoluto é piorado pela péssima montagem de Gustavo Giani (que fragmenta demais os planos), pela trilha sonora insuportavelmente xaroposa de Marta Roca Alonso e Pedro Onetto, e pela direção fotográfica pretensiosa de Iván Gierasinchuk. Ou seja, narrativamente, o filme é sumamente indefinido em seus desígnios mais gerais, visando oportunamente à hipertrofia do carisma identificacional em relação à suposta puerilidade das seqüências.

 Se, por um lado, o excesso de câmeras lentas e de situações dramáticas inconvincentes (vide a desperdiçada discussão entre mãe e filha e a cena em que o protagonista Juan/Ernesto rouba dinheiro dos pais guerrilheiros para levar sua namorada a um parque de diversões) incomoda pela estultícia formal, por outro, as seqüências de bombardeio urbano reproduzidas em formato de desenho animado adicionam um alento narrativo ao filme, coadunado às soluções mais clicherosas e despolitizadas que poderiam ser encenadas a partir de um entrecho potencialmente envolvente como este.

Os rituais de exaltação peronista que os pais de Juan/Ernesto realizam mais parecem uma cerimônia religiosa pentecostal que uma organização revoltosa, despontando numa seqüência onírica estranhíssima, em que, ao saber da morte de seu pai Horácio (César Troncoso) pela televisão, Juan/Ernesto o imagina sendo velado por crianças, ao som de uma canção aprendida num acampamento escolar, cuja letra associava a impossibilidade temporária de visão à sujeira decorrente de lentes indecentes. Por falar nisso, o sonho em que Juan/Ernesto imagina-se dançando com sua amada María (Violeta Palukas), antes que esta lhe mostre um vaso sanitário que desencadeia numa demonstração de enurese, é deveras interessante, mas insuficiente para instituir convencimento afetuoso a esta trama baseada em eventos reais.

 Os agradecimentos e fotografias que pontuam os créditos finais (ao som da péssima canção “Living de Trincheras”, interpretada pela banda de ‘rock’n’roll’ Divididos) deixam entrever que o diretor é o personagem biografado, mas, justamente por isso, a subjetividade indulgente com que o teimoso e aborrecido protagonista é desenvolvido atinge as raias da irritabilidade, prejudicando a adesão de parte da platéia, que não se deixa apaixonar extensivamente pelos devaneios pré-eróticos do personagem. A cena em que ele se diverte com sua mãe (Natalia Oreiro, linda, mas aqui pouco expressiva) ao relembrar o modo como ela conheceu o seu cônjuge é bonita em seu enquadramento ‘plongée’, mas, lamentavelmente, este é um dos poucos planos do filme que não são estraçalhados pela edição videoclipesco-televisiva.

 Apesar de tentar registrar com precisão emotiva uma época delicada da história da Argentina, “Infância Clandestina” está muitíssimo aquém das demais realizações cinematográficas deste país, seja no que tange à reconstituição das dificuldades ditatoriais propriamente ditas, seja no que diz respeito ao retrato sensível do surgimento das paixões infantis, que engendraram filmes belíssimos sob os auspícios dos produtores do filme, como, por exemplo, “XXY” (2007, de Lucía Puenzo). Ao final do filme – desengonçado, irritante e amorosamente pernóstico – o que predomina é a impressão negativa de que a translação de clichês ideológicos para um contexto de levantes contestatórios potencializou os defeitos estruturais de um diretor estreante em longas-metragens de ficção. Se a tônica do deslumbramento pessoal fosse assumida desde o início, quiçá ele não parecesse tão insincero, mas, do modo como foi apresentado, o roteiro soou tão traiçoeiro quanto os alcagüetes que provocaram a morte do tio Beto (Ernesto Alterio), que, numa seqüência pífia, porém programada para comover, compara o ato de seduzir uma mulher a degustar um condimento de amendoim com chocolate. Este filme é um desagradável contra-exemplo nacional, portanto!

 Wesley Pereira de Castro.

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