quinta-feira, 11 de abril de 2013

UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA (Brasil, 2012). Direção: Luiz Bolognesi.

Viver sem conhecer o passado é como caminhar no escuro”: em mais de uma situação, o protagonista deste filme, interpretado vocalmente por Selton Mello, repete este lema, a fim de despertar o interesse na platéia pelo válido resgate histórico que o filme propõe.

Alegando ter mais de seiscentos anos de idade, este personagem destaca o quanto a sua paixão pela musa Janaína (Camila Pitanga), ao longo dos séculos, contribuiu para que ele se mantivesse vivo e ativo (não obstante apresentar-se como um jornalista fatigado num dado momento), mas quatro núcleos cronológicos serão de importância capital para o entendimento desta paixão tão encrudescida quanto constantemente interrompida: o primeiro deles remonta ao ano de 1565, quando o protagonista assumia a alcunha de Abeguar, índio da tribo dos tupinambás, que, no primeiro instante em cena, perseguia uma onça, animal cuja caçada propicia um rito iniciático de hombridade para o seu ceifador.

Apesar da discrição com que ele se locomove pela floresta, o índio é surpreendido pela apaixonada Janaína, despida sob o couro de um felino. Eles se abraçam, mas logo percebem que estão sendo seguidos por uma arisca pantera, até que pulam de um desfiladeiro e constatam que Abeguar consegue voar. Enfatizando que tal dom volante está atrelado a uma responsabilidade crescente em relação à segurança de sua tribo, ele tem uma previsão assustadora acerca de seu futuro, onde assiste ao assassinato de sua amada e à escravização de seu povo pelos portugueses e reencarna noutras épocas, sempre envolvido nalguma luta política de resistência que o afasta de Janaína. Se isto é um clichê espiritualista de superação romântica? Oficialmente sim, mas o diretor Luiz Bolognesi, estreando na condução de um enredo ficcional (depois de ter roteirizado quase todas as obras de sua esposa Laís Bodanzky) consegue sustentar o interesse tramático nas evoluções narrativas da saga de Abeguar.

 Por mais relevantes que sejam os eventos acontecidos durante o período colonial brasileiro e aqueles relacionados à revolta conhecida como Balaiada (em 1838), estes são tecnicamente prejudicados pelo estilo modernoso da direção, que imprime estratagemas semelhantes aos dos ‘animes’ japoneses nas cenas de derramamento de sangue e justapõe, de forma anacrônica, a eficiente trilha sonora de Rica Amabis, Tejo Damasceno e Pupillo à reconstituição desenhada dos eventos históricos supracitados. A incursão narrativa pelo período ditatorial militar brasileiro e a trama futurista embasada nas atividades guerrilheiras do Comando Água para Todos são superiores porque permitem maior fluidez elementar, além de acrescentarem aspectos pertinentes à composição atormentada do protagonista, como, por exemplo, a delação de seus companheiros revolucionários no final da década de 1960 e a conclusão desiludida de que “viver é travar uma luta a cada dia”, o que afasta o filme da previsibilidade de um final feliz namorativo incondizente com o seu substrato realista, malgrado o personagem ser diegeticamente merecedor da felicidade ao lado da mulher que ama...

 As contribuições de Lucas Santtana, Lenine, Nação Zumbi e 3 na Massa (cuja canção “Morada Boa” é oportunamente regravada por Camila Pitanga) na banda musical são proveitosas, bem como os elaborados traços gráficos do diretor de animação Bruno Celegão Monteiro, mas a montagem excessivamente picotada de Helena Maura na primeira estória e a curta duração do filme (apenas 75 minutos) não permitem que os elementos circundantes à trama romântica sejam internamente desenvolvidos e redundem em momentos discutíveis de afirmação enraivecida, como, por exemplo, quando o militante aprisionado Cao chuta violentamente um rato contra a parede de sua cela ou quando um presidiário apreende, a partir de uma leitura de “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, que o referido livro é uma incitação à luta armada, o que justifica a sua configuração oitentista como “cangaceiro das favelas cariocas”. Apesar disso, a iniciativa ousada e intencionalmente contestatória do roteirista em relação a uma “História oficial” que suprime ideologicamente a importância dos mártires nacionais deve ser elogiada, tamanha a independência produtiva depositada sobre a feitura de um projeto tão pessoal, levando-se em consideração que são exíguas as experiências brasileiras em animação que não sejam de caráter infantil, principalmente no formato de longa-metragem.

 Se, por um lado, comemora-se que “Uma História de Amor e Fúria” não seja um filme ruim, por outro, deve-se também admitir que ele não consegue fazer jus aos sentimentos poderosos contidos em seu título: ainda que o amor seja emulado do início ao fim, a fúria é eventualmente forçada em suas manifestações conclamatórias (exceção louvável em reação ao estupro no episódio da Balaiada), e, por isso, nem sempre se mostra credível – principalmente no que tange ao viés anticonformista de seu entrecho, que leva o protagonista a concluir que, infelizmente, os seus heróis nunca foram eternizados em estátuas, não obstante os seus inimigos terem sido. Neste aspecto, a representação desmitificada do militar Luís Alves de Lima, futuro Duque de Caxias, enquanto personagem nefando que suprime fatalmente a revolta iniciada por Manoel Balaio foi certeira.

 As situações envolvendo o desvio de água pelo presidente da companhia corrupta Aquabrás na última estória também são muito boas, inclusive em sua crítica sutil e velada aos delírios desenvolvimentistas que podem se instalar a partir da sediação de importantes eventos esportivos no Brasil hodierno e no diálogo sarcástico que Janaína trava diante de um aquário cujo estoque de água (recurso mineral cuja dose é muito mais cara que uísque em 2096!) poderia saciar a sede de milhares de famílias.

Se a interpretação de Selton Mello está aquém do mérito demonstrado em outros filmes e Rodrigo Santoro está pouco perceptível em suas aparições vocais, as personagens dubladas por Camila Pitanga se destacam pela sensualidade decalcada a partir de sua figura humana, merecendo realce a seqüência novamente anacrônica (mas nem por isso menos formosa) em que, num futuro tecnocrático, Janaína aparece cantarolando uma suave cantiga de MPB. Tal como o personagem principal, o filme soçobra em suas práticas amantes, mas não em seu elã enfrentador. Oxalá o tempo lhe retribua a ousadia e o pioneirismo setorial num gênero cinematográfico bastante subestimado e/ou desacreditado no Brasil!

 Wesley Pereira de Castro.

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