domingo, 30 de junho de 2013

OS AMANTES PASSAGEIROS ('Los Amantes Pasajeros') Espanha, 2013. Direção: Pedro Almodóvar.

A demarcação publicitária deste filme enquanto comédia fugaz fez com que muitos dos admiradores contumazes do cineasta Pedro Almodóvar encarassem previamente o mesmo como uma obra menor, como uma produção escapista que ameaçava não ostentar as diversas marcas registradas do genial diretor. De fato, tal pré-julgamento é provido de sentido, visto que este filme é bastante estranho na configuração atual da obra do artista espanhol, que, já tendo se estabelecido como um dos grandes autores cinematográficos da atualidade, realiza um filme que pretende mesclar o refinamento impudico de suas produções recentes com a amoralidade desenfreada de seus primeiros longas-metragens.

O resultado é deveras irregular, mas condizente com o título, pois o adjetivo contido no mesmo – polissêmico em sua utilização, dado que o cenário predominante do filme é o interior de um avião – sintetiza muito bem o efeito que se instala após a sessão, uma tendência ao esquecimento que vai radicalmente contra o que se convencionou esperar de uma obra almodovariana, comumente permeada pela subversão de tabus (principalmente, sexuais) que ainda incomodam bastante a sociedade espanhola – e mundial, como um todo.

 Por mais que a animada seqüência de abertura, musicada por um pasticho da “Für Elise” beethoveniana (interpretada por uma banda de nome Los Destellos), e a presença de vários colaboradores habituais do diretor em pequenos papéis (Antonio Banderas e Penélope Cruz, por exemplo, que aparecem em apenas uma seqüência) dêem a entender que “Os Amantes Passageiros” é uma homenagem ao pendor cômico e histriônico que exalava das obras primevas do cineasta, a quebra (positiva) de ritmo narrativo que se instala quando acompanhamos os dilemas românticos de uma ex-aeromoça (vivida pela belíssima Blanca Suárez) apaixonada por um ator mulherengo (Guillermo Toledo) envolvido com uma pintora com tendências suicidas (Paz Vega) denota a debilidade estrutural do roteiro, particularmente desinteressante quando focado no envolvimento passional que se estabelece entre o matador de aluguel vivido por José María Yazpik e a cafetina sadomasoquista de luxo interpretada por Cecilia Roth (caricata ao extremo).

A atuação de Lola Dueñas, como uma vidente virgem que emula tanto o olhar concomitantemente abobado e mordaz de Carmen Maura nos filmes iniciais do diretor quanto as diatribes femininas que pululam em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988), também é afligida por este desinteresse, no sentido de que as situações em que ela se envolve são forçadas e inespontâneas, não obstante as pulsões humorísticas sinceras advindas do momento em que ela segura os pênis de dois homens para prever o futuro ou quando ela, numa crise lúbrica, pensa em utilizar uma lanterna como vibrador improvisado. Tanto os diálogos proferidos pelos três últimos personagens citados quanto a presença em cena de José Luis Torrijo como um banqueiro falido, prestes a ser preso por corrupção, assumem-se como defeitos prolongados deste filme, sem dúvida o menos elaborado de toda a rica produção almodovariana.

 A trinca de atores afetados que vivificam os comissários de bordo é excelente e, por causa deles, as risadas, objetivo central da película, são alcançadas: Javier Cámara destaca-se como o sinceríssimo Joserra, que, além de ter um caso com o piloto bissexual bem interpretado por Antonio de la Torre, envolve-se em diversas confusões por causa de sua inabilidade de mentir; Raúl Arévalo [Ulloa] surge como um contraponto mais cínico, dotado de uma sensualidade dúbia, que desemboca na satisfação felacional com o formoso co-piloto até então heterossexual vivido por Hugo Silva, com quem se entrega a uma demorada transa sob a espuma no desembarque emergencial do final; e Carlos Areces transforma o religioso Fajas num hilário personagem moralista e solitário, repleto de cacoetes femininos e bastante funcional enquanto instância equilibradora das (re)ações determinadas e audaciosas dos outros dois funcionários. Entretanto, a divertida cena em que eles dançam freneticamente ao som de “I’m So Excited” (na versão de The Pointer Sisters) não é tão efusiva quanto se pretendia, e soou tão deslocada quanto o próprio Fajas alega, quando assevera para uma passageira intransigente que eles talvez tenham escolhido mal a canção apresentada enquanto alívio cômico. É uma cena hilária, mas muito aquém do que o próprio Pedro Almodóvar obteve em filmes anteriores, o que é sobremaneira prejudicado pelo abandono, neste filme, da intertextualidade cara ao estilo do diretor, justificada diegeticamente pelo fato de que os passageiros não podem assistir a nenhum filme a bordo por conta do problema técnico que os comissários tentavam manter em sigilo.

 Felizmente, há uma compensação formal nas seqüências em que os personagens falam ao telefone e as vozes de seus interlocutores são reproduzidas num alto-falante, permitindo uma comicidade paradigmática (no que tange à interligação progressiva das subtramas) que tem muito a ver não apenas com o estilo do diretor como com a sua preocupação (antecipada desde a cartela de abertura, que destaca que “este filme é uma fantasia e, por causa disso, não tem nada a ver com eventos reais”) em afastar a comicidade do ‘nonsense’ típico de produções do gênero, visto que, salvo pelos excessos etílico-comportamentais dos tripulantes da aeronave, esta é exibida de um modo que preserva a lisura profissional dos personagens, afinal bastante sérios no desempenho geral de suas funções.

 Tecnicamente, os colaboradores habituais do diretor oferecem ótimos aportes, ainda que destoados do simplismo do enredo: a montagem eficiente de José Salcedo e as variações musicais do compositor Alberto Iglesias são merecedoras de elogios, porém o aspecto mais laudatório deste filme, além das interpretações anteriormente citadas, é a deslumbrante direção fotográfica de José Luis Alcaine, exuberante tanto nos momentos em câmera lenta [quando o telefone celular de uma potencial suicida cai na cesta da bicicleta de uma transeunte ou quando um sensual passageiro de ascendência árabe (Nasser Saleh) é estuprado durante o sono por uma mulher excitada e abre os olhos enquanto ela é penetrada de costas por ele] quanto na providencial utilização excessiva de elementos vermelhos, mesmo quando o cenário praticamente único é permeado pelos tons azulados da empresa aérea retratada no filme (a fictícia Península), sem mencionar o genial enquadramento da tela de celular gotejada de sangue que é segurada por um funcionário desastrado (Coté Soler) quando este publica no Twitter que está justamente a sangrar, depois de ter sofrido um leve acidente.

As piadas envolvendo as pílulas de mescalina que estavam escondidas no ânus de um passageiro recém-casado (Miguel Ángel Silvestre) e a desenvoltura com que se apresentam as ocorrências de homossexualidade são aspectos roteirísticos que confirmam o entusiasmo do pesquisador Denilson Lopes no que diz respeito a uma manifestação afirmativa da experiência ‘gay’, aqui bastante diversa da conotação ‘queer’ que abundava na obra do diretor. Segundo o pesquisador, “o encontro de dois homens pode ser apenas um encontro, mas também pode ser uma possibilidade de diálogo e abertura para o mundo, desafio maior de todo discurso minoritário, alguma vez discriminado”, o que salvaguarda a condição passageira dos tais encontros no filme, que, no discurso sub-reptício à alegria mostrada no filme, encara a sexualidade com uma destreza bastante peculiar, antenada com a militância homossexual hodierna, subsumida pela lógica do consumo, mas, ainda assim, marcada pela necessidade de discussão dos novos papéis ocupados pelos ‘gays’ na sociedade.

Nesse sentido, o que parece mais prejudicial neste filme é dotado de uma função política minoritária que pode ser hermeneuticamente resgatada em meio à confirmação da decepção estilística antevista pelos empedernidos fãs almodovarianos. Conclui-se que o cineasta não deixou de ser um excelente “autor de cinema” ao resolver privilegiar a diversão em detrimento da reflexão em seu filme menos inspirado, enfim!

 Wesley Pereira de Castro.

2 comentários:

Jadson Teles disse...

Gostei muito de sua crítica, concordo, mas o filme uma brincadeira(ruim) sobre a crise econômica e política na Espanha, por exemplo um avião que quebrado carrega o nome justamente de Península? ou como toda a classe "econômica" dorme enquanto a classe "executiva" acompanha todos os eventos? ou o fato de um banqueiro corrupto e uma prostituta que serve a corte real num mesmo ambiente, não seriam índices dessa brincadeira ruim? e o que eu acho pior a efusividade gay como divertimento de toda uma crise, não é mesmo problemático? achei o filme ruim, o pior filme de Almodóvar!

Pseudokane3 disse...

O pior é que eu nem destaquei estes episódios, Jadson. Excelentes observações! Sempre que a câmera focalizava alguma notícia de jornal, eu torcia para que o velho Almodóvar voltasse e fizesse o que tivesse de ser feito com as mesmas e não apenas cuspir piadas sobre reis fodedores e sadomasoquistas... Uma outra crítica este teu comentário. Escreva algo também! (WPC>)