segunda-feira, 30 de setembro de 2013

SEM DOR, SEM GANHO ('Pain & Gain') EUA, 2013. Diretor: Michael Bay.

Não ter visto na íntegra “Os Bad Boys” (1995) e sua continuação “Bad Boys II” (2003) é um pormenor que interfere mui negativamente na apreciação deste “Sem Dor, Sem Ganho” (2013). O motivo: este díptico de filmes possui a chave interpretativa mais ampla para se verificar que, ao contrário do que parece, o longa-metragem mais recente de Michael Bay não difere tão substancialmente em relação aos demais filmes do diretor.

Por mais que tal obra seja absolutamente distinta em seus parâmetros de financiamento, os cacoetes de direção e a composição excessivamente bem-humorada dos protagonistas assemelham-se bastante ao que já fora percebido em “A Rocha” (1996) e “Armageddon” (1998). Entretanto, a sagacidade do roteiro, escrito por Christopher Markus e Stephen McFeely a partir de um caso escandalosamente real, relatado pelo jornalista Pete Collins, destaca-se de qualquer outro capítulo da filmografia bayniana justamente por ser radicalmente verossímil: neste filme, em meio às explosões e batidas e perseguições de carros que caracterizam o seu estilo, o que mais impressiona é a ostensividade minuciosa da caracterização arquetípica do estadunidense médio (e dos imigrantes que prontamente assimilam o ‘american way of life’), não por acaso o espectador ideal de qualquer um de seus filmes anteriores.

Comparar “Sem Dor, Sem Ganho” com “Transformers” (2007), para buscar uma associação imediata, é um exercício que denota o quanto o filme ora resenhado é inteligentíssimo em sua crítica severa à ideologia espalhafatosa do ‘american dream’, despejada ano após ano através de dezenas de superproduções hollywoodianas. Se, por um lado, é audacioso (e precipitado) demais louvar os arremedos de autoria levados a cabo por Michael Bay [utilizar a noção de “autoria” em relação ao corpus raramente elogiável deste diretor é desrespeitar a historiografia do conceito!], por outro, não há como negar que tal cineasta mantém-se rigorosamente coerente ao que já demonstrara em todos os seus filmes anteriores, para além das diferenças alardeadas. É em relação a estas aparentes diferenças que devemos nos deter daqui por diante...

Magistralmente conduzido por um excelente Mark Wahlberg, desde o início o filme deixa patente o seu brado ideológico: “eu acredito em malhar!”. O tom que o protagonista Daniel Lugo utiliza para pronunciar este aforismo é exatamente o mesmo que um dos apadrinhados de Don Vito Corleone inicia uma súplica na famosa cena de abertura do clássico “O Poderoso Chefão” (1972, de Francis Ford Coppola), o que nos leva a uma continuidade identitária: Daniel aprendeu o que (acha que) sabe através dos filmes que viu, sendo a obra mencionada justamente uma de suas produções favoritas.

A reiteração de situações policiais ou investigativas antecipadas nos dois filmes citados na primeira linha deste texto confirma que, dentre os filmes que aprimoraram o cabedal gnosiológico de Daniel Lugo estão também os filmes de Michael Bay, que, em meio às suas exortações pragmáticas, demonstra-nos como descobrir a proveniência de um telefonema (digitando *69 no teclado do aparelho). Os variegados jargões fisiculturistas que Mark Wahlberg entorna ao longo da projeção, incluindo aquele que justifica o título do filme, são vitais para a fidedignidade do ator ao seu personagem, o que, felizmente, também acontece com os seus parceiros de encenação.

 Dentre as suas inúmeras virtudes, a honestidade compositiva do trio de protagonistas é um dos maiores méritos de “Sem Dor, Sem Ganho”: além da ótima interpretação do ator principal, Anthony Mackie e, principalmente, Dwayne Johnson merecem ser ovacionados por suas entregas actanciais impressionantemente funcionais.

Se o intérprete do impotente Adrian parece exagerar na caricatura, mas cuidadosamente não se deixa incorrer na estereotipia deslocada (afinal, indivíduos estúpidos como aquele existem aos borbotões!), o astro eventualmente cognominado como The Rock surpreende por seu trabalho delicado como o cocainômano convertido ao catolicismo que crê que a sua impressionante habilidade para derrubar outras pessoas numa luta seja um dom divino, sendo particularmente laudatória a sua aparição final, cantando no coral cristão de uma penitenciária. Por mais grandiloqüentemente pecaminoso que seja o seu personagem, suas atitudes estouvadas são justificadas tanto por sua rudeza nata quanto pelos efeitos colaterais de seu vício progressivo e falsamente combatido, chegando ao extremo de as conseqüências (auto)destrutivas da cocaína aparecem escritas na tela. Apesar de acometida por algumas irregularidades do entrecho, a interpretação de Dwayne Johnson é muito melhor que a de veteranos como Tony Shalhoub (o desagradável Victor Kershaw), Peter Stormare (numa breve aparição como um corrompido médico urologista) e Ed Harris (como o pacato detetive aposentado Ed DuBois III), que, apesar das boas presenças, isoladamente respondem pelos aspectos menos interessantes do filme.

 Por mais que as câmeras lentas e as propensões ao ‘flashback’ da seqüência inicial, em que o instrutor de halterofilismo Lugo é atropelado por um automóvel quando é perseguido pela Polícia, o modo como o diretor Michael Bay se serve destes clichês formais do cinema de ação é extraordinário, assemelhando-se bastante aos estilos de Danny Boyle e Guy Ritchie: o filme é tão genialmente frenético em suas intercalações narrativas a partir das confissões dos personagens acerca de como chegaram àquele ponto culminante de suas vidas entrecruzadas (o depoimento da ‘stripper’ romena vivida por Bar Paly, neste aspecto, é fundamental) que até mesmo as derrapadas rítmicas casuais – que visam a confirmar justamente que o cineasta que está no comando é o mesmo de superproduções decepcionantes como “Pearl Harbor” (2001) e “A Ilha” (2005) – soam válidas e bem-acopladas à mixórdia de gêneros em que o filme investe.

 Afinal de contas, malgrado o sobejo de seqüências de ação, das esperadas explosões de veículos, das inúmeras colisões automobilísticas e das operações policiais bem-sucedidas (mais pelas falhas incríveis dos criminosos que pela habilitante dos vigilantes da lei, o que é um diferencial louvável), “Sem Dor, Sem Ganho” é, sobretudo, uma ácida comédia de costumes, que ridiculariza impiedosamente aqueles que sucumbem às formulas administrativas de sucesso apregoadas pelo irritante Johnny Wu (Ken Joeng). Não seriam as vergonhosas palestras de auto-ajuda mostradas no filme pouco mais que uma exacerbação dos delírios evasivos que fizeram com que Hollywood se tornasse a “fábrica de sonhos” por que se tornou conhecida ao longo das décadas? O próprio Daniel Lugo confirma isto cinicamente desde a sua acachapante entrada em cena, flexionando-se no topo de um monumento pictórico à boa forma física.

 Somados aos magistrais desempenhos dos roteiristas, do diretor e do elenco, os demais atributos técnicos deste filme devem ser também entusiasticamente laureados: a direção fotográfica de Ben Seresin é absolutamente primorosa, chegando ao fastígio de citar enquadramentos antológicos de outros filmes hollywoodianos; a montagem de Thomas A. Muldoon e Joel Negron (parceiros habituais nos últimos filmes do diretor) é exitosa na obtenção dos efeitos de frenesi exigidos em todas as produções baynianas; e a trilha musical de Steve Jablonsky (também freqüente nos filmes de Michael Bay) é muito boa tanto nas cenas de tensão quanto naquelas de alívio cômico/sarcástico.

Porém, o brilhantismo da seleção de canções merece um elogio à parte: mancomunar, num mesmo filme, canções interpretadas por artistas tão díspares quanto Coolio (“Gangsta’s Paradise”, que reaparece coerentemente durante os créditos finais, quando imagens dos verdadeiros criminosos são mostradas), C + C Music Factory (“Gonna Make You Sweat”, que tudo a ver com a ambientação ‘fitness’ do filme) e Bon Jovi (“Blaze of Glory”, magnificamente executada num momento inesperado) é algo que corresponde a um dos mais aplaudíveis tirocínios de versatilidade cancional deste início de século XXI! A hilária e consistente coadjuvação de Rebel Wilson, como a enfermeira Robin, também é primorosa, sendo ela a responsável por alguns dos diálogos mais engraçados do filme (vide a brincadeira com o atropelamento que vitimou o seu pai racista, pronunciada durante o discurso matrimonial).

Ao final da sessão, é impossível não sair empolgado e consciente da própria estultice espectatorial, tamanha a assunção enredística no que tange à configuração de seu público-alvo generalizado e internacional. Pena que saibamos de antemão que o próximo filme de Michael Bay seja o dispensável “Transformers: A Era da Extinção” (programado para ser lançado em 2014), para o qual ele fez o desfavor de incluir o desenvolto Mark Wahlberg no elenco.

Conforme ficou evidente em cada filigrana fílmica do ótimo “Sem Dor, Sem Ganho”, este execrável representante da ideologia monetifágica do cinema norte-americano não deixou de ser quem ele é por um instante: ele reproduz e zomba propositalmente da malevolência de suas megaproduções... É uma pena constatar tamanho desperdício manipulatório de agilidade e – quem diria? – talento!

 Wesley Pereira de Castro.

Nenhum comentário: