domingo, 16 de fevereiro de 2014

QUANDO EU ERA VIVO (Brasil, 2014). Direção: Marco Dutra.

Apesar de ter realizado apenas dois longas-metragens [sendo o primeiro deles, “Trabalhar Cansa” (2011), co-dirigido por Juliana Rojas], Marco Dutra já é celebrado pelos críticos como um dos mais capacitados para explorar, no cinema brasileiro contemporâneo, as derivações combinatórias do horror enquanto macro-gênero. Não obstante o filme anterior ser um absorvente drama sobre as complicações (des)empregatícias de uma típica família de classe média, havia uma pujança sobrenatural circundando os personagens que, se não chega a desencadear um clímax sanguinolento, é evidenciada em seqüências impregnadas de suspense e claustrofobia ergonômica.

No recente “Quando Eu Era Vivo” (2014), tal pujança é explicitada desde o título, provavelmente adaptado de um dos diálogos contidos no livro em que fora baseado, “A Arte de Produzir Efeito Sem Causa”, de Lourenço Mutarelli, que faz uma breve aparição como um motorista. Brilhantemente roteirizado pelo próprio diretor, ao lado de Gabriela Amaral Almeida, este filme possui uma estrutura narrativa mais contida que a obra anterior, visto que se passa quase integralmente no interior de um apartamento, gradualmente convertido num tugúrio anacrônico.

Apesar de a trama se desenrolar em junho de 2013, um videocassete e uma radiola são os objetos eletrônicos mais utilizados pelo protagonista, em seu afã por ressuscitar as interações familiares que gozara na década de 1980. Nesse sentido, a execução de “Pertinho de Você”, na voz de Elizângela, assume uma pitoresca conotação emotivo-epocal, pois a letra desta canção corresponde aos anseios de emulação materna levados a cabo pelo personagem principal.

A relevância desempenhada por esta canção na trama não é isolada: além de ser um dos compositores da ótima trilha musical (em colaboração com os irmãos Guilherme e Gustavo Barbato), o diretor Marco Dutra soube tirar excelente proveito multi-interpretativo da cantora Sandy Leah, que não apenas tem um desempenho crível e surpreendente como contribui para a efetividade de diversas situações, visto que o fato de a sua personagem Bruna ser uma estudante de Música intensifica o impacto assombroso da suave partitura deixada pela falecida pianista Olga (Helena Albergaria) como legado para os seus filhos.

Obviamente calcada na trilha sonora de “O Bebê de Rosemary” (1968, de Roman Polanski), tal partitura escrita para ser cantada por duas vozes é grandiloqüentemente convertida em hino satanista na cena final, quando as vozes de Sandy Leah e Marat Descartes unem-se num crescendo de emoção e evocação, culminando na incorporação demoníaca do patriarca José Matos (Antônio Fagundes, extraordinário). Mas, antes disso, Sandy Leah já havia seduzido os personagens e espectadores quando apresenta uma composição dançante em inglês ou quando cantarola a letra que improvisa numa aula, em que falava sobre um “hóspede intermitente, que nunca leva de volta aquilo que traz”...

 Além do admirável desempenho de Sandy Leah e do completo despojamento de Antônio Fagundes em relação aos seus cacoetes telenovelescos, vale destacar as boas participações de Gilda Nomacce como a espirituosa e fetichista vizinha Miranda, e de Tuna Dwek como Lurdinha, a namorada do pai do protagonista, subitamente espancada por seu potencial enteado numa seqüência de forte impacto. Kiko Bertholini, por sua vez, está apenas mediano como o irmão psiquiatricamente enclausurado Pedro (interpretado na infância por um inspirado Marc Libeskind), enquanto Marat Descartes decepciona desde a entrada em cena, pois sua aparência física forçadamente jovial e a sua afetação actancial demonstram-se inadequadas enquanto sustentáculos óbvios para a evidência da instabilidade emocional do recém-divorciado José Matos Júnior.

Malgrado ele ser um primoroso ator, tendo encarnado sutis vivificações em “Os Inquilinos” (2010, de Sérgio Bianchi) e no já citado “Trabalhar Cansa”, aqui a sua personificação soa continuamente deslocada, estereotipando a exigência por inadequação situacional que o seu perturbado personagem exigia: a cena em que ele se masturba enquanto observa Bruna se banhar através de um basculante é bem-feita (apesar dos gemidos excessivos), mas os instantes em que ele refuta as preocupações do pai com a sua saúde soam iracundamente histriônicos.

 Deveras primoroso em seus aspectos roteirísticos, musicais e directivos, “Quando Eu Era Vivo” beneficia-se também da impecável direção fotográfica de Ivo Lopes Araújo, que se mancomuna magistralmente com a arrebatadora direção de arte. Se os exageros inconvincentes de Marat Descartes são relativamente prejudiciais, a contribuição não-creditada deste eficiente ator como o responsável pelos gritos do mendigo enlouquecido que são ouvidos desde o início e que se confundem com os berros ecoados no manicômio deve ser prontamente elogiada.

Apesar dos eventuais defeitos compositivos, este filme é plenamente fecundo na instauração do pavor espectatorial, inclusive na acertadíssima (e inusitada) opção por incluir nos créditos finais o anagrama satânico que Júnior tenta – e consegue, graças ao irmão enlouquecido – decifrar. Ao sabermos que Marco Dutra voltará a trabalhar com a co-diretora Juliana Rojas (que, aqui, exerce a função de montadora) num projeto nomeado “As Boas Maneiras”, sobre uma mulher que engravida de um lobisomem, podemos fazer coro elogioso junto aos críticos que celebram os seus méritos suspensivos e laurear a decisão de continuar investindo em temas fantásticos.

Conforme constatamos em ambos os longas-metragens que ele realizou, o que mais salta aos olhos (e ouvidos) é uma minuciosa atenção aos elementos dramatúrgicos dos enredos, que partem de situações atemorizantes gerais para análises vigorosas e centradas da esquizofrenia inerente ao capitalismo hodierno. Marco Dutra é um autor brasileiro de cinema, portanto!

Wesley Pereira de Castro.

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