quarta-feira, 12 de novembro de 2014

TIM MAIA (Brasil, 2014). Diretor: Mauro Lima.

“A moral é a regra de um jogo em que todos trapaceiam. Mas, para fazer isso, tem que ter moral”: é mais ou menos dessa forma que a instância narrativa deste filme – roteiristicamente inspirado na biografia “Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia”, de Nelson Mota – justifica a repulsa súbita do protagonista em relação à doutrina da Cultura Racional, que defendera tão energicamente em determinada fase de sua carreira e que engendrou as obras-primas musicais lançadas entre 1975 e 1976.

O mote para o abandono da crença no ‘Universo em Desencanto’ foi a constatação de que o líder espiritual que Tim Maia conheceu agia de forma corrupta, o que, no filme, encontra eco visual na experiência marcante da infância do personagem, que testemunha um ato de pedofilia praticado por um pároco. Não por acaso, este é o primeiro evento biográfico elementar narrado pela voz de Cauã Reymond, depois que os dados sobre o nascimento de Sebastião Rodrigues Maia, décimo oitavo filho de uma humilde família carioca, são anunciados. Ou seja, a baliza hipócrita no seio de agrupamentos religiosos parece ser uma constante no percurso de vida do personagem real, o que condiciona as suas práticas subversoras, conforme exaltado pelo tom jocoso e condescendente do narrador.

Isto implica na dedução de que os comportamentos irascíveis do cantor e compositor que intitula esta cinebiografia advieram de sua descrença institucional (matizada pelo desleixo em relação à família, principalmente em sua fase nos EUA), o que rendia extraordinários resultados em suas pesquisas musicais mas desagradáveis conseqüências em sua vida pessoal, a ponto de ele questionar repetidamente a renitência de algo errado em sua personalidade, que afastava as pessoas ao seu redor.

O que isso tem de relevante nas escolhas factuais que pontuam a narração – que, apesar de ampla, é marcada pelas omissões? Que, para além das ambições pessoais do músico, o que está em voga são as obsessões temáticas do realizador Mauro Lima, que reutiliza muitos dos motes que adotara no anterior “Meu Nome Não é Johnny” (2008). Vale acrescentar que o cineasta também é responsável pelo roteiro (ao lado da adaptadora Antônia Pellegrino) e pela música original do filme (ao lado de Berna Ceppas).


Se, no filme anterior, o que se destacava era a trajetória moralmente dúbia de um típico rapaz de classe média que se torna um traficante internacional de drogas, neste filme mais recente, o que salta aos olhos é a autoconsciência do imenso talento do protagonista, que, em razão disto, age de maneira prepotente em relação a várias pessoas, imergindo em envolvimentos com substâncias alucinógenas ilegais e desentendimentos amorosos muito similares aos que abundaram na produção previamente mencionada. Neste sentido, a seqüência de créditos iniciais – que intercala o instante em que o jovem Tim Maia se frustra com o ensaio da banda juvenil Os Tijucanos do Ritmo e destrói o palco da paróquia onde se apresentava e o momento posterior em que ele abandona um concerto por causa da ausência de ar-condicionado, ao som de “Sossego” – é muito elucidativa, antecipando o quanto a personificação de Babu Santana é brilhante, tanto no que tange à similaridade física (e vocal) com o artista quanto no preciosismo imitativo de seus gestos e chistes impertinentes.

 Noutras palavras: ainda que a interpretação de Robson Nunes não seja tão primorosa, tanto ele quanto o referido Babu Santana estão ótimos ao reconstituírem os trejeitos e cacoetes deste imponente partícipe da história musical brasileira, que, como bem sintetizou um dos personagens, tinha em si mesmo o seu maior inimigo. O pendor autodestrutivo do personagem, aliás, foi muitíssimo bem sintetizado na figura de linguagem dos “empréstimos exorbitantes de serotonina”, que aparece como glosa à sua boêmia passagem pela cidade de Londres, na Inglaterra, onde ele espancara a sua esposa (Alinne Moraes, cônjuge do diretor, apenas correta) pela primeira vez. E, se o texto da narração impressiona pelas maravilhosas construções frasais (quando menciona “os calos na alma” que atormentam o personagem, por exemplo), quiçá oriundas do livro original de Nelson Motta, ela soçobra por causa da fraca interpretação de Cauã Reymond, um dos defeitos mais evidentes do filme, ao lado de sua eventual higienização de caráter (em dado momento, Tim Maia é descrito como “um homem que, por detrás de sua carcaça dura de rinoceronte, guarda um coração mole e agigantado”) e da reescritura oportunista de momentos importantes da era ditatorial no Brasil, em que a TV Globo aparece como noticiadora imparcial.

Dentre as omissões mais marcantes e/ou suspeitosas do roteiro, destacam-se a obliteração de comentários sobre o relacionamento entre Tim Maia e seus numerosos irmãos (incluindo a ausência de qualquer menção ao seu sobrinho, o também músico Ed Motta) e explicações mais detalhadas sobre os rompimentos com os amigos e amantes que lhes cercavam – sendo fato conhecido que os personagens interpretados por Cauã Reymond e Alinne Moraes são condensações propositais de mais de uma pessoa, em cada um dos casos. A seleção de canções no filme é deveras apropriada, resumindo cada fase da carreira do cineasta com perspicácia vendável, sendo muito melhor apreciada por quem não conhece a fundo a sua vasta discografia. Se, por um lado, a não execução da chavonada “Vale Tudo” desperta curiosidade, a adoção acertada de clássicos como “Cristina”, “Jurema”, “Azul da Cor do Mar”, “A Festa de Santos Reis”, “Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar)” e “Imunização Racional” demonstra o quanto a genialidade (auto)proclamada do artista era evidente, sendo emocionante o ‘flashback’ que permite que a canção romântica “Você” seja ouvida durante os créditos finais.

 Este ‘flashback’, entretanto, traz à tona outro dos piores defeitos do filme: a má atuação caricata de George Sauma como Roberto Carlos, numa construção estereotípica que, com certeza, deve ter envergonhado o artista representado. Por sua vez, Luís Lobianco está muito eficiente em sua vivificação do cafajeste Carlos Imperial, ainda que percebamos inúmeros vícios interpretativos de sua contribuição cômica ao programa “Porta dos Fundos”. E a breve aparição de Mallu Magalhães como Nara Leão é digna de elogios: além de estar linda, ela canta muitíssimo bem!

Identificadas as frustrações inerentes ao subgênero biográfico, cabe adicionar ao inventário de problemas deste filme a sua conformação técnica excessivamente atrelada à linguagem televisiva, sendo a rápida montagem entremeada por efeitos de câmera lenta que demonstram o quanto o diretor é influenciado pelo estilo tarantiniano, o que nem sempre funciona, principalmente na seqüência em que Tim Maia atira, furioso, um punhado de pães doces contra o automóvel de Carlos Imperial ou na cena em que ele cantarola “Adeus (Cinco Letras que Choram)”, de Silvino Neto, diante do cadáver de seu pai.

Dizendo de outra forma: se o verdadeiro Tim Maia exuberava por conta de suas invenções musicais e da personalidade intensa, a sua versão fílmica chega a irritar (e parecer inverossímil) em razão do sobejo de piadas, anacronismos e frases feitas, como quando ele menciona o filme “Janaína, a Virgem Proibida” (1972, de Olivier Perroy), antes mesmo de lançar o primeiro disco, homônimo, em 1970. Em mais de uma seqüência, Tim Maia aparece flertando com mulheres, de maneira excessivamente autoconfiante, até que, quando abraça um de seus amigos, explica, de maneira sarcástica, que “gordo, quando beija, não penetra”.

 Liberdades cômicas à parte, é mais ou menos assim que o filme se estabelece enquanto produto cinematográfico: apropria-se narrativamente de um magistral personagem, reconstitui cuidadosamente diversos períodos de sua vida, pretende inseri-lo na história recente do País e, ao final, fica apenas na superfície, apresentando-nos uma obra asséptica, formalmente desengonçada e moralmente indefinida. Mas, pela caracterização mui esforçada de Babu Santana, pelo bom aproveitamento rítmico de seus 141 minutos de duração, e pela ótima trilha musical, o filme não é de todo desprezível, ainda que também não se esforce para não ser esquecível. Ao contrário do lendário Tim Maia (1942-1998), que merecia uma homenagem mais corajosa e menos omissa.

Wesley Pereira de Castro.

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