quarta-feira, 19 de novembro de 2014

VENTOS DE AGOSTO (Brasil, 2014). Direção: Gabriel Mascaro.

Se, no documentário “Um Lugar ao Sol” (2009), a interessantíssima proposta temática é prejudicada pela inépcia interpelativa do diretor, em “Doméstica” (2012), Gabriel Mascaro resolve este problema muitíssimo bem, transferindo para outrem a responsabilidade pela captação das imagens e dos germens ideológicos, cabendo a ele a função de concatenador discursivo, magistralmente executada.

 Tendo em seu currículo recente, um filme que não cumpre adequadamente o que constava de seu projeto e outro que o transcende – além do proveitoso curta-metragem “A Onda Traz, O Vento Leva” (2012), que antecipa algumas das opções estéticas adotadas posteriormente [principalmente no que diz respeito à montagem compassada de Eduardo Serrano (que trabalha ao lado de Ricardo Pretti no filme mais recente)] – Gabriel Mascaro instaura uma espécie de cisão metalingüística na narrativa de “Ventos de Agosto” (2014), sua estréia no terreno ficcional, cisão esta que é representada por sua própria participação como ator, interpretando um técnico de som que, ao ser vitimado por uma tempestade, semeia a discordância entre os personagens que habitam uma colônia de pescadores na cidade litorânea de Porto de Pedras, em Alagoas.

Ou seja, se o filme inicia-se como um registro idílico do romance entre uma transportadora de côcos que sonha em ser tatuadora e um mergulhador informal que também transporta côcos, gradualmente ele é impregnado de elementos suspensivos, quando ossos de cadáveres enterrados num cemitério praiano começam a aparecer no fundo do mar e, finalmente, um corpo com o rosto mastigado por peixes é encontrado pelo protagonista, o que ocasiona diversos contratempos, já que, não importa a quantidade de vezes que ele telefona para uma delegacia de polícia, ninguém aparece para identificar o corpo.

Os créditos iniciais de “Ventos de Agosto” são bastante parcimoniosos, limitando-se à menção dos nomes dos atores Dandara de Morais e Geová Manoel dos Santos. Associando-se tais informações exíguas às magníficas imagens de divulgação do filme, que mostravam o casal deitado despido sobre uma enorme porção de côcos, é quase imediato o depósito de expectativas românticas por parte do espectador em relação às afinidades eróticas deste casal, confirmadas logo em seguida.

Entre uma e outra interação dos namorados, acompanhamos os relacionamentos individualizados de cada um deles com seus parentes: ela, vivendo com uma senhora bastante idosa, que sente saudades do irmão desaparecido; ele, convivendo com o pai viúvo e ranzinza, que reluta em demonstrar afetividade em relação às pessoas falecidas. De repente, enquanto ainda estávamos concatenando os indícios do cotidiano de cada um destes personagens, aparece o técnico de som susomencionado, interessado na gravação dos sons eólicos do local, sendo a sua aparição conseguinte a uma reportagem telejornalística sobre as alterações na velocidade dos ventos no litoral nordestino.

Obviamente, a presença do técnico sonoro causa estranhamento entre os habitantes da região, o que é transportado para o registro fílmico e engendra uma seqüência de caráter duvidoso, quando este técnico interpela uma mulher magérrima que ouve uma canção brega [“Saudade Bandida”, de Zezé di Camargo & Luciano] na porta de sua casa e, subitamente, passa a gravar a mesma música que ouvimos na diegese, sendo patente uma espécie de juízo de valor acerca do que estava sendo executado. É a partir daí que o filme quase degringola...

A despeito de o filme manter-se aprazível após a sua mudança de tom genérico, a narrativa evasiva decresce em charme com a insistência na exibição das mudanças de comportamento do personagem Jeison no que tange aos cuidados com o cadáver. Enquanto espera o surgimento da polícia – que não se confirma, por mais que ele se esforce em explicar o seu endereço inusual – Jeison lava o corpo progressivamente decomposto com uma esponja ensaboada, ouve uma canção de amor clássica [“Baby, Can I Hold You?”, de Tracy Chapman] ao lado do mesmo, numa caixa de som altissonante, e, como derradeiro ato, larga-o na porta de uma delegacia alagoana, após travar um diálogo humorístico com alguém que, supostamente, fora “preso por engano” e abandonado no local. Tudo isso faz com que o filme se distancie do fulgor erotógeno anunciado em suas exuberantes imagens iniciais, não obstante a derradeira seqüência do filme (Jeison erigindo um bloqueio pétreo frente ao cemitério praiano) ser belíssima e repleta de significados continuativos.

 Feitas as devidas ressalvas, é necessário elogiar demoradamente a extraordinária direção de fotografia do filme – a cargo do próprio diretor Gabriel Mascaro – que obtém enquadramentos maravilhosos do coqueiral e extrai o máximo de sensualidade rústica dos esbeltos e desejosos atores. A seqüência em que Dandara de Morais derrama Coca-Cola sobre seu corpo, ao som de uma canção ‘punk’, enquanto seu namorado caça moluscos cefalópodes no fundo do mar é digna de antologia, de tão preciosa que é, sendo sutilmente repetida a posteriori, desta vez contando com a exibição da nudez completa da atriz, contemplada com avidez pela câmera.

 Ainda que, no geral, o filme seja tão inconstante quanto o vento em seu ritmo narrativo, o primor com que o diretor capta a fulgência dos corpos humanos e da natureza faz com que ele se alinhe ao que de mais interessante vem sendo produzido na conjuntura cinematográfica brasileira contemporânea, não por acaso mui focalizada no Estado de Pernambuco. Visualmente, “Ventos de Agosto” é inebriante!

 Wesley Pereira de Castro.

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