sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Cannes 2021: STILLWATER (2021, de Tom McCarthy)


Num determinado momento deste filme, a adorável garotinha Maya (Lilou Siauvaud), ao ser posta na cama pelo rústico porém gentil Bill Baker (Matt Damon), diz que ele é o seu "norte-americano favorito". Parece um instante trivial na construção de afinidade entre ambos os personagens, mas também serve como um ambíguo testemunho do filme em relação ao seu protagonista: por mais comportamentalmente equivocado que ele seja, o roteiro fica ao seu lado, defende-o, insiste em torná-lo empático. O personagem retribui: esforça-se para ser carinhoso, aprende poucas palavras em francês e admite não ter votado nas eleições presidenciais de 2016. Não nega que é apoiador de Donald Trump quando é interrogado: o motivo de ele não ter comparecido às eleições é por ser um ex-presidiário que, como tal, perdeu este direito democrático. Por isso, ele consegue apenas subempregos, ao lado de imigrantes e pessoas tão broncas como ele. Acha normal ouvir (e ignorar) comentários racistas: "convivo com esse tipo de gente o tempo inteiro", grita quando questionado. E não entende por que sua interlocutora fica tão chateada ao ouvir isso... 


A descrição deste protagonista parece estender-se ao filme como um todo: não que a obra seja ostensivamente trumpista, mas filia-se a uma tradição osmótica da direita estadunidense. Aquela que insiste em orar de mãos dadas em todas as refeições, mas não hesita em seqüestrar e aprisionar um rapaz num porão, em defesa da inocência da filha aprisionada por um crime que (supostamente) não cometeu. Sem aderir ao excesso de indulgência quanto às explosões de raiva do protagonista - ele é lembrado o tempo inteiro que possui incontornáveis defeitos relacionais - o filme perdoa os "acidentes" investigativos que desembocam naquele amargo desfecho: "tudo parece diferente para mim agora", diz um caipira que contempla o lugar onde passou quase toda a sua vida. Num certo sentido, é corajoso que o roteiro assuma essa postura: afinal, ele parece enfrentar o determinismo que marca a consolidação dos valores norte-americanos. Não por acaso, a autodeclaração como "cidadão de bem" indica que a pessoa em pauta é preconceituosa - tanto lá quanto aqui!


Diante da aflição tradicional legada aos homens desta sociedade corrupta e largamente estabelecida, cabe às mulheres os papéis mais complexos: Abigail Breslin interpreta com muita sensibilidade uma rapariga lésbica, acusada de assassinar a sua namorada. Depois de cinco anos presa, ela escreve uma carta para sua advogada, que recusa incutir-lhe novas esperanças, o que faz com que seu pai realize uma violenta investigação por si próprio. Segue-se uma série de eventos um tanto inverossímeis, que permite que Bill conheça Virginie (Camille Cottin) e encare a possibilidade de um recomeço na França. Arruma um emprego como demolidor na construção civil, e ouve de sua filha uma explicação esforçadamente consoladora para a lógica árabe do 'maktoub'. Quando ele está prestes a aceitar essa idéia de Destino, algo acontece, e mergulha o filme numa delicada lida com os crimes "cometidos em nome da família". A culpa parece não permear este premissa, ainda que o sentimento de perda, sim. Uma tatuagem, uma visita ao túmulo de quem se ama e a audição de uma canção romântica ["Help Me Make It Through the Night", na voz de Sammi Smith] servem como alentos, na dura tarefa de prosseguir com a vida. Estes são apanágios da Direita política, não é?


Wesley Pereira de Castro. 

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