segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

LEVADOS PELAS MARÉS (2024, de Jia Zhang-Ke)

Se, numa definição rasteira - e não de todo imprecisa -, um cineasta autoral está sempre realizando e aprimorando o mesmo filme, o diretor chinês Jia Zhang-Ke parte deste pressuposto para rebater, de maneira brilhante, a onda nostálgica que invade parte considerável da produção cinematográfica contemporânea. Utilizando retalhos de filmes anteriores e coligando-os com situações filmadas durante da pandemia da COVID-19, este realizador serve-se de intérpretes recorrentes para trazer à tona algo que o perturba desde os seus longas-metragens iniciais: as conseqüências anti-comunicacionais da soterramento tecnológico, numa China em permanente transformação. 


Obviamente, esta não é a única temática que coliga os seus filmes, sobremaneira politizados, mas é algo que se manifesta com freqüência, visto que a pletora de telefones celulares, computadores e até mesmo robôs não facilita os contatos afetuosos entre pessoas que se (re)encontram nas ruas. Numa seqüência imediatamente antológica, um aparato robótico, diante de uma mulher cujas expressões entristecidas estão cobertas por uma máscara cirúrgica, cita Madre Teresa de Calcutá [1910-1997]: "quando ama-se até doer, a dor deixa de existir, restando apenas o amor". Quem ouve isso é a caixa de supermercado Qiaoqiao (Zhao Tao, esposa do diretor), que acabara de reencontrar, após muitos anos, o seu amante Guo Bin (Li Zhubin), que a evitara anteriormente, de maneira rude. 


Reaproveitando principalmente imagens de obras protagonizadas por esta mesma dupla de atores ["Prazeres Desconhecidos (2002) e "Em Busca da Vida" (2006)], Jia Zhang-Ke elabora um novo enredo, que, como de praxe, analisa os efeitos sociais da abertura mercadológica da China à perspectiva capitalista internacional. No 'rock' de abertura, o refrão diz que "um incêndio florestal não conseguirá destruir todas as ervas daninhas", o que acontece simbolicamente: Qiaoqiao não fala ao longo do filme (exceto por um grito derradeiro) e esforça-se para restabelecer contato com Bin, que chega a se envolver com atividades escusas do gângster homossexual vivido por Pan Jianlin. Este, em determinado momento, é hospitalizado, de modo que seus asseclas direcionarão os lucros para a venda de anúncios publicitários, estimulados por um idoso que canta e dança, de maneira espalhafatosa, no aplicativo TikTok. O olhar do realizador está longe de ser condescendente em relação àquilo que é trazido pelas redes sociais... 


Das cenas iniciais, em que Qiaoqiao é hostilizada nas ruas de uma cidade em ruínas, até as imagens próximas ao desfecho, no supermercado em que ela trabalha, "Levados pelas Marés" (2024), como era de se esperar, utiliza diferentes tipos de filmagem, na estrutura de filme-colagem da qual ele se serve, em que a musicalidade surge como elemento concatenador. Por mais que um líder comunitário esforce-se para convencer a população local de que as óperas ainda são o principal gênero ouvido pelos moradores, o que percebe-se, na prática, é a invasão de ritmos e letras anglofílicas, como "Butterfly", conhecida mundialmente a partir da dupla sueca Smile.dk, que é executada em mais de um momento. Tal qual acontece com as regiões inundadas por uma represa, nas cenas reaproveitadas do longa-metragem de 2006, o amor entre Qiaoqiao e Bin é naufragado, e não sobrevive ao sobejo de luzes e ruídos urbanos. Eis uma das mais poderosas reflexões fílmicas sobre a contemporaneidade, afinal!



Wesley Pereira de Castro.