Dentre as inúmeras reviravoltas contidas no enredo deste documentário, uma que chama a atenção, de imediato, é o motivo que teria levado um cineasta belga a se interessar por um protesto de músicos estadunidenses, em defesa de um país africano. Quando se lembra que o país em questão, a República Democrática do Congo (conhecido como Zaire, até 1997) foi violentamente colonizado pela Bélgica, tudo é explicado: a abordagem do realizador evita qualquer tipo de condescendência em relação aos crimes coloniais cometidos por seu país-natal, de modo que a envergadura política da obra é excelente.
Estruturada a partir da menção a um ditado popular que apregoa que "estudar História é como sentar num gato", no sentido de que as descobertas, muitas delas surpreendentes, "vêm acompanhadas de cicatrizes", a estupenda montagem deste filme - a cargo de Rik Chaubet - concatena as situações abordadas através de manchetes de jornais, excertos de livros e/ou diários e canções maravilhosas de 'jazz', correspondendo a uma versão cinematográfica de "A Era dos Extremos", de Eric Hobsbawn, centrada numa relação específica entre eventos: a independência do país supracitado e o assassinato do primeiro-ministro Patrice Lumumba [1925-1961], encomendado por agentes vinculados à ONU (Organização das Nações Unidas).
No início, lemos algumas declarações polêmicas do ex-primeiro ministro soviético Nikita Khrushchev [1894-1971], que afirma não apreciar jazz e, por conta disso, desliga o rádio, sempre que se depara com o que ele classificou como "cacofonia". Porém, à medida que o filme avança, as participações deste político são assaz ressignificadas, visto que, por sua filiação anti-capitalista, ele assume o apoio quanto à consolidação dos Estados Unidos da África, que seria uma comunhão dos países recém-emancipados neste continente. Os interesses econômicos de exploração dos colonizadores não permitirão que isso aconteça, afinal: há muito urânio disponível na República Democrática do Congo, e isto é essencial para a fabricação de bombas atômicas.
Ao longo de duas horas e trinta minutos, acompanhamos várias apresentações musicais, declarações assertivas de depoentes como Malcolm X [1925-1965] e o protesto aludido, quando os músicos Abbey Lincoln e Max Roach invadem uma reunião da ONU, para conclamarem a opinião pública internacional acerca do que aconteceu a Patrice Lumumba - e que ainda permanecia impune. Há trechos de uma inspirada campanha presidencial, efetivada pelo trompetista Dizzy Gillepsie [1917-1993], em 1964, entremeando os eventos, bem como trechos literários de Aimé Cesaire e Frantz Fanon, entre outros, sendo que este último afirma que "se a África tem o formato de um revólver, a República Democrática do Congo é o seu gatilho". Pena que, desde a independência, ocorrida em 30 de junho de 1960, muitos conflitos, financiados por países poderosos, assolam o país. De maneira conclamante, o filme contribui para um necessário fulgor anticolonialista: incrível!
Wesley Pereira de Castro.
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