Não obstante o sobrenome célebre, o cineasta Kiyoshi não possui nenhum parentesco com seu compatriota Akira: enquanto o mais velho, já falecido, destacava-se pela renovação de temas clássicos da iconografia nipônica (incluindo filmes sobre samurais e adaptações shakespeareanas), o mais jovem ousa misturar as convenções de gêneros internacionalmente consagrados, como o terror, o suspense e a ficção científica, através de pontos de partida afetivos e sumamente dramáticos.
Sobremaneira prolifico, parte da filmografia deste realizador foi analisada no ótimo livro “A Revanche do Fantasma: mediunidade e ressentimento em Kiyoshi Kurosawa”, do pesquisador pernambucano Luiz Soares Júnior, cujo título é providencial no reconhecimento de um tema recorrente nas obras do cineasta japonês: o retorno de um “fantasma”, que exige reparação “ou, pelo contrário, permanece como evento-mater nunca devidamente reparável (…), a assombrar o resto do filme”. E é justamente o que acontece neste brilhante “Antes que Tudo Desapareça” (2017)!
A inaudita seqüência de abertura demonstra que estaremos diante de algo difícil de classificar, em termos convencionais: uma garota permanece de pé, frente a uma mulher ensagüentada, caída no chão, onde um peixe-dourado luta para respirar. Instantes depois, ela cambaleia por uma avenida movimentada, provocando um acidente de grandes proporções entre um automóvel e um caminhão. Seria mais um filme de terror, gênero no qual o diretor é especializado? No instante seguinte, porém, somos apresentados ao casal protagonista: ele, Shinji (Ryuhei Matsuda), é um homem que estava desaparecido, e que surge num hospital, desorientado e com sintomas que se assemelham ao Mal de Alzheimer; ela, Narumi (Masami Nagasawa), é a sua esposa apaixonada, porém ainda entristecida por causa de uma traição recente. Mesmo chateada, ela aceita cuidar dele e, pouco a pouco, descobre que, em verdade, o corpo de seu marido foi possuído por uma entidade alienígena…
Em paralelo a essa trama, conhecemos o jornalista Sakurai (Hiroki Hasegawa), que é designado para investigar o esquartejamento da mulher ensangüentada do início. É quando ele conhece um estranho garoto, Amano (Mahiro Takasugi), que diz ser também alienígena e pede que ele seja o seu guia terreno. A intenção de Amano é encontrar a garota Akira (Yuri Tsunematsu), uma terceira alienígena, visto que todos eles, em comunhão, estão preparando uma invasão à Terra.
Se, de um lado, esta narrativa fantasiosa permite situações prenhes de efeitos visuais e ação, com tiroteios sobremaneira inesperados, do outro, testemunhamos uma reconciliação amplificada entre Narumi e seu marido, sendo que, por extensão, ela também apaixonar-se-á pelo extraterrestre que usurpou as suas memórias. Shinji explica-lhe, inclusive, que os seus correligionários espaciais estão esforçando-se para compreender os conceitos humanos, sendo insuficientes as explicações através de palavras. Neste sentido, tanto ele quanto os dois adolescentes extraem memórias vitais dos seres humanos, no afã por assimilar conceitos complicados como Família, Propriedade, Trabalho e Amor. Este último será responsável pelo caráter de epifania que justifica o título…
Nas duas horas e nove minutos de duração deste filme, as situações mais inesperadas acontecem, incluindo um plano-seqüência genial, num hospital, em que se difunde a idéia de que o país está afligido por um vírus mortal. E, enquanto os motes de ficção científica são entulhados, o extraordinário roteiro (co-escrito por Sachiko Tanaka, colaboradora habitual do diretor) abre espaço para abordar, de maneira muito sensível, temas como a reconciliação marital e o assédio profissional, a partir das experiências vivenciadas pela ilustradora Narumi. A cena em que ela e seu marido entram numa igreja, porque ouvem a canção que tocara em sua cerimônia de casamento, e deparam-se com um padre que recita os famosos versículos do décimo terceiro capítulo do primeiro livro bíblico de Coríntios, sobre o amor, é absolutamente magistral!
Por motivos óbvios, adentrar a sessão sem conhecer mais detalhes sobre o seu enredo, além do que já foi revelado nesta resenha, faz com que a experiência de imersão neste filmaço seja ainda mais poderosa. Na variedade de propostas tramáticas que aborda, o diretor japonês consegue trazer, filme após filme, algo muito bem identificado pelo pesquisador Luiz Soares Júnior: em seus filmes, “nada desaparece: antes, transfigura-se vidente, subvertendo o cotidiano com prodígios infiltrados”. É o que se constata, de maneira explosiva, nos instantes em que Narumi e Shinji contemplam os fenômenos celestes: num dos casos, ela pergunta se determinada movimentação de nuvens corresponde à invasão eminente, ao que ele responde, de maneira tão inexpressiva quanto contundente que “isso é apenas o pôr-do-sol”. Noutro instante, ainda mais poderoso, ele queda estupefato diante de algo, e exclama que “tudo está diferente”, ao que ela logo acrescenta: “nada mudou!”. Obra maestra, recomendamos de pé!
Wesley Pereira de Castro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário