A despeito de o Estado de Espírito Santo ter uma tradição cinematográfica apenas tangencial e de o diretor Diego Zon ser estreante em longas-metragens, este filme possui um forte caráter metonímico, no que tange à descrição dos movimentos migratórios oriundos de tragédias anunciadas, porque induzidas pela ação destrutiva do Capitalismo: num momento inicial, Yara (Veronica Gomes) e Dingue (Danilo Andrade) se despedem. Ele resolve errar pelas regiões circunvizinhas daquela em que cresceu, antes de tudo ser inundado pela lama tóxica, enquanto ela insiste em permanecer e tentar sobreviver na poluição. Será difícil, entretanto: num lugar onde a água sempre foi abundante, tanto quanto as atividades pesqueiras, a variação potável deste recurso natural terá o seu preço hipertrofiado, convertendo-se em mercadoria de luxo.
Por mais intencionalmente dificultada que seja a identificação dos laços de parentesco ou vicinalidade entre os personagens, os motes denuncistas são francamente ostensivos. Graças à excelente fotografia de Renato Ogata, constatamos, numa magnífica tomada aérea, a extensão poluente que aflige o ambiente fluvial, enquanto, ao longo da projeção, diversas paisagens "choram": ouvimos sons de baleias ecoando nos cânions, por exemplo, enquanto pessoas desorientadas buscam algum refúgio para o auto-reconhecimento. Dingue, por exemplo, deparar-se-á, num funeral, com alguém que enfrentou as mesmas condições de seu pai, cujas características empregatícias são priorizadas em relação àquilo que o definia enquanto ser humano. Não por acaso, Silvério, o falecido em questão (interpretado por Antônio Pitanga), diz, numa lembrança: "o barulho de fechar é diferente do barulho de abrir". No caixão, ele é reduzido à constatação de uma mera despesa, para o seu insensível contratador...
Os diálogos são tão intensivamente literários, que chega a ser surpreendente quando, nos créditos, percebemos que o roteiro é de autoria do próprio diretor, que utiliza imagens de um curta-metragem seu ["Das Águas que Passam" (2016)] como se fosse um 'flashback' do personagem masculino, numa das várias emulações de pesadelo que ele protagoniza. Permeado pela lógica do realismo mágico, este filme confirma o que um turista diz no começo: "o que é real parece ficção, e a ficção parece realidade". A atmosfera dominante é a de uma distopia, em que as pessoas zanzam como sobreviventes. A seqüência sobre a exigüidade de vacinas é determinante, sobretudo quando uma enfermeira um tanto ríspida insiste que o material carregado por Dingue é inadequado para aquele ambiente. É quando percebemos que ele deambula com uma sacola rústica nas costas, que, somente no encontro definitivo com a sua irmã Alana (Eliane Correia), saberemos que se tratam das roupas do pai de ambos - morto, mas onipresente em seu legado de sofrimento, tal qual ocorreu com Silvério.
Repleto de momentos misteriosos e fascinantes - vide a situação em que, numa oficina eletrônica, uma canção executada num aparelho de som antigo enche de vida aquele cômodo ou quando, num ônibus, uma idosa assovia uma melodia assemelhada ao clássico "Born Free", composto por John Barry, antes de encetar um monólogo lamentoso -, "Margeado" (2025) possui citações imagéticas de obras de Abbas Kiarostami, Jia Zhang-Ke e Lav Diaz. O rigor discursivo é deveras similar ao dos artistas citados, numa produção ambiciosa e não concessiva que vai na contramão dos cacoetes narrativos do cinema brasileiro. O interior capixaba é registrado em sua imponência um tanto assombrosa, o que se sobressai a partir das intervenções do personagem Naim (Etien Khouri), que chama a atenção para as ações históricas da Natureza. Num determinado momento, ele explica para Dingue os efeitos de uma erosão milenar, deveras distinta da inundação que expulsa as pessoas de seu ambiente-natal. No desfecho, a esposa libanesa de Naim (Souraia Jurdi) nota que, no Brasil, as estações do ano obedecem a uma cadência diferente daquela percebida em seu país de origem: aqui, é como se tudo ocorresse ao mesmo tempo, sem demarcação, mais ou menos como os eventos deste filme, cuja potência está na lentidão. Se isso causa algum desconforto a espectadores despreparados, um diálogo do filme justificará a empreitada, ao dizer que o gosto amargo de uma erva é irrelevante, para quem deseja livrar-se de uma pneumonia. Estamos diante de um filme sumamente político, em que a progressão bolsonarista (e de seus congêneres partidários) é rejeitada pelo viés da organicidade, numa alegoria centrípeta e fadada a alguns fracassos relacionais. Para ser aplaudido de pé pela coragem!
Wesley Pereira de Castro.