segunda-feira, 27 de outubro de 2025

CINEMA KAWAKEB (2025, de Mahmoud al Massad)


 Em determinada seqüência deste filme, os funcionários do cinema titular, desativado desde a pandemia, são visitados por um turista europeu, que deseja adquirir alguns pôsteres de filmes. Como o estabelecimento fica localizado em Amã, capital da Jordânia, o turista pergunta sobre as obras jordanianas exibidas no local, mas o projetor diz que não há, visto que a quase totalidade da produção audiovisual daquele país é direcionada à televisão. Uma conversa quase circunstancial, mas que traz consigo uma pungente averiguação sobre as condições produtivas (e exibitórias) de uma conjuntura nacional mui particular...


O filme possui um subtítulo concernente a um manual de filmagem e, de fato, há vários capítulos, apresentando os componentes (narração, edição de som, efeitos visuais, etc.) da feitura cinematográfica, mas estes são acompanhados de clipes relacionados à I Guerra Mundial - numa sardônica explicação sobre como funciona a "busca por protagonistas" na elaboração de um roteiro - e ao estabelecimento do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, de maneira impositiva e desrespeitando os direitos de moradia da população palestina. Será uma tônica mantida até o final do documentário.


Ao mesmo tempo em que entrevista os funcionários do hotel e pede que eles realizem determinados movimentos de observação, quanto aos eventos vicinais, o diretor expõe ostensivamente os equipamentos de filmagem e apresenta diversas situações de bastidores, com vistas a acentuar o caráter político de seu discurso: os pronunciamentos com conotações genocidas de Golda Meir [1898-1978] e Benjamin Netanyahu, ambos primeiros-ministros de Israel, em épocas distintas, invadem a tela, defendendo atos belicosos que dizimam centenas de civis, sob a alegação de que estão dissolvendo "ninhos terroristas". Há um evidente ponto de vista compartilhado, portanto! 


Tanto quanto nos emocionamos perante a pauperização daquela sala de cinema - empoeirada, repleta de teias de aranha e servindo de abrigo para gatos de rua -, somos convencidos a demonstrar empatia pelos refugiados palestinos, dizimados e injustiçados ao longo de décadas. Quando um protesto urbano em defesa da abertura das fronteiras ocorre em Amã, o realizador pede que um dos funcionários observe os gritos de revolta, anunciando que ele está "acompanhando uma vitória". A palavra "FIM" aparece na tela, mas é logo substituída pela aplicação de outro procedimento de filmagem, que seria a existência de um "final alternativo", que culmina num acidente entre um caminhão e a lente da câmera. Eis um trabalho que não desvincula a cinefilia da filiação política. Magistral! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

JAMEX E O FIM DO MEDO (2025, de Ramon Coutinho)


Na seqüência de abertura, o pintor Jamex (Emanuel de Assis) passeia pela beira-mar, montado em sua bicicleta, cumprimentando vários transeuntes, alguns deles denotando que há algo de errado naquele cenário. De repente, ele cai e, em meio à multidão, alguém coloca uma chave numa de suas mãos. Este ponto de partida tramático, que cita diretamente UM CÃO ANDALUZ (1929, de Luis Buñuel), estabelece a atmosfera onírica do filme, que combina-se com a sua progressão psicodélica, intensificada a partir de cada encontro do protagonista com os moradores da radioativa cidade de Salvadolores... 


Ciente de que deve entregar um quadro para um misterioso cliente - conforme lido, num telegrama, pela invasiva mas bem-intencionada dona Neire (Neire de Oliveira Santana) -, Jamex põe seus óculos protetores e enfrenta as agruras contaminantes do ambiente fora de sua casa. Na esquina, um repórter alimenta a sanha midiática pela contagem de mortos negros, o que é denunciado por uma amiga de Jamex (Alana do Amor Divino), que consente em ser entrevistada, desde que denuncie os interesses malévolos do jornalismo sensacionalista. Primeira impressão: o roteiro deste filme concilia as lombras típicas do realizador com a sua perspicácia política, no que tange à exposição de algumas evidentes contradições sociais da capital baiana!


Decidido a entregar sua obra ao misterioso comprador, Jamex encontra personagens cada vez mais peculiares, como um homem apelidado Sunga (Ciro Garcez), que tenta roubar o seu quadro, alegando que "arte é para ser vista"; um taxista alucinado, que o conduz para a galeria onde estaria o Sr. Xinoda (Jacopo Casens); e um homem que finge-se de cego, enquanto o ajuda a percorrer uma zona contaminada. Dentre todos os encontros, o que mais encanta é aquele com a recepcionista da galeria, vivida por uma iluminada Laize Ricarte. O instante em que ela menciona o incômodo com uma passageira internacional de unhas enormes, que não sabia falar inglês, é hilário! 



Montado de maneira intencionalmente irregular, com vários quadros negros,  'flashes' invertidos ou repetidos e emulações da estética VHS, este filme faz com que o espectador experimente algo similar ao delírio proveniente de um colírio que acomete o protagonista, após a visita a um amigo. Porém, as reflexões que o enredo propõe são bastante maduras e politicamente urgentes, como quando, a fim de justificar o título, Jamex interroga um companheira (Iyá Boaventura), que sairá da cidade de Salvadolores, acerca do que ela sente medo. Como estavam ambos numa festa, ela estranha a conversa súbita, de cariz tão sério, o que funciona quase como uma autocrítica ao deslumbramento prolongado de artistas que desvinculam o surrealismo das problemáticas sociais. A intervenção envolvendo Gabriel, um entregador de aplicativo que passa, com sua motocicleta, no local onde estavam ocorrendo as filmagens é um excelente demonstrativo dos acertos contestatórios deste filme! 



Outro momento de intervenção quanto aos figurantes "espontâneos" do filme, quando um torcedor do time Bahia grita de empolgação, instaura uma interessante provocação involuntária na conjuntura distópica do roteiro, visto que, para andar nas ruas com alto teor radioativo, eram necessários óculos especiais. Como este homem está com os olhos nus, seria ele um ser infectado? As possibilidades de interpretação acerca dos detalhes desta produção mui original são variegadas e, ao final de sua jornada, depois de entregar o quadro ao Sr. Xinoda, Jamex é confrontado com a função desempenhada por sua produção artística: a quem serve? O filme responde afirmativamente, direcionando-se à nossa fruição simultaneamente intelectual, lisérgica e reivindicativa. "Jamex e o Fim do Medo" instiga-nos multi-sensorialmente, portanto! 



Wesley Pereira de Castro.