segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

VALOR SENTIMENTAL (2025, de Joachim Trier)


 No início do filme, a narração a cargo da atriz Bente Børsum - que compartilha as memórias impingidas na residência onde viveram os personagens - estabelece o tom bergmaniano da obra: conhecemos antecipadamente os traumas de guerra experimentados pela mãe do cineasta Gustav Borg (Stellan Skargård), que foi presa e torturada pelos nazistas e alguns anos depois, se suicidou. O hieratismo deste prólogo, entretanto, é rompido pela primeira aparição da personagem Nora (Renata Reinsve), adulta, que tem uma crise de ansiedade, pouco antes de entrar em cena, numa peça. A despeito da aflição associada às suas reações fóbicas, há um toque ácido de humor na seqüência, que culmina no tapa recebido por Nora, de um amante, depois que este recusa o seu pedido de transar nos bastidores, minutos antes de a peça começar. Em poucos instantes, um conflito de estilos é percebido: Joachim Trier deseja reverenciar os mestres escandinavos, mas já possui alçada para citar a si mesmo, estilisticamente, enquanto cineasta modernoso e sustentado por uma versátil trilha cancional... 



Como se ainda estivesse interpretando a sua ótima personagem em "A Pior Pessoa do Mundo" (2021), longa-metragem anterior do diretor, Renata Reinsve esforça-se para encontrar o tom emocional de sua personagem, num rompante metaligüístico que, neste caso, parece involuntário: ressentida, indecisa e sobremaneira rancorosa, Nora recusa terminantemente a aproximação com seu pai cineasta, alegando que ele estivera ausente quando ela mais precisou dele. Como tal, levanta-se da mesa no meio de uma sentença de Gustav, reclamando que "eles nunca conseguem conversar". Mas, conforme percebemos nesta e noutras cenas, é ela que não permite. 



Esmerando-se para organizar uma narrativa com mais de um ponto de vista, o roteiro apresenta-nos a duas ótimas personagens femininas, Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaaas), irmã de Nora, que não seguiu carreira artística, apesar de trabalhar num dos filmes de seu pai, quando criança; e Rachel Kemp (Elle Fanning), uma atriz estadunidense que emociona-se ao assistir a uma das obras de Gustav e, após uma longa conversa com ele, numa praia, aceita participar de seu novo filme, como protagonista, após a recusa de Nora. Isso implica em alterar o idioma original do roteiro (de norueguês para inglês), aceitar algumas exigências da produtora Netflix (o que concede a oportunidade para que o cineasta explicite o seu posicionamento contrário à lógica homogeneizadora dos serviços de 'streaming') e enfrentar a consciência de que o diretor e seus técnicos favoritos envelheceram e, por conseguinte, não compreendem algumas das condições produtivas contemporâneas. Ainda assim, Gustav trata os seus colaboradores com muita gentileza, o que nos leva a questionar as rudes alegações de Nora contra o seu pai: além de acusá-lo de estar permanentemente ausente, ela insinua que ele teve casos com as suas atrizes, enquanto ela própria enceta um relacionamento com um homem casado, por achar isto conveniente, já que não precisa aproximar-se afetivamente dele.



Se Nora é atravessada por inúmeras contradições e julgamentos morais, Agnes demonstra-se cada vez mais centrada, fazendo o inventário da mãe recém-falecida (onde é pronunciado o título do filme, num momento tragicômico, em que Nora quase quebra um vaso, fugindo de casa, para que seu pai não a encontre) e pesquisando sobre o passado antinazista de sua mãe, numa biblioteca municipal: quando uma está em cena, o filme é despojado; quando a outra aparece, a sisudez é instaurada, até que tudo culmina na aguardada seqüência final, de um filme dentro do filme, em que uma reconciliação tardia revela-se possível, após mais de um anúncio metalingüístico (um 'close-up' plangente de Nora, que revela-se o ensaio de uma pela teatral, quando a câmera de afasta, por exemplo). "Para que alguém possa errar, é preciso não ouvir". diagnosticara antes o arrojado Gustav. 



Num trecho de montagem que sobrepõe as faces dos personagens/atores - em explícita referência imagética a "Persona - Quando Duas Mulheres Pecam" (1966, de Ingmar Bergman) -, Joachim Trier insinua que pai e suas duas filhas estão imiscuindo-se, afinal, mas as distinções de personalidades permanecem evidentes, dotando o filme de uma aparência (proposital?) de incoesão dramática: a despeito dos flertes existenciais e dos instantes em que a leitura do roteiro de Gustav provoca lágrimas, o filme nem entrega-se à prometida aura bergmaniana nem dá continuidade à espirituosidade característica do realizador, mesmo quando lida com temáticas dolorosas. O filme como um todo, portanto, parece um esboço, tanto quanto o roteiro de Gustav, constantemente reescrito, traduzido e atualizado. Dá para compreender o porquê de este enredo ser tão efetivo para quem se identifica com o dilema familiar apresentado (o do "pai ausente"), não obstante ser insatisfatório na explicação dos motivos para a ausência de Gustav. "Rezar não é falar com Deus, mas assumir o próprio desespero", monologa a protagonista do filme que o pai de Nora e Agnes deseja concretizar, no auge de seus setenta anos de idade. Resta um embate geracional, ofertado enquanto convite: para alguns funciona; para outros, não. Viva o poder terapêutico da Sétima Arte! 



Wesley Pereira de Castro. 

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