segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

FOI APENAS UM ACIDENTE (2025, de Jafar Panahi)


Numa cena nada casual, apesar da aparência, o enfurecido Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr) diz à fotógrafa Shiva (Mariam Afshari), sentada diante de uma árvore ressecada, que o dilema que eles enfrentam naquele momento tem a ver com uma peça teatral que eles viram recentemente, "onde havia uma árvore no cenário". Tratava-se de "Esperando Godot", de Samuel Beckett, conforme lembra a sóbria personagem feminina. É a deixa para o ocorrerá a seguir: um terceiro personagem, supostamente um torturador, será amarrado a esta árvore, e pressionado a confessar a sua verdadeira identidade... 



Ainda que evite, aqui, a metalinguagem que caracteriza a maior parte de sua obra, o cineasta Jafar Panahi deixa explícitas algumas de fontes de inspiração: além da peça supracitada, aspectos autobiográficos, visto que ele próprio foi aprisionado pelo austero regime iraniano. No enredo, vários personagens - todos eles presos e torturados por reivindicarem direitos básicos, como o recebimento de salários atrasados - rememoram os traumas experimentados durante o confinamento, quando foram reiteradamente maltratados por um oficial conhecido como "o perneta", por ter perdido um de seus membros inferiores na guerra contra a Síria. O que fazer perante o reencontro com alguém tão odiável?  



Em dúvida quanto à identidade do homem aprisionado - exceto por Hamid, que alega reconhecer as cicatrizes que apavoraram-no, em pesadelos, por mais de cinco anos -, os ex-torturados que se reúnem em condição tão inaudita (o seqüestro de alguém que pode ser um terrível algoz do passado) questionam se o exercício da violência seria uma vingança válida. O desfecho previsível confirma que a perversidade dos malevolentes, numa sociedade demarcada pela "maioria silenciosa" - ou seja, mantida por financiadores oportunistas, como denuncia Hamid, ao confrontar o noivo de outra ex-aprisionada - chega a tornar vã esse tipo de discussão. Mas fica a pergunta: iríamos contra os nossos princípios éticos, se agíssemos da mesma forma contra quem nos feriu? Para cada um dos personagens, uma resposta diferente, a depender de suas motivações sobrevivenciais, manifestas em atividades profissionais. 


Não obstante ser menos complexo que qualquer obra anterior panahiana, o acúmulo de fatores de extrema complicação moral é novamente implementado no roteiro, quando a esposa grávida do suposto torturador desmaia na cozinha de sua casa, pouco antes de dar a luz. Quem telefona para requerer a intervenção do grupo, que atende ao celular de Eghbal (Ebrahim Azizi), é a sua filha pequena, que, no início, fica chateada depois que o pai atropela e abandona um cachorro. No desenho de som do filme, ruídos premonitórios, como latidos freqüentes, o grasnado de corvos e os barulhos característicos da movimentação de teclas em caixas eletrônicos. Caberá a Vahid (Vahid Mobasseri) pagar vários subornos, ao longo da narrativa, numa tessitura social que converte a corrupção em tradição, enquanto Hamid é considerado estouvado por pronunciar o básico: uma criança que cresce num ambiente de malevolência converter-se-á, ela própria, num agente do mal. Há saída para o determinismo, numa conjuntura social que condena um cineasta à prisão apenas por lançar os seus filmes? As notícias extrafílmicas associadas a este longa-metragem não parecem ser otimistas: de um lado, os prêmios, direcionados aos co-produtores franceses; do outro, a notificação de mais uma condenação prisional, direcionada ao realizador. Que isto sirva de exemplo para o que acontece hodiernamente no Brasil! 



Wesley Pereira de Castro. 

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