Há uma cerimônia fúnebre que se repete em mais de um momento: celebrando o falecimento de um mártir palestino, cuja luta serve de exemplo para as novas gerações, os acompanhantes do defunto atiram para cima, enquanto vemos bandeiras hasteadas, num 'travelling' vertical para o céu. Da primeira vez em que isso acontece, não sabemos quem está sendo enterrado; na segunda, há contigüidade espacial em relação ao restaurante onde trabalha um dos protagonistas; e, na terceira, é este próprio personagem quem está morto, sendo alçado a uma categoria de veneração que ocorria apenas intrafilmicamente, na produção que ele protagoniza, dentro do filme que estamos vendo...
Servindo-se habilmente de 'flashforwards', os diretores exibem, logo no começo, o 'trailer' do "primeiro filme de ação realizado em Gaza", que será apresentado na segunda metade da trama, depois que Yahya (Nader Abd Alhay) é reencontrado, dois anos depois de ter testemunhado o assassinato de seu melhor amigo, Osama (Majd Eid), por um policial corrupto, Abou Sami (Ramzi Maqdisi). Escolhido para interpretar um revolucionário palestino, por conta de sua similaridade física com ele, Yahya é dotado de uma conscientização política que parecia ter anulado, quando foi obrigado a estabelecer-se como um mero vendedor de faláfeis, ao perceber-se confinado na cidade de Gaza, impedido pelo Governo israelense de visitar a sua mãe, mesmo que ela more a apenas uma hora de viagem de onde ele vive. Qual o motivo deste impedimento? "Os israelenses não justificam os motivos para as suas proibições", esclarece uma funcionária burocrática, entregando mecanicamente os documentos a Yahya...
Numa utilização brilhante de uma canção 'pop' - "Elly Etmanetoh", da cantora libanesa Nawal Al Zoghbi -, quiçá a favorita de Osama, já que ele a dançava antes de ser morto, Yahya a ouve depois que se vinga de Abou Sami e, assim, sabemos como ele e seu amigo se conheceram, quando um era universitário e o outro taxista. O que fez com que eles se tornassem proprietários de um restaurante, que, nas horas vagas, traficavam analgésicos (cujas receitas são obtidas ilegalmente durante consultas médicas, quando Osama alega sentir dores por causa das cicatrizes obtidas durante a sua participação numa intifada)? Eis mais um dos aspectos não respondidos do roteiro que, desta maneira, obriga a espectador a refletir acerca da onipresença opressora de Israel no cotidiano daqueles personagens. Enquanto eles comem, discutem ou cozinham, vemos e ouvimos bombas ser disparadas nos prédios locais - detalhe: por motivos mui compreensíveis, as filmagens ocorreram na Jordânia, em 2023. No crédito derradeiro, quando o filme termina, uma sentença é escrita na tela, como um vaticínio ativista: 'it will end' ("vai acabar"). Que tal anseio seja reproduzido na prática: eis o que desejamos a partir deste trabalho de mestres, que contribui efetivamente para a execução de uma longeva exortação emancipatória, que, da mesma maneira que infelizmente depende dos disparos de metralhadoras, também concebe a "resistência através das imagens", conforme explica o diretor do filme dentro do filme. Evidente e, por isso mesmo, genial!
Wesley Pereira de Castro.


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