quarta-feira, 6 de outubro de 2010

NOSSO LAR. Brasil, 2010. Direção: Wagner de Assis.

Existe uma crônica de Akira Kurosawa em que este conceituado diretor japonês vale-se das especulações de seu neto infantil sobre a similaridade do cachorro da família com vários animais (mas que, afinal de contas, parece mesmo com um cachorro!) para defender que, apesar de mesclar características concernentes às demais artes, cinema é sempre Cinema, por mais tautológica que esta (in)definição pareça.

Pois bem, diante de “Nosso Lar”, os questionamentos advindos de tal confusão conceptual assumem a gravidade de um oxímoro: o que é realmente um filme? Onde termina um aspecto fílmico e começa o discurso religioso propagandístico? É lícito adotar este tipo de questionamento numa crítica cinematográfica genérica? Um cotejo imediato com experiências mais gritantes no plano ideológico-discursivo – a saber, o cinema socialista soviético das décadas de 1920 e 1930 e os filmes anti-semitas produzidos sob o jugo do ministro alemão Joseph Goebbels – possibilita que identifiquemos nesta mais recente superprodução da Globo Filmes um grave déficit técnico-narrativo: se aqueles beneficiavam-se de ricas experiências envolvendo montagem de fotogramas ou decodificação simbólica de metáforas preconceituosas, respectivamente, este peca pela completa subsunção à doutrina kardecista, repleta de contradições discursivas que, para além de serem credíveis ou não, esbarram na acepção mais essencialmente bíblica do termo dogma, entendido como sendo uma explicação mitológica para as dúvidas eternas da Existência, ostensivamente embasada em lacunas incapazes de serem julgadas pelos esquemas científicos tradicionais.

Em outras palavras: “Nosso Lar” é um filme que vai de encontro a ideais pretensamente analíticos de apreciação cinematográfica, relacionados ao arcabouço referencial do espectador e à sua disponibilidade em acompanhar uma simples estória humana, e depende justamente da apreciação subjetiva e aderente do mesmo aos caracteres dogmáticos ali apresentados. Não quer ser filme, quer ser doutrina. E isto é, definitivamente, um problema!


No plano narrativo primário, “Nosso Lar” conta a história real (ou assim apresentada como tal) do médico André Luiz (Renato Prieto), que falece devido a complicações cardíacas e acorda num umbral para pecadores, onde é submetido a todo tipo de provações e sofrimentos, até ser resgatado por figuras iluminadas, que o conduzem ao recanto curativo do título, um paliativo celestial em que as almas dos falecidos aguardam o momento de reencarnarem na Terra, enquanto amadurecem seus desígnios morais e aprendem a esquecer as pendências de vidas passadas.

Se o roteiro do próprio diretor, baseado num livro comercialmente bem-sucedido psicografado pelo médium Chico Xavier, estivesse efetivamente focado nesta condução tramática, o filme seria assaz interessante e entretido, mas, no plano narrativo secundário (e dominante), frases de efeito enaltecendo o kardecismo são despejadas segundo após segundo, muitas vezes associadas a contradições gritantes e racionalmente inaceitáveis. Senão, vejamos: se as almas que estão voluntariamente confinadas no paraíso reconstituído no filme abandonam quaisquer resquícios de suas vidas anteriores, porque permanecem com seus formatos terrenos no local representado?

Se a vida na Terra é que é uma “cópia” daquele lugar, porque os hospitais precisam ser identificados com placas que indicam o número da ala em que os internos se encontram? Se, oficialmente, o conhecimento teológico é onisciente e a bondade é universalmente disseminada, qual a necessidade de tantos sub-ministérios ou de tantas minúcias burocráticas no retorno para a Terra ou na comunicação com os parentes mortos ou ainda vivos? Talvez estas respostas dependam de uma profissão de fé que transcende – e muito! – as especificidades desta resenha.


Apesar de a direção de arte ser um digno chamariz e de a trilha sonora de Philip Glass adotar os acordes ‘in crescendo’ que o tornaram célebre e atrelado a um estilo facilmente reconhecível de composição erudita, a direção do filme é frouxa, o roteiro é infiel aos seus próprios parâmetros e o elenco é ruim, não porque os atores assim também o sejam, mas porque estes mais recitam uma planilha moralizante do que efetivamente atuam, visto que eles comportam-se como se estivessem num púlpito midiático e não num cenário cinematográfico.

No que tange à demonstração destes defeitos, um exemplo singular permite a fácil constatação: quando André Luiz chega a Nosso Lar, ele é obrigado a ficar completamente dependente das respostas e admoestações concedidas pelo diligente Lísias (Fernando Alves Pinto, numa das poucas interpretações inicialmente convincentes do filme), bastante firme em suas pregações, aliás, mas, quando a mãe deste último (vivida por Ana Rosa, convincente como de costume) emigra novamente para a Terra, é ele quem depende do auxilio consolador e aconselhador de André.

Porém, vários são os clichês bem-aventurados que saturam este filme, dado que podemos enumerar também: a pletora suspeita, oportunista e não necessariamente inclusiva, de ícones religiosos na sala do Governador (Othon Bastos), a estereotipia indumentária dos judeus que chegam a Nosso Lar depois que são mortos por causa da II Guerra Mundial, a impostação supra-caridosa e xaroposa que satura os pronunciamentos vocais dos personagens e a montagem um tanto equivocada – em razão de seu pretenso julgamento avaliativo de caráter – entre os vários estágios da(s) vida(s) de André Luiz.


Para além, portanto, da modorra ou do bem-estar de recepção narrativa que este filme possa causar a diferentes tipos de espectadores, é patente no mesmo o desejo de convertê-los ao espiritismo e não somente mantê-lo entretido por 102 minutos. Ou seja, apesar de ser virtuoso em mais de um aspecto relacionado à sua própria constituição cinematográfica (fotografia, linearidade enredística, trilha sonora), “Nosso Lar” não ultrapassa seus direcionamentos hagiográficos forçosos e, como tal, soçobra esteticamente em razão de sua assunção extremada de propósitos. Pena... Mas, definitivamente, é mui válido (e carente de observação cuidadosa) enquanto tentativa!

Wesley Pereira de Castro.

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