sexta-feira, 15 de outubro de 2010

TROPA DE ELITE 2 - O INIMIGO AGORA É OUTRO (Brasil, 2010) Direção: José Padilha

Num antológico artigo de 1964, em que vocifera contra a hermenêutica em prol do que chamou de “erótica da arte”, a ensaísta norte-americana Susan Sontag assevera que “nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria, quando a arte não precisava de justificativa, quando ninguém perguntava o que uma obra de arte dizia porque sabia (ou pensava que sabia) o que ela realizava”. Com isto, ela quer dizer que lamenta a pletora atual de interpretações sobre obras de arte, que estão demasiado focadas em tentativas de explicação acerca de seus conteúdos, mas desdenhando as possibilidades essencialmente formais das mesmas. 46 anos depois, o mesmo texto pode ser bastante elucidativo em qualquer apreciação analítica do que representa o filme “Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro”, sujeito às mais multiformes interpretações a depender do arcabouço teórico a que seus potenciais exegetas desejem se filiar. Instaura-se, portanto, uma dificuldade inicial: para além de suas inequívocas qualidades cinematográficas, este filme possui diatribes ideológicas que podem variar de tom a depender do viés interpretativo adotado.

Optando-se inicialmente pela perspectiva narratológica, duas grandes perguntas-chave destacam-se ainda nos minutos iniciais: 1 - a narração onisciente do protagonista – o capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro) Roberto Nascimento, extraordinariamente encarnado por Wagner Moura – confunde-se com o ponto de vista discursivo defendido pela equipe técnica do filme ou a instância narrativa em pauta goza apenas de uma liberdade subjetiva hipertrofiada?; 2 – a renitente propensão do protagonista em referir-se a um potencial interlocutor como “parceiro” é uma mera interpelação fática ou corresponde a uma tentativa de convencimento mais generalizada acerca do ponto de vista anteriormente questionado?

Independentemente de estas respostas conseguirem ou não ser respondidas, o filme merece ser classificado como ótimo e impetuosamente fecundo, dado que realmente ousa ao amplificar os problemas organizacionais, políticos, administrativos e policiais abordados no primeiro filme a um patamar tão gritante de corrupção e de perene ameaça aos direitos básicos do cidadão que dois diferentes tipos de cotejo com outras produções cinematográficas merecem ser evidenciados.


O primeiro destes dois tipos de cotejo diz respeito a uma comparação com as próprias obras dirigidas por José Padilha: se no primo e perturbador documentário “Ônibus 174” (2002), o que mais chamava a atenção era a abertura da temática francamente sociológica a entrevistas com vozes dissonantes, respeitando em igual medida diferentes testemunhas/participantes da sociedade civil (de policiais a transeuntes, de meninos de rua a assistentes sociais, de escritores a professores universitários especializados na obra de Michel Foucault) e em “Tropa de Elite” (2007), o que mais era elogiado (e simultaneamente criticado por alguns) era o eloqüente raciocínio julgador da narração em primeira pessoa do atormentado capitão Nascimento, em “Garapa” (2009), o diretor e roteirista denotou que não é muito bem-sucedido na apresentação de problemas característicos das classes sociais menos aquisitivas.

Neste mais recente filme, porém, o diretor José Padilha demonstra-se muito mais maduro em sua averiguação pormenorizada dos fluxogramas do crime organizado, analisando a influência disseminada dos protótipos organizacionais e institucionais, brilhantemente retratados através de suas variegadas estruturas de poder, em diálogos genéricos que sempre se referem ao ‘sistema’ como sendo um inimigo abstrato e indestrutível e em cenas sutis e inteligentemente construídas como quando uma ordem do capitão Fábio (Milhem Cortaz) é renegada por um policial iracundo com o argumento de que ele apenas obedece a ordens superiores, o que pode ser imediatamente verificado através da observação da quantidade de bustos de autoridades que são fotografadas nos quadros pendurados em seu escritório. O segundo tipo de cotejo, por sua vez, diz respeito à já comentada estrutura enredística onisciente, que traz à tona situações apresentadas nos clássicos “Z” (1969, de Costa-Gravas) e “Cassino” (1995, de Martin Scorsese). Se, no primeiro destes filmes, o que há de comum com “Tropa de Elite 2 – o Inimigo Agora é Outro” é o controle pleno da amostragem de eventos que cerceiam e fundamentam o crime organizado e a sua posterior investigação, bem-sucedida no filme, mas fracassada na não-coincidente vida real, no segundo, o ‘modus operandi’ mui particular de Martin Scorsese acerca do quão interferentes são as angústias e insatisfações amorosas de outrem em seus atos profissionais revela-se, quando instaurado no filme mais recente, maravilhosamente exemplar, justificando no bom roteiro de Bráulio Mantovani e Paulo Padilha a crescente irritação mútua, tendente à inevitável colaboração empregatícia, entre o capitão Nascimento e seu arquiinimigo ideológico, o ativista dos direitos humanos Diogo Fraga (convencionalmente vivido por Irandhir Santos).

Só por estas duas menções referenciais, este filme já disporia de suficientes elementos para ser considerado uma peça elogiável da cinematografia brasileira contemporânea, mas o debate de idéias que ele fomenta permite que esbocemos novas considerações sobre seus intentos extra-mercadológicos.


Indo de encontro às admoestações ferrenhas de Susan Sontag, que acrescenta que a interpretação conteudística viola a arte, no sentido de que torna a mesma “um artigo de uso, a ser encaixado num esquema mental de categorias”, convém acrescentar que, se o roteirista Bráulio Mantovani e seu parceiro Paulo Padilha não são necessariamente originais em sua abordagem ousada das tramóias administrativas e institucionais de um organograma longevamente marcado pela corrupção consuetudinária, há de se levar em consideração que este tipo de pungente denúncia contra os conchavos malévolos dos dirigentes políticos brasileiros é inusual no tipo de filme destinado às grandes bilheterias deste país, conforme é evidenciado pela presença da Globo Filmes entre os co-produtores. Pergunta-se: que interesses estariam por detrás desta súbita revelação, em comparação com uma cena-chave do filme, em que um estereotipado deputado e apresentador televisivo (André Mattos, numa atuação realmente verossímil) critica outro deputado por estar realizando investigações em ano eleitoral, quando este filme foi lançado e divulgado justamente no mês-chave para a decisão da campanha presidencial no Brasil? A descoberta de algum tipo escuso de interesses invalidaria as qualidades intrínsecas e valorativamente denuncistas da obra? Talvez não.

Isso porque, da mesma forma que acontece nos exemplos de onisciência narrativa emulados, José Padilha serve-se de um compêndio de recursos pragmático-formais, levado a cabo tanto por Costa-Gravas quanto por Martin Scorsese, em que a montagem frenética, o contraponto imagético-antitético de ações personalísticas e as comparações de efeito no viés político-partidário são particularmente funcionais, conforme bem demonstram as atuações homogêneas do bom corpo actancial (elogio à parte para a breve e intimidadora caracterização de Seu Jorge como um líder narcotraficante), a montagem sempre eficiente de Daniel Rezende (sem duvida, o maior especialista brasileiro contemporâneo no tipo de efeito sensorialmente perturbador pelo qual o filme anseia) e, venhamos e convenhamos, pela narração ferozmente íntima de Wagner Moura, que não somente justifica muito bem a impotência resolutiva infelizmente associada ao subtítulo do filme como também abre espaço para que uma mui relevante discussão entre a abolição/determinação das fronteiras entre os ditames públicos e particulares das causas profissionais sejam levadas em consideração quando posta em prática um dada investigação, o que, por sua vez, é talentosamente metonimizado em seqüências como aquela em que ele é tachado de moralista quando fica enraivecido ao descobrir que seu filho fora preso com uma grande quantidade de maconha ou quando ele é indiciado por grampear sem autorização o telefone do deputado que calha de ser também marido de sua ex-mulher, sendo ele acusado de manter seus interesses policiais em segundo plano diante da alegação de que ele estaria enciumado.


Ao final do filme, portanto, há uma desmistificação do discurso verbalmente desgastado em prol das falácias democráticas, visto que o ficcional e corrompido governador do Rio de Janeiro é mostrado comemorando mais quatro anos de mandato eleitoral, as acusações do ativista Diogo Fraga contra um secretário ostensivamente mal-intencionado são subjugadas pelas condições “democráticas” do escrutínio do mesmo e as oportunistas imagens do Congresso Nacional em Brasília-DF, na seqüência que antecede o final insistem em advertir o espectador de que os fomentadores da corrupção em escala macrológica são de alta relevância política, o que explica por que “entra governo e sai governo, o sistema continua invencível, articulando-se em novas frentes e submetendo-se a novos interesses”.

Quando, portanto, a montagem do filme alinha uma série de assassinatos, “queimas de arquivo” e exonerações tangenciais no que diz respeito às novas articulações de poder condenadas pelo Capitão Nascimento, para mostrar, em seguida, este mesmo personagem comemorando tensamente o despertar de seu filho adolescente, que fora baleado gravemente nos rins e encontrava-se internado na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital, a mensagem do filme, torna bastante evidente: “haja o que houver, faça a sua parte”. Tal mensagem, aliás, é ainda mais legitimada pela letra do ‘funk’ que MC Leonardo compõe e interpreta durante os créditos finais, em que, sob o título “Tá Tudo Errado”, ele arrazoa: “Sinceramente não tenho a saída de como devia tal ciclo parar/ Mas do jeito que estão nos tratando, só estão ajudando esse mal a se alastrar/ Morre polícia, morre vagabundo e, no mesmo segundo, outro vem ocupar/ (...)/ Agora amigo, o papo é contigo, só um aviso pra finalizar: o futuro da favela depende do fruto que tu for plantar”. Não somente da favela, acrescenta José Padilha, demonstrando que todos nós temos um infinitésimo, porém definitivo, papel enquanto retroalimentadores do sistema de violência e corrupção denunciado numa cena inicial pelo professor de História Diogo Fraga, que, apesar de seus atropelos estatísticos e de seus desvios aplicativos dos Direitos Humanos Universais, insistentemente criticados por seu rival ideológico Roberto Nascimento, tem razão quando contesta o elogio armamentista aos assassinatos justiceiros que está embutido no símbolo e no jargão atacante do BOPE, que “mata um, mata geral”, conforme está dubiamente contido no refrão do sinistro tema cantado na abertura do filme pela desenxabida banda de ‘rock’ Tihuana. E, por mais que as críticas sobre este filme tendam muito mais a demonstrarem o que ele significa do que o que ele formalmente representa, o recado é dado: cada opção de pôr a câmera num determinado lugar e não noutro ou de mostrar um personagem falando algo e não outro é provida de sentido e interesses difusos.


Cabe ao receptor audiovisual destas mensagens fazer a sua parte na divulgação debatedora de seus pontos de vista éticos, políticos ou puramente hermenêuticos. Por mais inócuo que isto pareça dentro da catastrófica situação apresentada pelo protagonista ou do abrangente organograma criminal que se descortina diante de nossas sensibilidades espectatoriais, Cinema é também uma potente – e mui perigosa, em mãos e mentes desonestas – ferramenta de (re/des)construção moral!

Wesley Pereira de Castro.

5 comentários:

A. Everton Rocha disse...

Acabei de vê-lo e sabia que você o tinha posto aqui sobre sua ótica que para mim significa bastante, confio em sua percepção. Confesso que o achei pesado, em alguns momentos fiquei emocionado devido eu saber o quão verdadeiro fora sua criação e também pelo quão impotente estamos. Porque matar? De que adianta tanta energia ser gasta? Porque o ‘sistema’ é tão forte? Até quando a maldade será passada e repassada de pessoas pra pessoa? Qual é minha parte a fazer?

Pseudokane3 disse...

Vindo de um policial e de um amigo sensível, tais questionamentos me deixam tão interrogativo quanto tu: e aí está o caminho da solução. Na descoberta - utópica? ideal? Suicida? - de qual é a nossa parte!

WPC>

tatiana hora disse...

bem lembrado! eu havia visto anteriormente você postar a crítica por aqui, mas como não havia assistido ainda ao filme, preferi ler depois.

realmente é algo a se pensar essa questão de o filme se passar em ano eleitoral e ser exibido justo nesta época. acho que tem a ver também com aquela levada de filme comercial, como lançar filme de natal no natal, filme de férias nas férias, pois chama mais a atenção, parece mais real e consequentemente dá mais dinheiro. mas também o filme tem essa anedota com o Sérgio Cabral ne, que foi acusado por seu adversário, Fernando Gabeira, de ser vinculado às milícias. engraçado que Cabral, assim como o governador do filme, é reeleito.

e também questiono essa ideia de Susan Sontag quanto à interpretação do conteúdo da obra. aliás, acredito que para interpretar o conteúdo muitas vezes devemos nos valer das dos recursos formais, das estratégias de representação.

e acredito muito nesta última frase:
"Cinema é também uma potente – e mui perigosa, em mãos e mentes desonestas – ferramenta de (re/des)construção moral!"

Pseudokane3 disse...

Refaço meus votos à Tatiana: casamento triplo já! (risos)


Detalhe: destas anedotas políticas, eu não sabia quando vi o filme... Isso tu que abrilhantas com teus conhecimentos partidários sobressalentes, obrigado!

WPC>

O herói sem nunhum caráter disse...

http://www.revolutas.net/index.php?INTEGRA=1522 só pra aumentar a "coisa".