segunda-feira, 20 de junho de 2011

INCÊNDIOS ('Incendies') Canadá/França, 2010. Direção: Denis Villeneuve.

Por mais pungente que o enredo deste filme se revele ao longo da projeção, em seu quartel final, o espectador tende a se decepcionar com o excesso de artifícios roteirísticos que anseiam por chamar bem mais atenção involuntária para a concepção do filme em si do que para a estória que ele conta. Ou seja, à medida que a saga genético-cognoscitiva dos irmãos Marwan aproxima-se do seu planejado desfecho, o roteiro demonstra-se exageradamente autoconfiante e dependente da aceitação tácita de seu minucioso elaboracionismo, tornando pouco credível a consecução do percurso efetuado pelos personagens a fim de cumprirem os desejos fúnebres de sua mãe e as promessas que ela deixou interrompidas em vida.

É nesse ponto, portanto, que se constata que, por mais intensa e prenhe de elã que seja a interpretação da diva Luzna Azabal, sua personagem é apenas bidimensional, não ultrapassando a vacuidade compositiva que o ultra-realismo mui convincente de algumas seqüências deixa entrever. Não é um defeito que dirime por completo a perplexidade discursiva contra o absurdo da guerra exalada pelo filme, mas irrita no que tange à percepção do sobejo exibicionista da equipe técnica, que parece muito mais preocupada com láureas e méritos críticos do que com a emoção espectatorial propriamente dita (ou sentida). Quiçá, um mal menor. Talvez, uma advertência de hipocrisia moralista: cada um escolhe como este detalhe afeta ou não a apreciação geral do filme, que, assim mesmo, não deixa de ser recomendadíssimo!

Para que a qualidade destacável deste filme pudesse ser percebida, foi de suma importância o trabalho do elenco, em especial a já destacada interpretação da atriz belga Luzna Azabal, que dota a sua personagem de toda entrega pulsional, expressividade e intimismo militante que a mesma necessita. Isto não impede, porém, que a construção da referida personagem denote uma limitação problemática (no mau sentido do termo) no reconhecimento de seus caracteres psicológicos e afetivos, o que fica ainda mais evidente quando se tenta reconstruir a personalidade maternal da mesma, em sua estadia no Canadá, em comparação com os percalços sobrevivenciais que ela enfrentou no país fictício em que se passa a maior parte da ação.

Reproduzindo vários dos cacoetes gesticulares médio-orientais da intérprete de sua mãe, Mélissa Désormeaux-Poulin também se destaca por uma interpretação oscilante entre o contido e o explosivo, enquanto Maxim Gaudette está desenxabido e inconvincente como seu irmão gêmeo Simon. Rémy Gerard, por sua vez, até que está competente na pele do notário Jean Lebel, mas seu personagem é dispensável e verborrágico.
Dentre os demais aspectos técnicos do filme, pode-se elogiar largamente a direção de fotografia de André Turpin, a montagem consistentemente alinear de Monique Dartonne, e, principalmente, a ótima trilha sonora incidental de Grégoire Hetzel, que se dá ao luxo de incluir a melancólica canção “You and Whose Army?”, do Radiohead, em paroxismos dramáticos. Se, no primeiro momento em que esta canção é ouvida, ainda na seqüência inicial, quando acompanhamos vários garotos órfãos terem seus cabelos raspados, o aspecto da mesma é desviadamente videoclipesco, quando a ouvimos novamente, através dos fones de ouvido da personagem Jeanne, os elementos de identificação entristecida são mais do que funcionais e elogiosos.

O mesmo não pode ser dito sobre a progressão do roteiro, que merece ser analisado num parágrafo à parte em razão de seu decréscimo impactante, para além da insistência auto-evidente em demonstrar o quanto é inventivo em seus estratagemas de choque moral.
Escrito pelo próprio diretor, com base numa peça teatral de Wajdi Mouawad, o roteiro deste filme é, de fato, muitíssimo elaborado e coeso em seus vais-e-vens tramáticos, Entretanto, à medida que o filme avença e os planos de descoberta engendrados por Nawal são postos em prática, uma leve inverossimilhança contextual adiciona-se à feitura do filme, fazendo com que a sinceridade denuncista até então pretendida pelo enredo seja quase obscurecida por seu formalismo técnico. Além disso, a descoberta de que os gêmeos Jeanne e Simon são filhos de um estupro incestuoso não contribui informativamente para a quebra imediata da corrente de ódio que Nawal menciona numa derradeira carta-testamento, mas, pelo contrário, endossa um moralismo tardio que deixa em aberto a pressuposição de que as demonstrações de suma violência ali externadas tornam-se mais justificadamente dramáticas quando associadas a um ambiente trágico familiar, quando já o eram por excelência, mesmo em parâmetros gerais, conforme se detecta na extraordinária, potente e asfixiante seqüência em que um ônibus repleto de mulheres e crianças muçulmanas é queimado por fundamentalistas cristãos, na melhor cena do filme, que, não por acaso, é também a mais famosa imagem de divulgação do mesmo.

Além disso, os melindres legislativos durante a prisão oficial de Nawal, depois que ela assassina o principal político nacionalista do país em que vive, não condiz com o imediatismo vingativo demonstrado não somente na seqüência anteriormente descrita como também nas paqueras insistentes que ela recebe dos responsáveis pela segurança do referido político, quando adentra a sua casa, a fim de trabalhar como professora de francês do filho dele. Mas, conforme defendido antes, tudo isto pode ser convenientemente assumido como males menores, visto que é inegável que não somente “Incêndios” é um filme qualitativamente superior como ele ainda impressiona e irrita bastante ao demonstrar o quão absurdas e recorrentes são algumas posturas genocidas e segregacionistas ainda adotadas – em nome de princípios religiosos ou políticos, que seja – em algumas regiões do mundo. E, por todo o vigor e/ou potência emocional que ele nos faz descarregar, “Incêndios” ainda impressiona – e muito!

Wesley Pereira de Castro.

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