
Não obstante o trio principal de intérpretes (Carlos Areces, Antonio de la Torre e Carolina Bang) estar excelente, o grande mérito desta obra é, sem dúvida, a sua acachapante direção de arte, a cargo de Eduardo Hidalgo Hijo, que reconstitui as diversas épocas em que se passa o filme com precisão minuciosa, ao mesmo tempo em que edifica o universo grotesco e mui particular em que as psicoses exacerbadas dos deformados palhaços Sérgio e Javier soam extremamente coerentes e, até mesmo, verossímeis. E, dentre os três atores principais, as inúmeras mudanças de penteado e maquiagem de Carolina Bang reconfirmam a magnificência desta direção de arte, minuciosamente coligada com a impecável direção de fotografia de Kiko de la Rica, que nos inebria desde a exuberante seqüência que antecede os brilhantes créditos iniciais, em que fica patente o intuito do diretor de homenagear alguns ídolos do cinema de horror (o recém-falecido Paul Nacshy em destaque, conforme novamente mencionado durante os créditos de encerramento). Tudo neste filme, por mais imperfeito que seja, explode de paixão, no sentido mais conseqüencial e concomitantemente inconseqüente do termo, o que justifica, explica e faz entender o melancólico, inesperado e belíssimo desfecho do filme.
Se, por um lado, elenco principal, elenco secundário e elenco animal estão perfeitos, por outro lado, o filme como um todo não atinge esta mesma aura de perfeição, sendo propositalmente irregular, repleto de defeitos e de máculas estruturais disrítmicas, como se, com isso, quisesse forçar o espectador a experimentar o ‘verfremdungseffekt’ (estranhamento) postulado em grau maior pelo teatrólogo Bertolt Brecht. E, apesar de o filme possuir muitas similaridades com alguns dos pastiches vingativos realizados pelo norte-americano Quentin Tarantino, ele se diferencia bastante destes por seu viés extremamente politizado e pela inconsistência anárquica na configuração dos alvos da fúria de Javier, que, inicialmente, está voltada para os soldados franquistas que aprisionaram seu pai, em seguida está direcionada contra o alcoólatra Sérgio e, no auge de seu frenesi colérico, volta-se para crianças, transeuntes e, conforme percebemos na cena em que ele deforma seu próprio rosto com soda cáustica e com um ferro de passar roupas, até contra si mesmo!
Em suma, é tarefa inglória escrever sobre este filme sem se deixar levar pelas exclamações diante de suas reviravoltas enredísticas, de seus arroubos de inventividade genérica (que abarca desde cânones do horror até pérolas do cinema ‘trash’ relacionado a este mesmo escopo fílmico) e de seus lampejos encantatórios (vide a primeira cena em que a trapezista Natália aparece à contraluz ou quando ela dubla uma canção ‘kistch’ num cabaré). Se, em termos avaliativos mais cuidadosos, este filme não supera o humor negro e a genialidade do mais famoso longa-metragem do diretor [“O Dia da Besta” (1995)], com certeza ele se coaduna a uma mesma linha-mestra sardônica e conscientizada, sendo extremamente coerente e coeso em relação à panóplia de estilos contida no modo peculiar de Álex de la Iglesia fazer cinema.
E, acima de tudo isso, o filme é uma homenagem vivaz à arte circense, em vias de extinção num mundo dominado pelos rompantes tecnológicos desumanizadores e pela pirotecnia gratuita, mas aqui reverenciada em seu âmago hipnótico, metonimizado no bonito instante em que Javier ainda criança (interpretado, nesta fase, por Sasha Di Bendetto) é focalizado num palco vazio, ao lado de um leão involuntariamente abandonado por seus domadores, requisitados como combatentes bélicos, ou todas as vezes em que a efígie infeliz do cantor Raphael [atuando em “Sín Un Adiós” (1970, de Vicente Escrivá)] aparece numa tela dentro da tela, chorando enquanto pronuncia melodicamente a letra e as onomatopéias da cantiga que intitula o filme. Impossível não se emocionar de forma cortante e panegírica diante disso!
Wesley Pereira de Castro.