Numa primeira análise, muitas são as similaridades percebidas entre os estilos e personalidades de Terrence Malick e Stanley Kubrick. Ambos são pessoalmente reservados, sofreram violentas sanções de seus produtores no que tange à autoralidade premente de suas obras, filmam com largos intervalos de tempo entre uma produção e outra e são muito coerentes na exortação das determinações morais que impingem em suas preciosidades cinematográficas. Enquanto o segundo diretor polariza os seus enredos através do conflito manifesto entre livre-arbítrio individual X pressões institucionais, o primeiro dialoga diretamente com uma entidade que pode ser amplamente cognominada como Deus.
Em seu filme mais recente, portanto, Terrence Malick assume este diálogo num viés que traz à tona o tipo de sobrenaturalidade realista praticado com fervor pelo genial cineasta italiano Roberto Rossellini. Os traços malickianos peculiares de montagem, fotografia e enredo estão lá: apesar de possuir apenas 139 minutos de duração e de os fotogramas serem concatenados de um modo célere quase videoclipesco, a suspensão proposital da narrativa faz com que o filme pareça mais lento do que é, forçando o espectador a uma reflexão intensa sobre os substratos éticos e religiosos da obra e da própria vida, tendo como ponto de partida o cotidiano de uma família tipicamente estadunidense, composta por pai, mãe e três filhos do sexo masculino, com pouca diferença de idade entre si. Um deles morre tragicamente e causa uma perturbação perene nos seus familiares sobreviventes, perturbação esta que será redimida numa seqüência derradeira metaforicamente associada ao Juízo Final ou ao sumo perdão divino que cimenta muitas religiões cristãs. O diferencial no modo como o diretor e roteirista defende seus pontos de vista mui particulares sobre religiosidade está no teor experimental de sua narrativa que, se não pode ser completamente tachada de inovadora (não obstante ser desconcertantemente inaudita) é justamente porque se assemelha deveras ao trecho final de “2001: Uma Odisséia no Espaço” (1968), obra-prima do cineasta com o qual Terrence Malick foi comparado no início deste parágrafo. Afinal de contas, em pelo século XXI, quem imaginaria que um drama intimista sobre a reconstituição intravalorativa de uma família norte-americana seria contrabalançado pela gênese de águas-vivas e pela extinção dos dinossauros?
Apesar de seus intentos gerais permanecerem obscuros para quem não viu todos os filmes anteriores do cineasta, não se pode reclamar que Terrence Malick tenha sido pouco explícito na explanação de suas crenças: construindo o personagem Jack O’Brien (na infância, supremamente interpretado por Hunter McCracken; e, na idade adulta, por Sean Penn) como uma espécie de alter-ego confessional, o enredo deste filme inicia-se com uma divagação da jovem mãe interpretada maravilhosamente por Jessica Chastain, que comenta que, na infância, ensinaram-lhe a diferenciar prontamente a Natureza da Graça. Segundo ela, enquanto a primeira acostuma-se a ser vilipendiada, traída e abandonada, a segunda assegura um final feliz e a comunhão dos bons sentimentos àqueles que a seguem. A partir daí, uma coletânea surpreendentemente sintética e minuciosa de cenas típicas do cotidiano familiar (tanto alegres quanto tristes) são despejadas, demonstrando o verdadeiro ‘tour de force’ que os cinco montadores do filme (entre eles, o brasileiro Daniel Rezende) tiveram que executar a fim de porem em prática o subjetivismo narrativo do diretor. Sabemos de antemão que um dos três filhos morre (de forma nunca claramente explicada ao espectador), que o pai vivido por Brad Pitt é austero e um tanto contraditório em suas exigências comportamentais e que a criança através de cujo ponto de vista é narrado o filme questiona o tempo inteiro os fundamentos da existência normativa de Deus. Eis o pretexto para que o cineasta se disponha a uma genial e demorada seqüência sobre os primórdios do Universo, através de uma perspectiva físico-existencial que confronta diretamente tanto aqueles que aceitam apaixonadamente a teoria de “Deus criou o céu a terra”, com diz a Bíblia, quanto aqueles que se baseiam prioritariamente em evidências paleontológicas para afixarem-se aos saberes científicos como sendo assaz válidos, em especial num cotejo com as crenças religiosas.
Oscilando narrativamente entre geo-biogênese, memórias de infância e lamentações e arrependimentos da vida adulta, o roteiro escrito por Terrence Malick perfaz um retrato incisivo e epopéico sobre um tema particularmente caro aos católicos: a incidência do sofrimento até mesmo sobre quem é fielmente temente ao Deus criador, o que só torna muito mais evidente a importância de se interpretar os versículos do livro de Jó, pronunciados por Deus em si, que surgem num letreiro inicial: “Sobre o que repousam as suas bases? Quem colocou nelas a pedra de ângulo, quando juntas cantavam as estrelas da manhã e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?” (38: 6-7).
Quem dispõe, portanto, de um acessório entendimento bíblico, sentir-se-á tentado a interpretar o filme como sendo uma releitura contemporânea do livro de Jó, um servo fiel de Deus, que, em razão de uma disputa de forças superiores à sua reles humanidade, é testado no âmago terreno de sua fé, conhecendo a dor, a perda e o abandono, não obstante ser precisamente aquilo o que o Velho testamento entendia como “um bom homem”. Acompanha-se, a partir de então, o embate cada vez mais ferrenho entre Jack e seu pai, a ponto de o primeiro rezar a Deus para que o segundo morra e, não obtendo resposta sobre as suas preces, clama: “Oh, Deus, porque nós temos que ser bons, se Tu mesmo não és?”. À medida que acentua cada vez mais o desamparo religioso do suposto protagonista infantil de seu filme, Terrence Malick prontamente restitui a narração da mãe como sendo vigorosa e onisciente, defendendo o apelo irrestrito ao perdão, à esperança e ao amor incondicional como sendo ferramentas precisas para se enfrentar a vida com a galhardia que ela exige. E é neste ponto que o para-rossellinismo do cineasta atinge o paroxismo de sua genialidade, qualitativo não apenas por suas qualidades meritórias em si, mas também – e principalmente – por ser audacioso o suficiente para demonstrar-se tão pessoal e idiossincrático num contexto fílmico em que o espetáculo e as superficialidades tramáticas são apregoados como únicas garantias de visibilidade exibitória. Ou seja: parafraseando o dito cristão de que “muitos são os chamados, poucos são os escolhidos”, Terrence Malick realiza aqui uma obra autoral e extraordinária que fala diretamente a qualquer ser, mas que, por isso mesmo, é prontamente rejeitada pela maioria deles, justamente porque o mundo circunvizinho logra crescente êxito no que diz respeito à despersonalização e ao esvaziamento referencial de seus espectadores, entendidos e auto-assumidos como meros consumidores epidermicamente saciados.
Além disso, evitando a prioridade de qualquer um dos dois preditos extremos da polarização entre Natureza e Graça, Terrence Malick faz desembocar um filme transcendental que conclama os espectadores a divagarem entre si sobre muito mais do que os parâmetros técnicos e compositivos dos filmes tradicionais os incitam. “A Árvore da Vida” é, portanto, um filme para ser introjetado não apenas pelos cinco sentidos humanos, mas também por uma motivação sobre-humana que justifica o celebre adágio pascaliano que afirma que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Em mais de um sentido, “A Árvore da Vida” é um filme sobre a idéia que alguns ainda insistem em batizar como Deus – e isto, no contexto hodierno de capitalismo evidente, é uma provocação para a qual pouquíssimos são os que ainda estão preparados para (red)argüirem.
Para concluir, posto que os atributos técnicos do filme foram também convocados à pauta, cabe acrescentar que nenhum crítico sentir-se-á plenamente à vontade para escrever o que quer que seja sobre este filme sem destacar a magnânima direção fotográfica de Emmanuel Lubezki, a encantatória trilha musical de Alexandre Desplat (que, dada a exuberância acachapante das imagens, soa justificadamente pusilânime nalguns momentos) e as ótimas interpretações de todo o elenco (ainda que, aqui, os atores ajam mais como avatares simbólico-metafísicos do que necessariamente como intérpretes de seres vivos com preocupações reais).
E, se o filme hesitou em ser perfeito como ele quase conseguiu, é quase como se tivesse se reservando à doação do direito divino de ser a suma e máxima perfeição, inebriando os espectadores com um sobejo de beleza e dor que, assim amalgamadas, grita de forma altissonante que Arte com inicial maiúscula é algo inequivocamente associado ao senso de ousadia. De coração, portanto, é preciso exclamar “amém!” quando a projeção deste filme se conclui. Por muitíssimo pouco, e quiçá propositalmente, não foi uma obra-prima!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 14 de agosto de 2011
A ÁRVORE DA VIDA ('The Tree of Life') EUA, 2011. Direção: Terrence Malick.
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9 comentários:
É engraçado, né... Onde eu vejo maneirismo, você viu divindade... É algo que não tem jeito: esse filme está totalmente nas alas do subjetivo. Foi penoso escrever umas linhas sobre ele, e penso que foi penoso pra você também.
Ótimo texto. Respeito muitíssimo sua opinião.
Foi ABSOLUTA e EXTREMAMENTE penoso para mim escrever esse texto! Talvez nem orgulhoso dele eu esteja... Estou extenuado e agraciado por ter visto esta obra repleta de maneirismo ou divindade ou o que quer que seja...
Sim, Luiz, a análise é demasiado subjetiva e acho muito difícil enxergar o filme por outro prisma, já que é isto o que ele é: pessoal nas raias da entrega humilhante! Admito que, nalgumas seqüências, o filme se repete: o ritmo é o mesmo da meia-hora final de O NOVO MUNDO, mas, em minha opinião obcecada pela noção de coerência autoral extremada, é isto o que eu defendo e precisava. Sim, Luiz, eu me recém-entregue mais do que podia neste texto, mas, quiçá, muito, muito menos do que devia enquanto amante sincero do Cinema e do Deus em si!
WPC>
Realmente é engraçado... rsrsrsrs... não sei ao certo o que seria maneirismo, mas não vi divindade (no termo cru da palavra) no filme!
Vi a intimidade do homem, o quão se é pequeno diante da vida, diantes dos enormes questionamentos que nos rodeiam, nisso entraria a divindade...
Mas, o dia amanheceu e vim ver se você já tinha escrito sobre... afinal precisava ver suas referencias, mesmo, e afinal de tudo, não mudando minha opinião!
Eu tentei atender o seu pedido, Wesley, mas você escreve bem demais! Já disse isso algumas vezes, mas a sua capacidade de se expressar por escrito é estonteante. O texto não contempla tudo aquilo que eu vislumbrei ao ver o filme. Eu resumiria meu sentimento com a seguinte afirmação: se a película durasse dez horas, eu continuaria a assistir com o mesmo apetite. Esse é daqueles filmes definitivos (para mim).
Quando me refiro, portanto, à capacidade de expressão, estou aqui mais restrito à minha paixão particular: a língua. Você usa as palavras com a intimidade de um verborrágico apaixonado e incrivelmente talentoso e, ao mesmo tempo, esse texto denota um esforço de parturiente em cada palavra, o que é raríssimo dentro do que já li daquilo que você escreveu.
A dificuldade para "gerar" este texto está tão latente como é evidente sua capacidade de pensar e se expressar.
E, recorrendo ao mesmo expediente por você utilizado, para não adentrar no sagrado e restrito universo da perfeição, você utilizou "assaz" como se quisesse dizer "mais".
(risos)
Fiquei tão angustiado com este texto (o qual assemelha-se a um doloroso parto posterior a um estupro) que, antes de dormir, na noite de ontem, precisei gritar um de meus aforismos favoritos: OS CAMINHOS TORTOS, SEM APRIMORAMENTO, SÃO AS VIAS DO GÊNIO. Não pude deixar de me ver admitindo o quando ainda sou fraco diante de obras tão fortes e intensas quanto esta. Juro que não estou sendo (i)modesto, mas fiquei incomodado com o que os epistemólogos chamam de "crítica impressionista", que foi o que eu cometi aqui... Mas, deixa quieto: eu tentei e isto me deixa contente. Tal qual a parturiente traumatizada pelas chagas do estupro, mas que, ao ver seu filho sorrindo, sorri também, não consegue controlar o júbilo materno... É isso! Assaz agradecido estou, visse?
WPC>
Eita Wesley, que filme hein, eu preciso rever, preciso mesmo, ou talvez me aventurar pelas outras obras do Malick antes, eu to extremamente confuso, ás vezes acho que fiquei deslumbrado, mas no minuto seguinte acho o contrário. Estou quase me sentindo em relação ao filme quanto o filme nos faz sentir em relação ao mundo!
Definitivamente, Rafael, tuas palavras me contemplam! (risos) Foi exatamente isso o que me acometeu, juro!
WPC>
Realmente foi incapaz meu caro, mas ninguém poderá te acusar de covarde, talvez fraco por não ter força para abandonar o esquematismo de costume e deixar que as palavras gritassem mais alto ou mesmo ficar em silêncio como pede a fé. Contudo, não tenho como não dizer: seu texto tem momentos de gloria!
Sem qualquer resquício de falsa modéstia, Jadson, diante deste filme, diante de tamanho quilate, eu me dou por satisfeito com estes tímidos sucessos, juro!
Êta filme da zôrra que esmaga! (WPC>)
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