sábado, 30 de agosto de 2014

MAGIA AO LUAR ('Magic in the Moonlight') EUA, 2014. Direção: Woody Allen.

Numa das seqüências-chave deste filme, em que o casal protagonista tergiversa acerca de suas respectivas atividades, o pernóstico Stanley Crawford (Colin Firth) declara que “um mágico jamais deve repetir seus truques, sob pena de ser capturado durante a elaboração dos mesmos”. Tal declaração soa peculiarmente adequada para o cinema de Woody Allen, visto que um dos problemas que os seus detratores mais costumam detectar em suas obras é a repetição de cacoetes cômicos e/ou existencialistas.

Em mais de um sentido, o recente “Magia ao Luar” (2014) itera situações que já despontaram em tramas como “Simplesmente Alice” (1990), “O Escorpião de Jade” (2001), “Scoop – O Grande Furo” (2006), e “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos” (2010), para ficar apenas em títulos que tematizam a magia e o ocultismo de forma ostensiva, mas a abordagem do diretor neste novo filme beira o agradecimento indulgente. Na verdade, mágicos e charlatães são recorrentes na filmografia alleniana, pois eles são o contraponto mais óbvio de rechaço ao ceticismo de muitos de seus personagens em relação ao sentido da vida, geralmente considerada vã tanto pela ausência de crenças religiosas sólidas (salvo pela tradição judaica impositiva que persegue o autor) quanto pela disposição em aceitar o amor como algo mais que “um sentimento irracional positivo”, conforme apregoa Stanley.

Pensando nesta perspectiva, “Magia ao Luar” resolve muito bem as suas limitações tramáticas e oferece-se como um simpaticíssimo filme de época, que, não obstante o forçado (e desnecessário) final feliz, é bastante sintético acerca dos altos e baixos estético-discursivos no envelhecimento saudável e ativo de seu realizador.

Quiçá o aspecto que mais surpreenda neste filme seja a sua impressionante direção de arte: a despeito da aparente rapidez com que ele foi executado, a reconstituição de época é minuciosa, os figurinos são deslumbrantes e a fotografia de Darius Khondji é esplendorosa. Chega a ser alarmante constatar que os cenários são europeus, tamanha a semelhança com típicas manifestações da pequeno-burguesia nova-iorquina da época (década de 1920), que, não por acaso, migrava continuamente para a França, estimulada por alguns de seus principais mentores intelectuais. Entretanto, um dos aspectos menos elaborados deste filme é justamente um dos mais característicos do estilo do diretor: a utilização da trilha sonora. Por mais adequadas que sejam à riqueza esfuziante e boêmia dos personagens, as “canções alegres” de ‘jazz’ que abundam em “Magia ao Luar” soam deslocadas, não necessariamente concatenadas, a ponto de as cenas mais agradáveis e relevantes serem aquelas que prescindem de trilha sonora, principalmente os monólogos (praticamente rodados como planos-seqüência) perpetrados pelo personagem de Colin Firth. O momento em que ele se dispõe a rezar, a fim de que sua tia se recupere após um acidente automobilístico, é tão epifânico quanto brilhantemente racionalista!

Ainda que se possa reclamar de uma estereotipia (alleniana) excessivamente permissiva na composição do inicialmente autoconfiante Stanley – que carrega em seu bojo os tiques físicos e as crises filosóficas facilmente identificáveis nos trabalhos actanciais do diretor – este alter-ego tardio impressiona pela acuidade de suas declarações pessoais (inclusive a mencionada no parágrafo que inicia este texto), não sendo nada casual que a sua obsessão em desmascarar o charlatanismo de Sophie Baker (majestosamente vivificada por Emma Stone) advenha do fato de que ele é precisamente um prestidigitador. Ou seja, ele assume-se como um indivíduo francamente recalcado, que condena justamente aquilo que leva a cabo e que se acha no direito de duvidar ou desacreditar do que não entende por que muitos acreditam piamente em suas elaboradas técnicas de ‘trompe l’oeil’.

 Noutro instante, Sophie comenta que a sua fome aparentemente insaciável é explicada por uma observação de um amigo psicanalista, que lhe disse que a vontade de comer decorre de uma necessidade subconsciente de suplantar a falta de amor, chiste que é explorado à exaustão (e com maestria) pelo diretor, que atinge assim alguns dos momentos mais efetivamente engraçados de seu filme, antes do ponto de virada romântico que se instala quando o casal resolve se proteger da chuva num observatório espacial. Confessando a Sophie que este era um de seus locais preferidos na infância, Stanley afirma que sempre ficara amedrontado diante da formosura estelar, por mais acachapante que ela seja. Sophie insiste para testemunhar este vislumbre galáctico e, encantada, questiona Stanley acerca do porquê de seu temor. Ele responde laconicamente: “por causa de sua extensão”. Quem acompanha a prolífica obra de Woody Allen, sabe o quanto a irrefreável expansão do universo o assombra desde a infância! (risos)

 Para além da quase onipresença de Colin Firth ao longo da narrativa, deve-se elogiar não apenas o arrebatador desempenho de Emma Stone, mas também a coadjuvação mui digna de Eileen Atkins como a apaixonada tia Vanessa, as interessantes aparições de Marcia Gay Harden como a oportunista mãe de Sophie, as imitações neurastênicas levadas a cabo por Simon McBurney (Howard, melhor amigo de Stanley), a simpatia idosa de Jacki Weaver (Grace) e a irritação proposital desencadeada por Hamish Linklater, que interpreta Brice Catledge, o noivo rico de Sophie, compulsivo tocador de ukulele.

 Se, numa primeira impressão, estes personagens tendem a irritar por causa de seus caprichos classistas, logo os mesmos são habilmente justificados pelo roteiro, que se revela uma ode mui benevolente ao amor, que cumpre o que é prometido por seu título singelo. Tecnicamente, o filme apresenta o mesmo apuro reconstitutivo de “Tiros na Broadway” (1994), sendo a já enaltecida direção de arte bastante adequada às intenções enternecedoras do diretor, que entrega um de seus filmes menos ferinos, levando-se em consideração que, não obstante a suma ironia do protagonista, tudo converge para uma reconciliação afetiva incondicional, na qual o amor é “desmascarado” enquanto ilusão, mas, ainda assim, ele é aceito e bem-quisto, complementando a aceitação das frases jubilosas que relembram citações literárias de Charles Dickens (1812-1870).

O sol brilha com intensidade em praticamente todas as seqüências, as árvores são floridas e os personagens lidam bem-humoradamente com os percalços da vida. Será que, tal qual acontece com o protagonista Stanley, Woody Allen também se tornou um otimista?

 Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 27 de maio de 2014

X-MEN: DIAS DE UM FUTURO ESQUECIDO ('X-Men: Days of Future Past') EUA/Inglaterra, 2014. Direção: Bryan Singer.

Um traço que se destaca positivamente nos filmes com super-heróis derivados das histórias em quadrinhos escritas por Stan Lee é que seus personagens são comumente atormentados por dilemas pessoais, por fracassos amorosos e por crises existenciais que justificam os embates com seus antagonistas, visto que os ditos vilões são igualmente atormentados por dores aparentemente incuráveis. Na cinessérie protagonizada pelos X-Men, há um diferencial ainda mais afirmativo: além das tradicionais lutas entre heróis e vilões, concede-se vital importância a uma cisão interna no primeiro grupo, já que a categoria dos mutantes é subdivida entre aqueles que apóiam a convivência com os humanos [o grupo liderado pelo Professor Xavier] e aqueles que os consideram uma ameaça [aqueles comandados por Magneto].

Em outras palavras: o que torna “X-Men: O Filme” (2000) e “X-Men 2” (2003), ambos dirigidos por Bryan Singer, tão aprazíveis é que eles recusam o maniqueísmo recorrente no gênero, de maneira que os efeitos especiais e as cenas de ação são validadas por situações eminentemente dramáticas, relacionadas a metáforas do preconceito que vitima homossexuais e negros, principalmente. Não por acaso, pode-se identificar reminiscências de assunção homoerótica nos diálogos em que os mutantes [em especial, os adolescentes] confessam-se como tais para outrem e muitos exegetas apressaram-se em identificar similaridades entres os posicionamentos divergentes de Xavier e Magneto e os discursos anti-racismo de Martin Luther King (1929-1968) e Malcolm X (1925-1965), que apregoam a não-violência e o revide, respectivamente.

Diante de tudo isso – e sabendo-se que Bryan Singer retornou à direção de um capítulo da cinessérie após os simplismos directivos de Brett Ratner em “X-Men: o Confronto Final” (2006) e a reconstituição bem-aventurada do universo dos personagens em “X-Men: Primeira Classe” (2012, de Matthew Vaughn) – tinha como “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” (2014) malograr? Infelizmente foi o que (quase) aconteceu...

 Apesar dos recursos eficientes de direção [a seqüência em que acompanhamos o modo como Pietro Maximoff/Mercúrio (Evan Peters) se relaciona com sua hiper-velocidade, ao som de “Time in a Bottle” (interpretada por Jim Croce), é simplesmente antológica!] e dos desempenhos eficientes do elenco (Michael Fassbender, por exemplo, está soberbo!), o roteiro de Simon Kinberg [baseado numa trama de Chris Claremont e John Byrne] é tão prejudicial em sua obsessão anistórica que decepciona largamente quem se empolgara com o inspirado título deste novo capítulo da saga.

Se, na cinessérie iniciada por “MIB – Homens de Preto” (1997, de Barry Sonnefeld), faz sentido a menção cômica de que celebridades como Andy Warhol e Michael Jackson seriam alienígenas disfarçados, neste filme, as concatenações pretendidas entre os feitos dos personagens e eventos da história (bélica) dos EUA soam inconvincentes e negativamente problemáticas, seja no que diz respeito à suposição de que Magneto teria assassinado o presidente John Fitzgerald Kennedy (segundo o personagem, ele, na verdade, tentou salvá-lo, visto que ele também era um mutante), seja nas referências acríticas (leia-se ufanistas) à crise dos mísseis em Cuba, à Guerra do Vietnã e aos atos públicos supostamente benevolentes de Richard Nixon.

Ou seja, além de atrelar estes eventos à participação ativa dos mutantes como se fossem meros chistes [sem posicionar-se de forma ideologicamente contrária às guerras entre humanos] o roteiro ainda comete a discutível (e reprovável) opção de ignorar a continuidade com os demais filmes: toda a participação de Mística (interpretada de forma impassível por Jennifer Lawrence) neste filme vai de encontro ao que Rebecca Romijn-Stamos faz sob a pele da personagem nos capítulos anteriormente lançados, hipertrofiando o aspecto de brecha no tempo que Kitty Pryde (Ellen Page) apregoa antes de fazer com que Wolverine (Hugh Jackman) reencarne em seu próprio corpo, cinqüenta anos antes.

Num dado momento, Hank McCoy (Nicholas Hoult) insinua que a linha do tempo agiria como a movimentação de uma onda aquática, de modo que, não importa os empecilhos eventuais, esta sempre seguiria o seu curso conforme programado. Do modo precário como este filme é narrativamente conduzido, “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” seria dotado de maior significação se fosse um sonho – ou melhor, um pesadelo – de alguns dos personagens!

 Ainda mencionando os defeitos do mau roteiro de Simon Kinberg, vale acrescentar que o modo como Xavier (na faceta vivificada por Patrick Stewart) lamenta que os mutantes sejam “tão poucos” em 2023 – por mais justificadamente defensável que esta lamentação quantitativa pareça frente à perseguição inclemente e letal dos Sentinelas robóticos – contradiz o seu elã integracionista, visto que este langor racialmente guetificado ignora a amplitude social das propostas educativas deste personagem nas obras anteriores.

 O foco exacerbado nas pesquisas científicas de Bolivar Trask (Peter Dinklage) tem por intuito impedir que o espectador constate o quanto o enredo abole a complexidade estrutural das exigências não necessariamente vilanazes de Magneto: do jeito como aparece no filme, os temores militares envolvendo os mutantes são apartados dos clamores por convivência mútua que constituem o mote geral da saga, inclusive enquanto substrato de seus combates. O que era previamente uma imponente questão sociopolítica torna-se um tedioso (e/ou oportunista) ‘mcguffin’ de segurança nacional, de maneira que os personagens são desprovidos de motivação comunal, tornando-se pouco interessantes em sua previsibilidade de ações.

 O apelo final às “escolhas que podem mudar o mundo” (quando Mística desiste de matar o anão cientista e Magneto foge, sem conseguir assassinar o presidente dos EUA, vivido por Mark Camacho) configura-se num clichê melodramático preguiçosamente defendido, cuja continuidade factual (Wolverine acordando num futuro paralelo, ao lado de seus companheiros do primeiro filme, ao som da recorrente “The First Time Ever I Saw Your Face”, interpretada por Roberta Flack) é negada pela revelação posterior de que Mística estaria disfarçada como o major Stryker (aqui vivido por Josh Helman) quando de seu resgate das águas. Isto não impediria que o mutante auto-regenerativo tivesse o seu esqueleto substituído por ‘adamantium’ e, como tal, associado às propriedades que o tornaram sumamente conhecido? Mais que isso: se as garras que atravessam as falanges do mutante, em 1973, são compostas por ossos, como ele conseguiu socar os utensílios metálicos que Magneto arremessa contra ele na luta derradeira? Tudo bem que verossimilhança não seja uma propriedade rigorosamente exigida em filmes de super-herói, mas respeito à lógica interna da obra era o mínimo que se podia esperar de um filme singeriano...

Não obstante desvirtuar lancinantemente os méritos intrínsecos do universo criado por Stan Lee e Jack Kirby, “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” não é um filme ruim: conforme dito antes, a direção é muito boa; as canções de época são apropriadamente utilizadas enquanto ‘leitmotifs’; a montagem de John Ottman, parceiro habitual do diretor (que também assina a trilha musical) é ótima; e os efeitos visuais – deveras perceptíveis na apreciação de um filme como este – são portentosos.

 Pena que os ótimos atores envolvidos no projeto não tiveram a oportunidade de dotar os seus personagens com motivações que transcendessem a belicosidade (ainda que num viés reativo): Omar Sy está subaproveitado como Bishop; Ian McKellen (excelente como o envelhecido e regenerado Magneto), a pitoresca Blink (Fan Bingbing) e o recruta mutante com poderes radioativos aparecem muito pouco; e Ellen Page oferece uma interpretação apenas funcional. Apesar de serem identificados como super-humanos, os mutantes neste filme agem como versões mecanizadas dos homens, subjugados e estigmatizados por seus próprios dons.

Numa cena potencialmente vigorosa, o jovem Charles Xavier (vivido sem frescor por James McAvoy) ouve prantos multilíngües quando tenta contatar mentalmente os mutantes ao redor do mundo, no afã por encontrar a sua amada Raven/Mística. O que poderia render um ótimo momento de discursividade cinematográfica torna-se um reles pretexto para que o alegado “coração partido” do personagem seja pleonasticamente identificado. Uma lástima! E, pelo que se pôde perceber ao final dos créditos de encerramento, o filme vindouro, “X-Men: Apocalipse” (programado para ser lançado em 2016), dará continuidade aos males identificados aqui: a História dos X-Men (em letras maiúsculas mesmo) transformou-se num mero pasticho comercial.

Ao contrário do que se defende na empolgante vinheta genética de abertura, mais um típico caso de involução hollywoodiana foi posto em cena!

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

PRAIA DO FUTURO (Brasil/Alemanha, 2014). Direção: Karim Aïnouz.

Por mais desengonçado que seja este filme (principalmente em seu caricato terço final), é inegável que Karim Aïnouz realizou um trabalho autoral: as obsessões narrativas e formais de suas obras anteriores ressurgem transmutadas sob a atmosfera teutônica da cidade em que o diretor atualmente habita.

Protagonizado por um Wagner Moura cujo maior mérito é suplantar as encarnações elogiosas doutros filmes [o propalado heroísmo de Donato nada tem a ver com as façanhas dúbias do Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” (2007, de José Padilha), por exemplo], “Praia do Futuro” escancara em seu título uma preciosa chave interpretativa, ostensivamente divulgada durante os créditos finais, quando o logotipo de abertura aparece invertido.

Ou seja, se no início do filme, Praia do Futuro designa um substantivo próprio, o local no qual Donato trabalha como salva-vidas, em seu segmento final, este título é revestido de uma forte envergadura conotativa, metonimizado no instante em que Donato mostra a seu irmão Ayrton a praia alemã que ainda não é assim percebida, visto que, naquele instante, o mar fora deslocado para outro lugar. Num trecho bastante conciso, o diretor (e co-roteirista) sintetiza brilhantemente os seus intentos fílmicos, embora estes sejam prejudicados justamente pela má concepção do personagem Ayrton, mal-interpretado na infância pelo garoto Sávio Ygor Ramos e vivificado sem intensidade na idade adulta por Jesuíta Barbosa.

Felipe Bragança é creditado como autor do roteiro, ao lado do próprio diretor, mas os nomes de Anna Muylaert, Marco Dutra e Marcelo Gomes também são citados como colaboradores. Diante disso, não se sabe precisamente de quem é a responsabilidade pelas soluções equivocadas do terceiro segmento do filme, “Um Fantasma que Fala Alemão”, que, apesar de ser deveras elucidativo, é também o menos interessante.

Nesta terceira parte do filme, a trilha musical originalmente composta por Volker Bertelmann (que aparece como Hauschka) destaca-se com mais vigor, pontuando momentos encantatórios, como aquele em que Ayrton observa o trabalho de um mergulhador que limpa as paredes vítreas de um imenso aquário (antes de sabermos que este é Donato) ou o longo plano móvel que antecede os créditos de encerramento, no qual os veículos em que estão o trio de personagens deslocam-se numa passagem enevoada, enquanto o protagonista vivido por Wagner Moura recita uma carta imaginariamente escrita por ele (apelidado de Aquaman, como seu irmão o chamava) para Ayrton (cognominado Speed Racer), em que se chega à conclusão de que “existem dois tipos de medo: o de quem finge que nada é perigoso, e o de quem sabe que tudo é perigoso”. A distinção é evidente entre ambos os irmãos, por mais que a forçação dramática de cunho familiar quase desperdice a pujança emotiva desta declaração.

No segundo segmento do filme, o esplêndido “Um Herói Partido ao Meio”, a fotografia magistral de Ali Olay Gözkaya é utilizada no auge de sua beatitude: o instante em que Donato é mostrado ébrio numa boate, ao som de uma linda canção turca, pouco depois de comunicar ao seu amante que planeja voltar para o Brasil, é maravilhoso, pontuado por uma tonalidade avermelhada embriagante. O insigne momento em que Konrad (Clemens Schick) cantarola “Aline”, famosa canção do francês Christophe, num karaokê doméstico para Donato faz com que tenhamos a impressão de que este segmento é uma espécie de versão gélida do mesmo estado de espírito que preenchia o árido e passional “O Céu de Suely” (2006).

Não obstante o título deste segundo capítulo fazer menção ao caráter de Donato – que, apesar de reclamar que o seu coração e o seu cérebro não estão integralmente devotados a Konrad, desiste de retornar para o seu país-natal, para a sua família e para o seu antigo emprego – é o personagem alemão quem se sobressai dramaturgicamente, sendo bastante convincente em suas omissões íntimas (quem é a garotinha que aparece num quadro pendurado na parede de sua sala, por exemplo?), mancomunando-se brilhantemente ao estilo elíptico da trama. A cena em que, numa brincadeira de namorados, Konrad impede que Donato, recém-chegado à Alemanha, mergulhe num rio e o diálogo que eles travam num parque – quando começa a nevar exatamente após Donato reclamar que “não suporta viver num lugar sem praia” – são duas comprovações adicionais da maestria romântica deste segmento intermediário.

 Se, ao término do filme, a execução da icônica canção de David Bowie “Heroes” (convertida subitamente na versão alemã da mesma, “Helden”), parece uma escolha demasiado óbvia – mas compensada pela efetividade beatífica do fundo exageradamente vermelho dos créditos finais [que realça a significação idealizada do título da realização prévia do cineasta, o malfadado “O Abismo Prateado” (2011)] –, em sua maravilhosa seqüência inicial, Konrad e um amigo (que morrerá afogado) são mostrados dirigindo suas motocicletas em altíssima velocidade pelas paisagens fascinantes da capital cearense, Fortaleza.

 Com o falecimento do amigo do protagonista – cujo corpo não será encontrado – Konrad aproxima-se eroticamente de Donato, de um modo tão brusco quanto foi a morte do outro, que ele conhecera durante uma operação bélica no Afeganistão: Konrad e Donato transam no interior de um automóvel poucas horas após este último informar ao primeiro sobre o fato que intitula o segmento em pauta, “O Abraço do Afogado”. “Praia do Futuro”, destarte, é um filme que traz em sua própria moldura [a ótima montagem de Isabel Monteiro de Castro, parceira habitual do diretor] o esfacelamento afetivo que advinha do cotidiano profissionalmente opressivo do protagonista do genial “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, co-dirigido por Marcelo Gomes). Não é feliz em todos os seus propósitos pois o que parece ser mais proposital nos envolvimentos amorosos focalizados pelo diretor é justamente a constância da infelicidade, que, por sua vez, não prescinde de píncaros epifânicos de beleza. O olhar desolado de Sophie Charlotte Conrad como a abandonada Dakota, jovem loira com quem Ayrton tenciona fazer sexo anal, é uma vigorosa demonstração deste pressuposto, fazendo com que a viagem afoita de Donato seja permeada por anseios muito mais urgentes que “dar o cu escondido no Pólo Norte”, conforme seu irmão insinua, numa manifestação de rancor acumulado.

É um filme autoral, que afeta até mesmo quem ousa desvencilhar-se das identificações pessoais com os personagens marcados pelas emoções sub-reptícias, inclusive quando estas parecem explodir em agressões imitativas e aparentemente inofensivas de estórias de super-heróis lutando contra vilões, em que o suicídio aparece como solução válida após o extermínio do derradeiro inimigo...

Wesley Pereira de Castro.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

OBJECTIFIED ('Objectified'') EUA, 2009. Direção: Gary Hustwit.

AVISO PRÉVIO: este artigo é, na verdade, decorrente de uma crise produtiva aliada a uma exigência em sala de aula. Um professor pediu que resenhássemos um longa-metragem incisivo em suas observações sobre o 'design', e comparássemos alguns de seus conceitos com a atividade jornalística. Gostei muito do filme, mas não sei se entendi bem a exigência avaliativa. O resultado é o que se segue. 

Produzido como parte de um projeto mais amplo do cineasta Gary Hustwit sobre as influências do ‘design’ gráfico na sociedade [antes dele foi lançado “Helvetica” (2007, ainda não-visto), sobre tipografia; e, em seguida, “Urbanizada” (2011), sobre a planificação urbana de diferentes cidades ao redor do mundo], “Objectified” tem como ponto de partida um jargão proferido por um dos entrevistados: “o ‘design’ é a busca da forma”. A partir disso, o filme discute variadas questões relacionadas à dicotomia entre formato e funcionalidade.

Num dos momentos mais inspirados do filme, um ‘designer’ compara três diferentes tipos de aspiradores de pó: um deles é tão bonito que, além de servir para aspirar o pó dos ambientes, pode ser utilizado como adorno; um segundo tipo se destaca pela capacidade de penetrar em espaços íngremes; e um terceiro chama a atenção pelos benefícios interativos, chegando ao luxo de poder ser manobrado por um hâmster. Num cotejo com a atividade jornalística, esta apresentação tripartite das propriedades do ‘design’ leva-nos a questionar os conceitos-chave explorados pelo entrevistado: as relações entre o formato de um determinado produto e a sua contribuição utilitária, sua diferenciação externa e seu potencial de reatividade às particularidades dos usuários ou consumidores.

 Entendendo-se os resultados jornalísticos como produtos midiáticos, é possível adotar as mesmas preocupações externadas pelos ‘designers’, no filme, em relação aos “excessos” de sua profissão no contexto exageradamente competitivo da Indústria Cultural hodierna, marcada sobretudo pela globalização. Não por acaso, o filme acompanha a similaridade das campanhas publicitárias de determinados artefatos tecnológicos em diferentes países, demonstrando o quanto a disseminação popular destes visa à massificação do consumo, que, em sua imposição, tolhe as particularidades culturais dalgumas regiões. Cabe ao jornalista, portanto, a investigação sobre as condições de apropriação de um determinado requisito noticioso num dado local, o que, no caso do documentário, encontra eco no depoimento da ‘designer’ que traz à tona questões de sustentabilidade ou preservação ambiental.

No filme, é dito que “as pessoas são criativas por natureza e nem sempre se satisfazem com aquilo que lhes é ofertado”, o que não implica numa ode desenfreada à manipulação ‘per si’ das formas: quase todos os depoentes concordam que, no ‘design’, a (aparência de) simplicidade é um dos maiores méritos, o que equivale à concisão e a linearidade dos textos jornalísticos, comumente normatizados através de modelos como os de ‘lead’ ou da “pirâmide invertida”.

Ampliando a comparação – e escolhendo um dado tipo de produto jornalístico (a crítica cinematográfica, por exemplo) – tem-se a oportunidade de investigar em quais medidas a “forma” de um texto destaca-se ou coaduna-se a seu conteúdo, sendo o equilíbrio entre uma e outro o seu ideal. É interessante como, no filme, uma anedota elementar sobre um problema engendrado pela diferenciação excessiva de formatos (as flechas personalizadas de uma determinada tribo indígena, que, por serem distintas de um a outro individuo, não podiam ser reutilizadas em arcos alheios) justifica a existência de normas reguladoras e de referências diacrônicas no ‘design’, tanto quanto acontece no Jornalismo enquanto curso universitário.

A saturação de formatos – muitos deles “inúteis” ou preciosistas – é uma conseqüência nociva da industrialização exacerbada, problema este que, por ser equanimente despejado pela cultura de massa, interfere na maneira como as pessoas (ou os consumidores) relacionam-se afetivamente com os produtos que adquirem, visto que não apenas “todo produto conta a sua própria história” (percepção atribuída ao industrial Henry Ford) como faz sentido o conselho ofertado por um dos ‘designers’ ao final do documentário: “tu és a única audiência que importa”. Ao final do documentário – e da comparação jornalística aqui pretendida - quedam, portanto, muito mais questões que respostas!

Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

DIVERGENTE ('Divergent') EUA, 2014. Direção: Neil Burger.

Para além de suas inúmeras similaridades com sagas cinematográficas recentes oriundas de séries literárias comercialmente bem-sucedidas, esta adaptação do ‘best seller’ homônimo de Veronica Roth (que também é co-produtora do filme) é assaz prejudicada pela insipidez de seus personagens. Não obstante o pressuposto distópico do filme ser deveras interessante (uma Chicago futurista, em que a população se divide num quinteto de facções diferenciadas entre si), este é erigido sobre contradições elementares, que, se desafiadas em seus limites mitômanos, solapam previamente o entrecho. Afinal de contas, se a imposição do sistema de facções tem por finalidade dirimir os conflitos entre os habitantes, por que perduram as rixas entre os seus membros?  

Mais: se cada habitante, ao completar dezesseis anos de idade, precisa ser submetido a uma espécie de teste vocacional, a fim de verificar com qual facção tem mais afinidade (a despeito de sua educação familiar até então, pois “a facção vem antes do sangue”), por que é-lhe conferido o direito de escolha numa etapa posterior?  

Ainda mais: por que os chamados “divergentes” (indivíduos que demonstram, no teste, características simultâneas de mais de uma facção) são tão perigosos para a mantença deste sistema se o enquadramento intra-faccional é derivado muito mais de uma vontade de adaptação (vide a submissão voluntária à dureza do treinamento atribuído aos novatos nas facções) que a uma distinção entre os caracteres elementares de cada grupo? Ou se acredita realmente que Audácia, Erudição, Amizade, Franqueza e Abnegação são virtudes independentes?

Sendo todos estes questionamentos efetuados pelo espectador ainda no início do filme, quando ele está sedimentando as bases mitológicas do roteiro escrito por Evan Daugherty e Vanessa Taylor, fica difícil contaminar-se pela pretensa seriedade sociológica da trama, que é um amontoado divertido de clichês inicialmente segregacionistas que remetem muito mais aos ‘tokusatsu’ que aos livros/filmes seriais com que se assemelha externamente.

Não obstante o enredo geral da trilogia de Veronica Roth servir-se de uma premissa bastante semelhante à série “Jogos Vorazes”, escrita por Suzanne Collins e que redundou num péssimo longa-metragem inicial dirigido por Gary Ross em 2012, a questão da vocação grupal pré-direcionada já era basilar nas aventuras vivenciadas por Harry Potter e seus amigos na série literária escrita por J. K. Rowling, em que um Chapéu Seletor indicava se os personagens infantis pertenciam a escolas como Grifinória, Sonserina, Lufa-Lufa ou Corvinal. O que se destaca em “Divergente” é a quantidade de etapas em que essa escolha/indução vocacional se dá, bem como as suas conseqüências, sendo a pior delas a sina de tornar-se um “sem-facção”, espécie de categoria mendicante que, no filme, é assistida pelos abnegados.

 Apesar de falaciosas, as diferenças entre os membros das diferentes facções são pertinentemente realçadas por comportamentos exagerados, como: a aparência presunçosa dos eruditos (que assumem as funções científicas); a indumentária ‘hippie’ dos amigos (que são lavradores); a ausência de vaidade dos abnegados (que são assistentes sociais); o compromisso com a verdade dos francos (que são advogados); e a coragem baderneira dos audaciosos (que, pela coragem demonstrada, são policiais, protetores do Sistema). Por possuir todas estas qualidades ao mesmo tempo, a protagonista Beatrice Prior, mais tarde auto-rebatizada Tris, poderia ser uma personagem bastante complexa, mas sua composição soçobra na rotina árdua da emulação espartana em Audácia. Ou seja, por mais que a interpretação de Shailene Woodley seja eficiente, a condução da personagem é unilateral e emocionalmente insossa, atravessada por momentos súbitos ou inverossímeis, como quando a sua mãe (Ashley Judd, patética) revela, na prática, ter sido criada em Audácia, antes de tornar-se uma abnegada.

 Prosseguindo com a enumeração dos defeitos contextuais de “Divergente”, sobressai-se o mau delineamento da oposição política entre os líderes eruditos e abnegados, visto que a retroalimentação da beligerância entre eles extermina a funcionalidade institucional da divisão entre facções, que deveriam ser cooperativas e não competitivas entre si. Kate Winslet dota a malévola Jeanine de muito charme, mas a sua constituição personalística é reles, como acontece em relação a todos os demais vilões [ou arremedos de vilões, como o impiedoso Eric (Jai Courtney)] do filme.

Os avatares de benevolência são também inócuos, conforme verificamos na apática participação de Tony Goldwyn como o pai de Beatrice, ou nas aparições de Christina (Zoë Kravitz), franca convertida em audaz que se torna a melhor amiga de Tris. Ansel Elgort goza de alguns bons momentos como Caleb, visto que o seu personagem é dúbio (indubitavelmente abnegado, mas rapidamente cooptado pelos eruditos), enquanto Theo James chama a atenção como o misterioso Quatro, um dissidente da facção Abnegação, que desertara após ser espancado pelo pai (Ray Stevenson), quando abandonou o seu nome de batismo, Tobias Eaton, e se consolidou como um dos treinadores de Audácia. Sua beleza física e seu carisma indisfarçável somam-se num dos melhores atributos humanos do filme, malgrado a extrema assexualidade do enredo desperdiçar lancinantemente os seus méritos eróticos, visto que a ameaça da perda da virgindade configura-se num dos medos supremos de Tris, ao lado do perigo de atolar o pé num pântano enquanto é atacada por corvos durante um incêndio.

Em outras palavras: a configuração psicológica do roteiro é esdrúxula, sendo as situações de enfrentamento alucinógeno experimentadas por Tris absolutamente canhestras em sua obviedade adolescente, principalmente no que diz respeito ao aproveitamento de seus benefícios enquanto divergente, praticamente irrelevantes durante o seu treinamento. A cena em que Tris escala uma roda-gigante ao lado de Quatro – quando se descobre que este último, também divergente, tem medo de altura – é vergonhosa em seu romantismo simplista, principalmente no instante em que Quatro, impressionado com a desenvoltura com que a rapariga se movimenta nas ferragens, pergunta-lhe se ela não é humana. Tem como levar a sério uma necedade destas? 

Apesar de não ser necessariamente mal-dirigido (Neil Burger conduz com destreza as exigências de ação do filme), “Divergente” possui uma trilha sonora exclusivamente vendável (Hans Zimmer aparece como consultor, mas a música original é de Junkie XL, enquanto Snow Patrol interpreta “I Won’t Let You Go” durante os créditos finais) e um ritmo titubeante (ágil demais nalguns momentos; langoroso noutros), o que talvez agrade a um público-alvo juvenil.

Preocupado muito mais em ser o capítulo inicial de uma trilogia que um filme em si (os direitos autorais de “Insurgente” e “Convergente”, livros posteriores da escritora, já foram vendidos para o cinema, e devem ser lançados em 2015 e 2016), “Divergente” não incomoda tanto quando julgado com proposital distanciamento: seu roteiro deixa extremamente evidente a pretensão de apenas entreter a platéia com clímaxes persecutórios ou belicosos, secundarizando ou tornando irrelevante a premissa distópica que parecia tão interessante na sinopse.

As possibilidades de abordagem sociológica à la Émile Durkheim (por causa da solidariedade mecânica no interior das facções) e a exortação das potencialidades individuais frente à consolidação programada dos “fatos sociais” (que, segundo este sociólogo, são gerais, exteriores e coercitivos) são transformadas numa sucessão de melindres actanciais, que deságuam na assepsia formal (por mais que os efeitos especiais sejam muito bons e a direção fotográfica de Alwin H. Küchler seja merecedora de discretos elogios). Uma pena que este filme, obedecendo à tendência dominante no lançamento hodierno deste tipo de produto seriado, vincule-se ao que de mais nocivo podemos identificar enquanto vigência hollywoodiana: o tolhimento da inteligência espectatorial. Não deve ser por acaso que os eruditos são os principais vilões...

Wesley Pereira de Castro.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

LANÇAMENTO DO SEGUNDO LOTE DE CURTAS-METRAGENS PREMIADOS PELA SECRETARIA DO ESTADO DA CULTURA DE SERGIPE: “UMA GRANDE NOITE PARA O AUDIOVISUAL SERGIPANO”?

Quando se tem acesso aos bons projetos que originam produtos audiovisuais qualitativamente imprecisos, a responsabilidade pela avaliação crítica dos mesmos é intensificada. Saber-se (in)diretamente vinculado à aprovação e posterior financiamento destes curtas-metragens é algo que torna a dificuldade em julgá-los ainda mais delicada: o que deve ser priorizado numa análise? Os problemas formais? As limitações conteudísticas? As divergências entre projetos e produtos? As contribuições para o contexto local de visibilidade cinematográfica? A comparação entre os diferentes resultados a partir de um esquema idêntico de investimento? As frustrações pessoais das expectativas críticas? As contaminações ideológicas do “evento” de lançamento?

De uma forma ou de outra, todas essas questões interferem na apreciação dos cinco filmes sergipanos lançados na noite do dia 24 de abril de 2014, numa cerimônia prestigiada por centenas de pessoas, a maior parte delas ruidosamente entusiasmada com o que era exibido na tela improvisada do Teatro Atheneu. Os cinco filmes apresentados na ocasião foram:

 • “Conflitos e Abismos: A Expressão da Condição Humana” (2014, de Everlane Moraes): malgrado o talento inequívoco da diretora e a qualidade gráfica das obras de seu pai, o pintor José Everton Santos, além de novamente abordar questões que tem a ver com a existência pessoal da realizadora, o documentário não possui o mesmo vigor do inventivo “Caixa D’Água: Qui-Lombo É Esse?” (2012), deveras autoral em suas propostas estéticas muito particulares. No filme mais recente, o problema mais evidente é a narração ininterrupta e monocórdia do artista biografado, que soa discursivamente desengonçada [vide o momento em que ele explica o quanto os animais são oprimidos pela “(ir)racionalidade” do homem e, logo em seguida, atesta a suposta inevitabilidade do comportamento carnívoro do ser humano], o que não configura um problema em si (pois o biografado tem o direito de afirmar o que quiser, por mais contraditórias que suas declarações sejam), mas que incomoda pelas translações imagéticas quase omissas da diretora, que comenta estes descompassos por meio de animações óbvias de telas famosas do pintor. Nalguns momentos, máscaras animadas são sobrepostas aos rostos de transeuntes, o que configura ótimos momentos de expressão cinematográfica, mas, noutros, a contribuição actancial de Yuri Alves (por mais esforçada que tenha sido) não acrescenta muito ao que as imagens originais dos quadros já tinham de exorbitantes. Ou seja, até mesmo as benfazejas inserções de contrações faciais de desamparo ou nudez são desperdiçadas na condução pleonástica da narrativa documental, que se encerra abruptamente, como se a montagem definitiva do curta-metragem fosse balizada muito mais pelo prazo de entrega do trabalho que pelas necessidades expressivas da diretora;

 • “Morena dos Olhos Pretos” (2014, de Isaac Dourado): a informação posteriormente divulgada de que este título é apenas um preâmbulo para um bem-vindo e aguardado longa-metragem sobre a cantora Clemilda explica (mas não justifica) a precariedade informativa do curta-metragem. Numa primeira abordagem, o que salta aos olhos, negativamente, é a ausência de depoimentos recentes ou inéditos da própria biografada. Diversos cantores de forró (Genival Lacerda, Erivaldo de Carira, Alcymar Monteiro) prestam suas homenagens locucionais à artista alagoana radicada em Sergipe que lançou, em 1972, o álbum que intitula esta obra. Nas composições, é evidente a sua parceria com Gerson Filho, que participou intensamente da carreira da artista, além de ter se casado com ela, instituindo uma colaboração adicional de “cama e mesa”, como explica a própria cantora. O problema é que esses dados são mal-explicados pela tessitura narrativa do curta-metragem, cuja montagem é ruim, aparentemente fortuita em sua seleção de planos e/ou ordem de depoentes. Num sentido geral, o filme pode ser definido como uma “ode à ausência”, apelido poético que, infelizmente, soa pejorativo, visto que o diretor, apesar de sua proximidade com a extraordinária artista biografada, limita-se a mostrá-la em imagens de arquivo numa entrevista televisiva e nas imagens pessoais do último espetáculo da cantora, no Forró Caju de 2012. Um contra-exemplo documental, portanto;

 • Madona e a Cidade Paraíso (2014, de André Aragão): bastante aplaudido pelo público, este curta-metragem é largamente equivocado em suas opções estéticas. Alguns posicionamentos de câmera (vide o instante em que um diálogo entre as personagens é mostrado por detrás de uma pista de ‘skate’) deixam evidente a pretensão do diretor em se distanciar de uma fotografia tradicional, mas soçobram por causa de sua inorganicidade. Uma exceção deve ser destacada: o gracioso momento em que Madona (caracterização interessante de Ivo Adnil, mas que se desperdiça nas seqüências faladas) e Folosa (Zelda Leite) conversam carinhosamente nas proximidades da Ponte do bairro Santo Antônio, com algumas pedras da beira-mar sendo mostradas em primeiro plano. O contexto permite que a prostituta cantarole a canção de ninar que repete quando encontra o homossexual assassinado na seqüência final, numa rima dramática que só não é melhor por causa da dublagem um tanto canhestra do filme. Outro momento interessante é a participação ‘in loco’ da banda Asas Morenas, no interior de uma casa de meretrício, em que a canção “Eu Sou Virgem”, versão de “Like a Virgin”, de Madonna (o que rende outra valiosa rima formal, desta vez acústica) é executada enquanto o protagonista afetado se requebra e esfrega num palco. Pena que a montagem desta seqüência dissipe o potencial expressivo da mesma, ao esfacelar-se em excesso, tanto quanto acontece no momento em que Madona e Folosa caminham pelo Centro Comercial da cidade de Aracaju. O frenesi de pessoas ébrias no Pré-Caju (constantes de um acervo de imagens previamente filmadas pelo diretor, já indicando a sua intenção de levar a cabo este projeto) impressiona pelo seu realismo elementar, mas parece desconexo em relação ao restante da narrativa, que tenta incomodar duplamente o espectador em seu quartel final (tanto pela inegável violência do modo como Madona é espancada quanto pelos estampidos altissonantes na banda sonora), mas soa artificial, subaproveitada. Ao final da exibição, eram freqüentes os comentários sobre um melhor aproveitamento do filme caso ele fosse intencionalmente ‘trash’ – e não involuntariamente cômico, apesar de suas evidentes (e não de todo rejeitáveis) intenções denuncistas – o que vai de encontro aos arroubos aplaudíveis da platéia. Um dos participantes do filme declarou que haverá uma remontagem posterior do mesmo, com cenas adicionais, que talvez resolva melhor alguns dos conflitos narrativos, mas que ultrapassa o escopo avaliativo do que foi cobrado pelo Edital que o premiou e sob os auspícios do qual está sendo aqui avaliado;

 • “Para Leopoldina” (2014, de Diane Veloso & Moema Pascoini – vide foto): sem dúvidas, o melhor da noite, o mais elaborado em termos de linguagem cinematográfica, que respeita devidamente a duração dos planos e a importância constitutiva das seqüências, não obstante preocupar-se demoradamente com a contratação empregatícia de um personagem deveras irrelevante, por mais que exerça uma função pretensamente interruptiva numa dada seqüência. Salvo por um ou outro deslize de câmera ou enredo (vide o momento em que ambos os problemas confluem, no instante em que a personagem-título interroga uma interlocutora acerca do que ela faz com a própria vida), “Para Leopoldina” é primoroso em sua construção dos planos, chegando a emular uma obra neo-realista de Vittorio De Sica. A interpretação da ótima atriz Diane Veloso é contida e valiosamente taciturna, sobressaindo-se principalmente nas seqüências em que ela é mostrada durante a sua jornada tediosa de trabalho, numa loja de roupas. A melhor cena do filme, inclusive, acontece neste cenário, quando a personagem é focalizada em ‘close-up’, em visível demonstração de infelicidade, diante um pano vermelho, que logo se assume como a proteção têxtil de uma cabine onde as clientes da loja experimentam as roupas que pretendem comprar, num estratagema de reaproveitamento ambiental que tem a ver com consagradas produções orientais recentes. A coadjuvação de Walmir Sandes é também muito boa, visto que a atriz mostra-se muito mais introvertida que de costume, assumindo as dificuldades de sua idade de forma muitíssimo proveitosa para os intentos melodramáticos da trama, que se encerra com um momento de forte impacto (quando sabemos que as cartas que a personagem Lúcia lê para os idosos são desrespeitadas em sua integridade conteudística, a fim de não entristecerem ainda mais os macambúzios internos do asilo) e com um plano de pungente beleza, quando Lúcia caminha demoradamente ao longo de uma alameda e elegantemente abre um guarda-chuva, ao som da trilha sonora original de Leo Airplane e Alex Sant’Anna. Muito bom!;

 • “Operação Cajueiro – Um Carnaval de Torturas” (2014, de Fábio Rogério, Vaneide Dias & Werden Tavares): apesar de ter sido o mais cuidadoso e elaborado dos projetos apresentados para os jurados convocados pela Secult/SE, este curta-metragem foi convertido num documentário esquemático, em que as entrevistas quadriculares são simplesmente justapostas, exceto por uma abertura e por um epílogo jornalísticos. O tema é urgente, o conteúdo das entrevistas é valioso e o título do filme é genial, mas, infelizmente, o documentário falha em sua informatividade. Ou seja, para quem teve acesso ao projeto original ou conheça previamente os episódios concernentes às prisões políticas do Carnaval de 1976, no Estado de Sergipe, os depoimentos de Jackson Barreto, Goisinho, Milton Coelho e Wellington Mangueira  são perfeitamente compreensíveis. Para quem não atende a essas condições espectatoriais, é difícil concatenar as informações, eventos, chagas históricas, detalhes epocais, conformações político-contestatórias e configurações discursivo-sobrevivenciais dos torturados. Ainda assim, o depoimento inicial da mulher que confessa ter “a mania de sorrir até mesmo quando comenta sobre coisas tristes”, antes de cantar a marchinha sobre pó-de-mico que fora lançada nas festividades do ano em que fora presa, emociona e instaura o elogioso contexto de cumplicidade mnemônica com os depoentes, importantes personalidades da política partidária sergipana. Tangencialmente defeituoso no trajeto entre projeto e conformação audiovisual, mas importantíssimo em seu viés documental!

 Após a exibição dos filmes, houve um breve concerto com a Coutto Orchestra de Cabeça, a fim de assegurar que quem estivesse predominantemente interessado em espetáculo não seria agraciado apenas com a audiência aos produtos fílmicos. Entretanto, nem todos se dispuseram a conferir as benesses desta consagrada banda: a maratona de curtas-metragens os exauriu, em sua irregularidade de propostas e feituras. Apesar da intensa inclinação para o âmbito afirmativo do que foi perguntado no título desta publicação, a questão permanecerá astuciosamente em aberto. O desenvolvimento do cinema sergipano exige que as perguntas sejam ainda mais disseminadas que os arremedos entusiásticos (ou gritantes, como aconteceu nos intervalos entre um e outro curta-metragem) de respostas. Que venha o terceiro Edital de incentivo à produção audiovisual!

 Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 15 de abril de 2014

HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO (Brasil, 2014). Direção: Daniel Ribeiro.

Por mais perceptivelmente defeituoso que seja este filme em suas arestas narrativas (principalmente no que diz respeito à amostragem da rebeldia púbere do protagonista), a condução directiva de Daniel Ribeiro é tão aprazível e seus temas são tratados com tamanha sutileza que a recepção positiva nalguns festivais internacionais de cinema torna-se deveras justificada. Afinal de contas, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” apresenta desde o início uma característica fundamental: ele consegue se comunicar muito bem com seu público, principalmente o juvenil, sem subestimá-lo.

Pode-se reclamar que o desenvolvimento enredístico da superproteção dos pais de Leonardo (Eucir de Souza e Lúcia Romano) seja ruim e que algumas situações levem o protagonista a fazer jus à pecha de garoto mimado, mas o roteiro do próprio diretor é incrivelmente verossímil. Na seqüência inicial, Leonardo (Ghilherme Lobo, esforçado mas nem sempre convincente) e Giovana (Tess Amorim, extraordinária) estão deitados na beirada de uma piscina, avaliando o nível de preguiça que sentem em relação às férias. A garota, então, comenta que deseja ser exposta a alguma situação dramática ou emotiva que institua novos desafios em seu cotidiano, o que toma a forma de Gabriel (Fábio Audi), um gracioso moço do interior que se interporá involuntariamente nesta amizade, tal qual a metáfora do eclipse que será explicada pelo próprio recém-chegado, e posteriormente recontada por Leonardo, numa das várias rimas roteirísticas costuradas por Daniel Ribeiro. Um enquadramento muito similar a este inicial, no qual Gabriel é acrescentado, também deitado à beira da piscina, demonstra o quanto a direção é competente, cosendo a trama de maneira elogiosamente orgânica!

Tendo realizado anteriormente os ótimos curtas-metragens “Café com Leite” (2007) e “Eu Não Quero Voltar Sozinho” (2010), Daniel Ribeiro se destaca pela coerência temática de sua obra, na qual o homossexualismo aparece de forma decisiva e, ao mesmo tempo, circunstancial, visto que o que interessa realmente para o diretor são as relações familiares ou vicinais que se estabelecem ao redor de casais homossexuais confrontados com dificuldades tão plausíveis quanto corriqueiras (a morte dos pais e a guarda de uma criança, no primeiro caso; a eclosão de paixões platônicas e a deficiência visual do protagonista, no segundo).


Malgrado reutilizar o mesmo elenco, personagens e situações-chave do curta-metragem mais recente, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” apresenta uma espécie de “realidade paralela” em relação ao filme similar, ampliando o escopo de coadjuvantes que circundam o protagonista. Dentre estes, a sapiente avó interpretada pela veterana Selma Egrei, a espevitada adolescente Karina (Isabela Guasco) e o malicioso colega de classe Fábio (Pedro Carvalho) se destacam por suas atuações e intervenções personalísticas absolutamente desenvoltas. Não obstante ser equivocada no que tange à exibição do cotidiano doméstico de Leonardo, a direção de atores no filme é aplaudível: o elenco juvenil é ótimo, tanto na interação matreira da roda de beijos numa festa quanto em momentos sustentaculares, como aqueles em que Giovana consegue doses de vodca com um colega, em seu “QG alcoólico" [risos].

 Eficientemente coadunada à valorosa chefia de Daniel Ribeiro, a direção fotográfica de Pierre de Kervoche demonstra-se superlativamente eficiente em ocasiões delicadas e/ou arriscadas como: o longo plano móvel que exibe os diferentes comportamentos dos personagens na festa de Karina; o instante em que Leonardo, vestindo apenas uma cueca branca, masturba-se ao sentir o cheiro do suéter que Gabriel esqueceu em seu quarto; a conversa entre Giovana e Gabriel num banheiro estilizado; e a incrível cena de banho num vestiário vazio, em que Gabriel excita-se sexualmente ao observar a nudez de Leonardo, cujos detalhes glúteos são mostrados em ‘close-up’. Esta última seqüência, inclusive, é bem-aventurada na instauração de uma dúvida elementar acerca da homossexualidade prévia de Gabriel, já que ele corroborava uma desenvoltura normalizada em relação à nudez coletiva e, ainda assim, não conseguiu conter sua ereção.

 No caso de Leonardo, tal direcionamento sexualista surge de maneira impressionantemente arguta, ao contrário dos embates forçados com seus pais no que tange à vontade de fazer um intercâmbio escolar nos EUA ou do vexatório momento em que ele pede a seu pai que o auxilie a se barbear. Nada que atrapalhe duradouramente os beneplácitos dialogísticos, assaz divertidos tanto em situações prosaicas (como quando Giovana imagina o constrangimento que a atingiria caso ela fosse Plutão e recebesse a notícia de que não é mais um planeta, ou quando uma professora de História diz ao aluno que lhe pergunta se pode fazer um trabalho numa “dupla de três” que ele deve redirecionar esta questão à professora de Matemática) quanto intensamente emocionais (a reconciliação de Giovana e Leonardo, por exemplo).

 “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, conforme dito no início, é um filme defeituoso, mas esquiva-se mui competentemente das dificuldades inerentes à feitura de uma comédia romântica brasileira, principalmente quando atravessada por tantos temas instauradores de cautela, como a cegueira e a homossexualidade adolescente, geralmente abordados de forma ostensivamente unilateral.

Apesar de algumas das insatisfações habituais de Leonardo contribuírem para a sua rotulação como um rapazola melindroso, isso é vinculado tanto ao excesso de zelo de seus pais quando às suas favoráveis condições aquisitivas, sendo esta conotação classista algo que pode distanciar determinados espectadores de uma identificação generalizada.

A trilha sonora ‘indie’ – que mescla as composições clássicas de Johann Sebastian Bach e Piotr Tchaikovsky que Leonardo utiliza como toques personalizados de seu telefone celular a canções de Cícero, Belle and Sebastian, David Bowie e The National que Gabriel e Giovana apreciam – ganha pontos adicionais pelo esforço emocionalmente percussivo, fazendo com, que este filme seja, sobretudo, um inspiradíssimo retrato geracional. Por este motivo, merece ser analisado de forma tão complacente!

 Wesley Pereira de Castro.