terça-feira, 20 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: MISS MARX (2020, de Susanna Nichiarelli)


     Depois de biografar, com refinado êxito, a musa da banda The Velvet Underground, a diretora italiana Susanna Nichiarelli volta a biografar uma importante personagem feminina que passou boa parte da vida à sombra de outrem: se Christa Päffgen [1938-1988] permanece até hoje lembrada pelo apelido célebre que não mais apreciava, Nico, Eleanor Marx [1855-1898] ansiava para ser novamente chamada de Tussy, como era conhecida em família... 

    Filha do célebre economista Karl Marx [1818-1883], ideólogo do Socialismo, Eleanor reclamava continuamente de não poder expressar-se livremente em sua residência, onde fôra contratada como funcionária do próprio pai, até converter numa importante predecessora feminista, no final do século XIX. Ocorre que, diante de um cabedal inevitável de contradições - sobretudo, aquisitivas - ela sucumbiu perante as traições recorrentes de seu marido ilegítimo, o médico Edward Aveling, até que suicidou-se, aos 43 anos de idade. Nada disso é segredo: é História. O que o roteiro do filme faz é completar as lacunas, a partir das obsessões pessoais da diretora com a temática da depressão e do abandono concedido às mulheres.


    Deveras inquieta, Eleanor lida com os inúmeros problemas familiares, mal administrados quando seus pais ainda estavam vivos (inclusive, um envolvimento entre o patrono de marxismo e sua criada), e toma partido dos proletários explorados e maltratados não apenas em sua Inglaterra natal, mas em diversas cidades do mundo. E o filme opta por mostrá-la como uma mulher continuamente enganada e imperceptivelmente submissa, a despeito dos conselhos de seus amigos. Independentemente de as situações apresentadas não serem inverossímeis, há algo de muito problemático nas opções roteirísticas da diretora. Afinal, as contradições enfatizadas podem anular discursivamente as conquistas políticas da personagem real. Lidar com ideologias é sempre muito delicado, sobretudo quando confrontadas a uma torrente malograda de sentimentos!


    Optando por um viés reconstitutivo que amalgama as convenções de época a estratagemas anacrônicos, como a trilha cancional da banda 'punk' Downtown Boys, o filme visa obter à obtenção do mesmo chamariz juvenil de público que "Maria Antonieta" (2006, de Sofia Coppola), mas os resultados tramáticos são bastante distintos: no filme mais antigo, há um edificação progressiva do caráter da biografada, enquanto que, no filme mais recente, a personagem é tão sufocada que precisou acabar com a própria vida. Num 'flashback', uma versão infantil de Eleanor Marx aparece dizendo que o seu lema favorito é "siga adiante". Implantar este conselho após a seqüência de suicídio da personagem é algo que possui conotações sobremaneira ambíguas. Quase um estímulo ao ato extremo de desespero, numa conjuntura de injustiças acumuladas. Mais uma vez, um perigo!


    Não obstante a ótima entrega actancial de Romola Garai - que, inclusive, está bastante assemelhada a Trine Dyrholm, protagonista do longa-metragem anterior da diretora - a personagem tem poucas oportunidades para desenvolver-se adequada e particularmente. Parece sempre dependente de alguém - não obstante ser mais inteligente e financeiramente privilegiada que as outras pessoas - e não imediatamente associável à biografia de incitadora revolucionária que foi-lhe concedida ao longo do tempo. Merecidamente, inclusive. Porém, o filme parece duvidar disso, malgrado aderir a um feminismo um tanto automático, quase modista.


    Os elementos cênicos confirmam as impressões supracitadas: tudo no filme é confortável demais, enfeitado demais. As canções de protesto soam mais dançantes que reivindicativas, como na cena famosa da personagem cantando e movimentando-se freneticamente depois que embriaga-se com ópio. Até mesmo "A Internacional Socialista" é executada em versão 'rock', em cenas que apresentam fotografias das más condições de trabalho da época como se fossem meros componentes de um videoclipe. Durante os créditos finais, "Dancing in the Dark", do cantor norte-americano Bruce Springsteen, é também regravada. A personagem acabara de falecer, e o espectador dança. Mas não parece haver intenção de consolo nesta associação...


    Em defesa do filme, ele possui um ritmo ágil (adjetivo que traz, em seu bojo, mais um problema de interpretação) e estimula a curiosidade investigativa acerca dos feitos da biografada, que deve ser lembrada não apenas como "a filha mais nova de Karl Marx". Que o debate acerca desta obra possa atenuar aquilo de que foi impregnado, a despeito das ótimas intenções da diretora. "A luta de classes existe", recita a personagem, olhando diretamente para a câmera. Ela tem razão: hoje, ainda mais!



Wesley Pereira de Castro. 

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