segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Cannes/Mix Brasil: BENEDETTA (2021, de Paul Verhoeven)


Desde a frenética seqüência de apresentação da personagem-título, ainda criança, o roteiro de David Birke e do próprio diretor faz com que o espectador experimente uma dialética entre a suspensão da crença, associada às convenções de certos gêneros cinematográficos tradicionais (em que a inverossimilhança é justificada por necessidades narrativas), e a fé absoluta, atrelada à indução da loucura religiosa (posto que a garotinha Benedetta realmente acreditava que era capaz de conversar com santos e/ou de arregimentar milagres). A teatralidade excessiva com que a protagonista conduz as suas aparições públicas surge como metonímia das próprias obsessões verhoevenianas, que parece regravar seu polêmico "Showgirls" (1995), ignorando as possíveis limitações enredísticas do contexto medieval... 


Magistralmente protagonizado por Virginie Efira, este filme flerta tanto com os clichês de terror quanto com o ritmo dos filmes pornográficos, no afã por apresentar seu cabedal de críticas ao fanatismo idólatra, à hipocrisia eclesiástica e à vilania misógina, naturalizada secularmente pelas ideologias institucionais: quando vemos uma noviça segurar com vigor uma estatueta hagiológica, sabemos de imediato que este objeto será utilizado como uma espécie de vibrador. Em seus delírios convertidos em espetáculos, Benedetta - no que tange à inspiração verídica para a trama, romantizada por Judith C. Brown - é alçada à condição de inspiradora de uma inaudita rebelião contra a tirania dos inquisidores católicos. O clímax, próximo ao desfecho, pode muito bem servir como inspiração reativa na lida contra a ascensão contemporânea da extrema-direita, já que, em mais de um aspecto, "Benedetta" é um filme ostensivamente político: defende a primazia da humanidade de quem erra em detrimento da falsa ilibação de quem é apresentado como santo. E, no fundo, é tudo uma bela história de amor incompreendido!


Interpretando a lúbrica Bartolomea, Daphne Patakia não se preocupa com a fidelidade de época na composição de sua personagem, o que coaduna-se às intenções do diretor, ao evitar um rigor reconstitutivo que poderia desviar os aspectos técnicos do filme para a mera contemplação formal. Ao invés disso, temos a urgência nos diálogos e ações, com vistas à constatação de discursos conflituosos e extremamente atuais. Charlotte Rampling e Lambert Wilson estão esplêndidos em suas participações, mas os coadjuvantes também são mui efetivos na confirmação dos jogos de cena sobrevivenciais: "a humilhação não deixa marcas", é o que diz uma ex-prostituta convertida em freira, relembrando uma das duas ou três coisas que aprendeu em sua antiga profissão. Esse tipo de diálogo é reverberado em inúmeras seqüências, visto que cada um dos habitantes do convento onde transcorre a história possui pecados fundamentais, que retroalimentam a sua devoção teísta. É um filme radicalmente autoral, trazendo de volta questões que o diretor já abordara em clássicos como "O Quarto Homem" (1983) ou "Conquista Sangrenta" (1985), para ficar apenas em títulos com semelhanças explícitas. Trata-se de um extraordinário filme-manifesto! 



Wesley Pereira de Castro. 

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