sexta-feira, 30 de agosto de 2024

ARMADILHA (2024, de M. Night Shyamalan)


Nas entrevistas que concede, M. Night Shyamalan faz questão de enfatizar algo essencial para a compreensão de sua obra: ele é obcecado por Alfred Hitchcock [1899-1980]. Não um mero admirador, mas um legítimo continuador - ou melhor, um expansor, no sentido de que ele conjuga a sua extrema admiração pelo "mestre do suspense" com elementos que ele alegava advir do fascínio por outro cineasta hollywoodiano, Steven Spielberg. Com o que aprendeu deste último, ele justifica a recorrência de famílias desmembradas em seus roteiros. De um cineasta, portanto, ele extrai a idiossincrasia das aparições diante das câmeras (no caso do indiano, em participações com falas e, nalguns casos, determinantes para alguma reviravolta emocional); do outro, a antecipação de que, nalgum momento da trama, será necessário escolher entre a promessa de harmonia familiar e a possibilidade de salvação em larga escala, tanto de pessoas próximas quanto de desconhecidos. Na mistura de referências, uma filmografia extremamente original, que, neste mais recente capítulo, dialoga até mesmo com o maneirismos supramidiáticos de Brian De Palma! 



Tal qual o seu grande mentor, para M. Night Shyamalan, o prolongamento da tensão interessa mais - muito mais! - que as reviravoltas acachapantes, ainda que ambas coincidam nos enredos: nesta produção mais recente, ele surpreendeu os espectadores antes da estréia, ao revelar, no 'trailer', que o seu protagonista é um assassino em série deveras perverso. Sabendo disso, adentra-se a sessão frente a um desafio: como evitar a identificação com um personagem tão hediondo, quando tudo o que percebemos está conduzido por seu olhar, através de sua perspectiva associada a necessidade de fugir? Ou seja, o espectador vê-se diante de um dilema fundamental, que é o de emancipar o seu ponto de vista tramático da condução plenipotente do psicopata vivido por Josh Hartnett. Como evadir-se? De antemão, o realizador nos diz: seu ofício é semelhante ao de um sádico, em que prolongar o sofrimento das vítimas funciona como uma missão direcionadora. Tese de gênio! 



Pondo em prática uma constatação psicanalítica - a de que a maneira mais eficiente de esconder algo é deixá-la à mostra -, M. Night Shyamalan faz também o inverso: ao obliterar um ou outro detalhe narrativo, ele revela. Daí, ser contraproducente elencar as falhas narrativas ou as inverossimilhanças que as sustentam: o que interessa a ele é a comunhão com o subconsciente espectatorial, sendo imperativo o recurso ao trauma, à explicitação dos mecanismos que retroalimentam a existência dos medos. Por isso, uma psiquiatra (Hayley Mills) orienta os agentes do FBI na busca pelo assassino em série e, nos intervalos de suas canções, Lady Raven (interpretada pela filha do diretor, Saleka Shyamalan) pede à sua vasta platéia que, "se houver alguém, em suas vidas, que vocês precisem perdoar, ergam os seus telefones celulares e digam 'eu te perdôo'". Descobrir a identidade do "Açougueiro" importa muito menos que entender o porquê de ele ter se tornado assim. O intricado (ou, para alguns, defeituoso) enredo é apenas um pretexto: a dialética entre criminoso e vítima é refletida na relação entre o filme e o espectador e, prolongando-se 'ad infinitum', entre este e o que ele se esforça para esquecer... 



Jamais desvencilhando-se das lições hitchcockianas, os 'macguffins' shyamalanianos desvelam-se como luxuosas sessões de terapia, em que as personalidades mais violentas podem estar ao nosso lado (ou, em casos eventuais, dentro de nós). Que ele faça isso através dos mais espetaculosos recursos cinematográficos é algo que merece demorados aplausos: vide o caso em pauta, em que a sua filha compôs um álbum inteiro com canções 'pop', repetidas com paixão pelos figurantes do filme e por Riley (Ariel Donoghue), filha do protagonista. Uma destas canções, "Where Did She Go", magistralmente executada ao piano, é pivô de um momento-chave, em que o bombeiro Cooper não pode mais disfarçar quem ele é: "existe um fantasma em minha casa, e ela está vestindo as minhas roupas/ Ela se parece com alguém que eu conhecia/ Ela canta à noite, melodias que eu escrevi/ Há lágrimas nos olhos dela, mas, por detrás, eu sei"... 



Tecnicamente, o filme é esplendoroso (toda a longa seqüência do concerto, que ocupa quase metade do filme, é excelente), mas, no desenvolvimento da trama, as incongruências se acumulam, obrigando os espectadores mais afoitos a externarem a sua decepção quanto às obviedades e/ou impossibilidades  do filme. Até que, durante os créditos finais, o funcionário Jonathan Langdon exclama, olhando para a tela de sua TV (e, por extensão, para nós), que "nunca mais falará com ninguém enquanto estiver trabalhando". A tese salta aos olhos: M. Night Shyamalan sabe que a manutenção da paranóia e a interdição das gentilezas servem a interesses de vigilância governamental e de macrocomerciantes que se beneficiam dos sentimentos de culpa de seus consumidores. Quer dizer que o assassino escapa, no final? Então... 



Wesley Pereira de Castro. 

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