Não demora a percebermos que o plano de Amadeu dará errado e, quando isso de fato ocorre, há uma surpreendente mudança de perspectiva: após um 'fade-out', volta-se no tempo e acompanhamos a busca por esta bolsa através do prisma de outros personagens. Da mesma maneira que caracteriza os trabalhos iniciais de cineastas como Quentin Tarantino ou Guy Ritchie, a narrativa é contada de maneira alinear, complementando-se à medida que outros personagens assumem a posição provisória de protagonistas, até que surja a reviravolta definitiva: será que algum deles consegue ficar com o dinheiro?
Baseado no romance "A Guerra dos Bastardos", publicado em 2007, pela carioca Ana Paula Maia, o roteiro deste filme, escrito pelo co-diretor Pedro Perazzo, translada o enredo para a Bahia e é hábil em seu poder de síntese, evitando contextualizar em excesso o delineamento dos personagens, a fim de que o espectador não se desvie da ação e perceba eventuais furos tramáticos. Ao invés disso, basta saber que Amadeu é romanticamente envolvido com Gina (Edvana Carvalho), que também trabalhara com pornografia, no passado. Graças a ela, ele conheceu o vilanaz Pastor (Narcival Rubens), que, não por acaso, é o dono da cocaína roubada. No afã por recuperá-la, ele designa dois de seus mais violentos capangas para encontrarem Amadeu: Lica (Evelin Buchegguer) e Edgar (Jackson Costa), que é apaixonado por Gina. Quando Edgar visualiza Gina na residência de Pastor, este insinua que "uma vez puta, sempre puta", o que desperta a sua ira. Obediente ao patrão, ele reencontra a amada - que o detesta -, num quarto alugado pelo pintor Horácio (Leandro Villa), que e envolvido de supetão nesta tramóia entrecruzada. Mas o sumiço de Amadeu - e da bolsa que ele carregava, após a cocaína ser vendida por Guilherme (Vinicius Bustani) - reconfigura todas as relações...
Repleto de convenções do gênero policial - que são de caráter hollywoodiano, mas adequadamente redirecionadas para a conjuntura baiana, conforme percebemos na gíria local que intitula a obra -, "Receba!" mantém o espectador continuamente envolvido, querendo saber qual equívoco será instaurado em seguida, já que os planos dos envolvidos, nesta saga de ambição, dão errado. Os apreciadores das filmografias dos cineastas anteriormente citados quedarão fascinados pela brasilidade inequívoca deste enredo, que é lançado alguns anos após a sua pós-produção, mas numa coincidência em relação ao momento em que as conseqüências públicas do crime organizado em Salvador passaram a ser nacionalmente conhecidas, graças aos telejornais. É uma triste coincidência, mas que valida a verossimilhança das ocorrências criminais, ainda que se possa reclamar eventualmente dos cacoetes de alguns dos bandidos (na cena em que Pastor recontrata Gina, por exemplo).
A despeito de quaisquer problemas (a ausência de sangue na cena em que um personagem baleado encosta na parede; a celeridade com que Horácio arruma o seu quarto e resolve novamente alugá-lo, depois do atropelamento de Amadeu; a conveniência do desfecho), "Receba!" demonstra-se um agradável exemplar brasileiro do gênero fílmico que homenageia. A trilha musical de Andrea Martins e Ronei Jorge (com canções originais compostas por Raffa Muñoz) é ótima e a utilização de "Virá", na voz da compositora Josyara (em colaboração com Giovani Cidreira), durante os créditos finais, é algo particularmente acertado, de modo que o verso mais repetido ("eu sou você cuspindo fogo/ Latino-América"!) tem tudo a ver com a definição direcionada pelos realizadores ao próprio filme: "um 'noir' de dia, meio esculhambado". E, por tudo isso, muito bom!
Wesley Pereira de Castro.
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