Como acontece nas melhores tramas almodovarianas, os filmes a que suas personagens assistem desempenham importantes funções metanarrativas. E, neste caso, são três, em seguida: a comédia "Sete Oportunidades" (1925, de Buster Keaton), no qual o protagonista é perseguido por diversas pretendentes matrimoniais; o melodrama "Carta de uma Desconhecida" (1948, de Max Ophüls), em que uma falha de comunicação impede o reencontro entre uma moribunda e o seu grande amor, que é hedonista; e o clássico "Os Vivos e os Mortos" (1987, de John Huston), baseado num conto de James Joyce [1882-1941], cujas frases derradeiras são recitadas pela personagem de Tilda Swinton, em mais de uma oportunidade, e que ecoam no desfecho do filme, de cariz sirkiano. As referências são tantas e tão requintadas que o próprio estilo de Pedro Almodóvar parece domesticado e envelhecido. O que é intencional, neste segundo caso, tal qual vem ocorrendo desde o semi-autobiográfico "Dor e Glória" (2019)...
O tom de lamento crítico, evidente nos adjetivos suprautilizados, é uma percepção que advém da confluência de algo adotado pelo diretor, em seus médias-metragens anteriores, falados em inglês ["A Voz Humana" (2020) e "Estranha Forma de Vida" (2023 - resenhado aqui): ao abdicar de seu idioma pátrio, ele aceita um aburguesamento extremado, como se fosse um estadunidense típico, a ponto de render-se a 'flashbacks' indignos de sua sensualidade, caricatos na maneira como abordam a gravidez na adolescência e os traumas decorrentes da participação na guerra do Vietnã. Por conta disso, "O Quarto ao Lado" (2024) demora a engrenar, a despeito dos talentos das ótimas atrizes envolvidas no projeto.
Na verdade, se Tilda Swinton, em sua segunda colaboração com o diretor, está maravilhosa em cada aparição da adoentada Martha, a afetação comportamental de Julianne Moore, como Ingrid, incomoda pela linha tênue na construção de sua personagem, que oscila entre a erudição e a futilidade. A seqüência em que ela fica ofegante ao praticar leves exercícios de locomoção, numa academia de ginástica, que o diga. Para contrastar, Damian, personagem de John Turturro, com quem ambas as amigas já tiveram um relacionamento amoroso, surge como uma voz racional, ainda que conscienciosamente culpada, ao diagnosticar a comunhão entre neoliberalismo e extrema-direita enquanto origem dos maiores problemas sociais hodiernos. Deve-se aderir a um inevitável pessimismo?
O humor e o erotismo tentam se insurgir, nalguns momentos, mas sempre sob o viés da nostalgia: quando Damian comenta que, na juventude, "um dia sem sexo era um dia desperdiçado"; quando Martha diz que a guerra a deixou promíscua ou quando Ingrid afirma que "é preciso talento para lidar com o lixo". Os diálogos são bons, mas os exageros reativos de Ingrid à decisão suicida de sua amiga fazem com que nos questionemos acerca do que o diretor e roteirista achou de tão interessante em "O Que Você Está Enfrentando", da escritora estadunidense Sigrid Nunez, a fim de adaptá-lo. O segmento rememorativo sobre os padres espanhóis que transam em meio à guerra deixa entrever que, neste filme, estamos lidando com um auto-pasticho, em que um ponto de partida com algumas similaridades discursivas em relação ao que vimos no no excelente "Fale com Ela" (2002) descamba para um elogio classista que assume a transição do vermelho, tão abundante em suas obras de juventude, para o verde predominante nos ambientes chiques da alta burguesia nova-iorquina. Se ele quis homenagear a faceta dramática de Woody Allen, não conseguiu dotar de suficiente personalidade autoral este experimento imitativo: a trilha musical onipresente de Alberto Iglesias, bela e característica, chega a irritar, por exemplo!
Wesley Pereira de Castro.
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