domingo, 20 de outubro de 2024

A SUBSTÂNCIA (2024, de Coralie Fargeat)



Quando este filme foi lançado, diversos críticos adiantaram-se em elencar as produções que são utilizadas como referências visuais pela diretora, como se, mais que uma experiência (óbvia) de reflexão sobre as nossas vaidades e vícios, a obra fosse um desafio mnemônico, um dever de casa sobre o consumo cinematográfico em viés quantitativo. Entretanto, uma das referências mais importantes ocorre na esfera auditiiva, que é quando, num dos instantes que antecedem o acachapante desfecho, reconhecemos a trilha musical de "Um Corpo que Cai" (1958, de Alfred Hitchcock) na banda sonora: enquanto Monstroelizasue está colando a foto de Elizabeth Sparkle (Demi Moore) em seu rosto desfigurado e inserindo brincos nas orelhas deformadas, os acordes de "The Nightmare and Dawn", de Bernard Herrmann, parecem trazer consigo uma importante mensagem subliminar, a de que não se pode ser feliz fingindo que é outra pessoa...




Bastante sintomático em relação à época em que foi produzido, "A Substância" (2024, de Coralie Fargeat) investe bastante no visual, mas depende de nossa suspensão de descrença para ignorar o fato de não se sabe nada sobre as relações pessoais e/ou familiares de Elizabeth. É como se, ao se tornar uma grande estrela de Hollywood - afinal, envelhecida e pouco lembrada -, ela tivesse cortado os laços íntimos com todas as pessoas, o que não parece de todo congruente, visto que o modo como ela trata o colegas de trabalho e os transeuntes não se coaduna à arrogância que logo notamos em Sue (Margaret Qualley).



Insistir no delineamento psicológico das personagens seria um estratagema analítico que vai de encontro à proposta discursiva do enredo: reiterar, da maneira mais explícita possível, que a sociedade hodierna (sobretudo, em seus meandros midiáticos) é condizente com o machismo estrutural e que o excesso de prazer interfere no caráter dos indivíduos. Trata-se de uma lógica redundante, mas apresentada como novidade, em razão de o filme, na sua costura de menções a outros filmes, apresentar-se como uma mutação que não aceita suficientemente a si mesma, dependendo de outras mutações para ser validada. É muito mais um evento cinematográfico que um trabalho com a mesma solidez ideológica das obras que reverencia. Um feminismo de butique, por vezes, ainda que não indigno de interesse. 



Dentre os defeitos do filme, o pior deles é a maneira estereotipada com que os personagens masculinos são apresentados, sendo particularmente execráveis as aparições de um enfeado e histriônico Dennis Quaid. Outros enumeráveis seriam a previsibilidade do roteiro - compreensível em seu pendor fabular invertido -, a disponibilidade telefônica perene dos responsáveis pela comercialização da Substância e a montagem epiléptica. Mas este último aspecto é compensado pela esperteza combinatória dos demais elementos técnicos, sendo a fotografia de Benjamim Kracun e a trilha musical de Raffertie muito boas, em seu direcionamento alucinógeno. É um filme que merece ser encarado como um apanágio de seu tempo e que, por conta disso, confunde-se com o que pretende denunciar. Porém, ele merece aplausos pelo resgate actancial de Demi Moore, que está excelente em cada aparição, sendo obrigada a demonstrar-se envelhecida, quando ainda está muito bonita e expressiva - e capaz de adaptar-se magistralmente à contemporaneidade. Que ela esteja longe de sofrer o mesmo destino explosivo que a sua personagem! 




Wesley Pereira de Castro. 

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