Mais de um crítico destacou, a propósito deste filme, que, mesmo tendo sido realizado antes da pandemia do CoronaVírus, ele sintetiza muito bem as conseqüências psicológicas (portanto, sociais) do confinamento - e isso ocorre sob um viés eminentemente político: dentro de um porta-malas, ao perceber que a desconhecida que foi seqüestrada ao seu lado passa mal, Gabriel (Ary França) tenta consolar-lhe da maneira mais imediatamente motivadora possível, "precisamos resistir". Ela, por sua vez, muito mais desconfiada, indaga o motivo de os bandidos não terem sido apreendidos pela polícia: "talvez eles pareçam gente boa, gente normal". Da maneira como estas sentenças são pronunciadas, elas dizem muito sobre o nosso desamparo nacional, mediante o seqüestro do Brasil pelo bolsonarismo.
A despeito de esta profecia política ser bastante funcional, são múltiplas as abordagens metonímicas constantes em "Dora e Gabriel": ela, por exemplo (vivida por Natalia Gonsales), insiste em ver o rosto de seu companheiro de aprisionamento, tão logo compreende que fôra seqüestrada. Ao perceber que Gabriel fala com sotaque libanês, exclama que ele é muçulmano e, por extensão, terrorista. Ele, por sua vez, responsabiliza-a indiretamente por ter sido capturada: "o que uma mulher como tu estavas fazendo sozinha à noite?". As primeiras impressões entre ambos são permeadas pelos mesmos preconceitos diuturnos, que, em sociedade, involuntariamente permitimos que sejam retroalimentados...
O fato de passar-se quase inteiramente num ambiente fechado e de ser conduzido pelos diálogos não confere ao filme uma atmosfera teatral. Pelo contrário, o esmero directivo de Ugo Giorgetti - verdadeiro analista dos interstícios paulistanos, em lógica amplamente humanista - converte o enredo numa potente metáfora cinematográfica, que nos faz pensar nas teorias de Jean-Louis Baudry [1930-2015] sobre os "efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base". Afinal, enquanto hipertrofia metalingüística do papel espectatorial, os personagens encontram-se num estágio requerido pelas projeções fílmicas, onde manifestam-se a suspensão de motricidade e a predominância da função visual, segundo o autor. A diferença é que o homem "enxerga" um pouco mais que a mulher, tendo acesso a resquícios do espaço exterior através de um pequeno buraco no capô do veículo. Mais uma crítica sociológica contundente, portanto.
Se a iluminação do porta-malas talvez pareça inverossímil, isso é bem justificado pelas convenções narrativas intrínsecas, de modo que a direção fotográfica de Walter Carvalho é mui assertiva na aplicação dos questionamentos hitchockianos: os personagens sabem que são observados por olhos alheios - que também são os nossos, espectadores - e interpretam os sons que ouvem como antigos 'benshis' narravam as tramas dos filmes mudos no Japão. No desfecho, um mistério que confirma a extrema autoralidade do diretor: ainda que possua elementos em comum com quase todos os seus filmes, é em relação ao média-metragem "A Cidade Imaginária" (2014) que esta produção recente mais se assemelha. As (des)esperanças do percurso superam as frustrações da chegada: mais uma vez, tudo a ver com o Brasil atual!
Wesley Pereira de Castro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário