No mesmo ano em que conquistou um prêmio de Melhor Direção no Festival de Cinema de Gramado por "Jesus Kid" (2021, comentado aqui), o realizador Aly Muritiba recebeu a notícia de que seu filme mais recente foi pré-selecionado para tentar uma vaga na categoria Melhor Filme Internacional do Oscar. Independente de ter ou não chances legítimas de concorrer a este certame industrial, ele entrega um longa-metragem que permite a exploração de intenções autorais: além de retornar à introspecção de seus curtas-metragens prisionais, o percurso efetivado pelo protagonista deste filme inverte a própria saga geográfica do diretor, que nasceu no interior da Bahia e vive em Curitiba. Daniel (Antônio Saboia) sai da capital paranaense, onde enfrenta uma complicada investigação militar, em direção à cidade de Sobradinho, na Bahia, a fim de encontrar seu grande amor, idealizado através de conversas na Internet. O temperamento de Daniel é violento, mas ele insiste que acalmar-se-á: nos áudios de WhatsApp que envia para a amada Sara, ele desnuda-se de corpo e alma. Fotografa-se despido e envia mensagens recorrentes. Porém, Sara não responde...
Da mesma maneira que o roteiro realiza um deslocamento contrário ao do próprio diretor, são perceptíveis as rimas que anunciam a crença na reabilitação personalística de Daniel - e, por extensão, anunciam um desfecho feliz: ainda em Curitiba, um superior hierárquico e a irmã mais nova de Daniel pedem para que ele "não surte" e seja cuidadoso nas decisões que tomará daquele momento em diante; quando sabe que este homem bruto porém apaixonado está no Nordeste, a primeira recomendação que o melhor amigo de Sara, Fernando (Thomás Aquino), ouve é justamente "não surte". A irmã de Daniel (Cynthia Senek) confessa-lhe que está tendo um relacionamento com outra mulher, o que faz com que ele reaja com estupor. Algo parecido se repetirá quando ele conhece Robson (Pedro Fasanaro), um jovem homossexual que é chantageado por um pastor evangélico a submeter-se a um tratamento curativo de suas preferências eróticas. É quando surge em cena um "ex-gay", afirmando que "prefere a salvação à felicidade". As escolhas a que Daniel tem acesso não são tão bem delineadas, em termos maniqueístas: diante de uma usina hidrelétrica que serve como metáfora de potência, Robson fala que sua avó (Zezita Matos) ensinou-lhe que "tudo depende da vontade de Deus"; Daniel argumenta que seu pai acredita apenas na Lei, e que sua fé foi embora quando a sua mãe morreu...
A entrega de Antônio Saboia ao seu personagem é visceral. Não obstante a incandescência desejosa oriunda de seus músculos evidentes - e insistentemente fotografados -, ele torna sobremaneira crível o desamparo psicológico de Daniel: desligado da corporação militar em que trabalha por maltratar exageradamente um recruta durante um treinamento, ele também precisa lidar com o desemprego e com a necessidade de cuidar de seu pai aposentado e sofredor do Mal de Alzheimer. Por isso, entrega-se de maneira tão intensa a uma paixão virtual. Durante a viagem, alguém até pergunta se "não tinha mulher em Curitiba", a ponto de ele precisar percorrer milhares de quilômetros em busca de alguém que sequer viu pessoalmente. Daniel desconversa: notamos o quão angustiado ele está pelo modo como sempre acorda assustado, seja quando um caminhão buzina enquanto ele cochila em seu carro, seja quando o seu telefone celular toca enquanto ele descansa num quarto de hotel. Felizmente, o susto que o espectador mais teme não desencadeia um clímax violento. Graças a mais uma inteligente rima discursiva, é Daniel que demonstra que está disposto a curar-se de algo que tanto lhe faz mal!
Adotando um primor técnico que remete aos filmes produzidos no que convencionou-se chamar de "Retomada do Cinema Brasileiro", esta obra destaca-se sobretudo pelo uso expressivo da trilha sonora: as composições de Felipe Ayres são excelentes e as canções incidentais refletem de maneira impressionante os sentimentos de Daniel. Prestando atenção às letras de artistas como Odair José, Pablo e Barões da Pisadinha, que ouve nos botecos em que espera por Sara, ele percebe que os versos exagerados que são comuns a gêneros como o brega e o arrocha diagnosticam com precisão a intensidade de seu afeto assimetricamente correspondido. Por motivos publicitários, entretanto, o filme prefere direcionar a identificação do espectador para a icônica canção estrangeira "Total Eclipse of the Heart", na voz de Bonnie Tyler, que retorna durante os créditos finais, à guisa de reiteração. É como se isso metonimizasse o agendamento valorativo que é direcionado sobre muitas situações, como a própria obsessão de certos setores do cinema brasileiro pela legitimação através de premiações e a esperança manifesta por Robson, ao dizer que, no Rio de Janeiro, pode "tocar a sua vida". Conforme já foi escrito por outrem, o essencial está diante de nós, mas nem sempre é enxergado devidamente. O título do filme, neste sentido, é primoroso: que ele só apareça após meia-hora de projeção foi um golpe de mestre!
Wesley Pereira de Castro.
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