Na primeira e na última cena deste documentário, há uma importante rima visual: o 'close-up' de um olho que observa algo através de um orifício circular. Ao invés de designar a escopofilia típica dos filmes de suspense, a intenção aqui é metaforizar os protocolos de entrada e saída das instituições penitenciárias, em que os dias de visitação são prévia e rigorosamente estabelecidos. Pelo que costa dos créditos finais, o diretor elaborou este filme a partir de reflexões acadêmicas sobre privação da liberdade, enfocando os métodos peculiares de reabilitação da APAC - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. A sede escolhida foi a de São João del Rei, em Minas Gerais, e as filmagens ocorreram entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020.
Caracterizada como uma entidade civil de direito privado (com origem visivelmente missionária), a APAC propõe um tipo de sistema prisional em que os "reformandos" assumem a responsabilidade pela manutenção, vigilância e demais tarefas do local em que estão confinados. O diretor emulou esse colaboracionismo através de uma estrutura coletiva de roteiro, no qual os próprios detidos puderam dar vazão às suas idéias. Disso, resultaram seqüências inusitadamente lúdicas, em que os prisioneiros imaginam-se surfando, desviando de tubarões, tricotando no espaço e até mesmo imitando o programa sensacionalista apresentado por Marcelo Rezende [1951-2017], numa representação bem-humorada que zomba do discurso preconceituoso que considera os Direitos Humanos benesses concedidas apenas para quem infringiu a lei...
Por vezes, o documentário flerta com a publicidade institucional, no sentido de que demonstra a efetividade freireana desse tipo de organização, em que os detentos interagem construtivamente entre si. É um defeito menor, visto que esta faceta é também autocrítica e ostensivamente ficcional: malgrado o excesso de versículos religiosos e frases de auto-ajuda pronunciados ou pintados na parede, um dos artífices diegéticos ousa atuar numa anedota fílmica em que um padre insere fotos de uma mulher nua em sua Bíblia Sagrada. Os conflitos são escassos, pois as tarefas e deveres dos presos são continuamente rememorados, e todos estão cientes de que devem seguir as regras definidas e compartilhadas entre eles. No turbilhão de ódio atrelado às manifestações de extrema-direita no país, um filme como esse devolve a esperança nas pessoas. Que não saibamos quais crimes foram cometidos pelos detentos foi mais um importante mérito. Para diretor, espectador e personagens reais, o que importa é a possibilidade de amar e seguir em frente, conforme fica evidenciado na seqüência em que os parentes comparecem ao lugar: em meio às grades, valiosas brechas!
Wesley Pereira de Castro.
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